segunda-feira, 31 de março de 2008

sEXO, dROGAS & pEITOS à rEVELIA*

Máquina do tempo: Junho de 1970

POR CRISTIANO BASTOS
Marco do soft-porn-kitsh, Beyond the Valley of the Dolls continua anos-luz da monótona indústria pornográfica
Rever o cult-movie Beyond the Valley of the Dolls (De Volta ao Vale das Bonecas) é bom para sacar que, em tempos de liberação geral, o gênero erótico deu constrangedora brochada.
Dirigido pelo lascivo Russ Meyer – que tem na filmografia clássicos under como Faster, Pussycat! Kill! Kill! e Mudhoney (Mark Arm não nega a fonte das suas poluções noturnas...) – Beyond The Valley of The Dolls tem a aura camp que fascinou roqueiros delinqüentes como os New York Dolls, cuja estética depravada louva a produção de junho de 1970.
O filme conta as libertinas aventuras da banda de rock The Carrie Nations, um protótipo riot grrrl teleguiado por garotas gostosas e safadas em colisão rumo ao estrelato.
Bem trashona em algumas ocasiões e deliciosa, em outras, a trilha sonora foi hit na época: o tema "In the Long Run" escalou o topo da parada norte-americana; e a banda Strawberry Alarm Clock (que participa do filme cantando a pop-psicodélica "Incense & Peppermints" numa festinha de embalo) chegou à primeira colocação nos EUA. Ao assistir o vídeo da música, experimente apagar as luzes pra ver...
Na verdade, a produção é um pastiche satírico do romance O Vale das Bonecas, de Jacqueline Suzan – sobre modernização feminina, decepções amorosas e ingestão desumana de barbitúricos.
Meyer, que lançou a categoria sexplotation, verteu o best-seller de Suzan num extravagante enredo sobre rock, drogas, orgias psicodélicas e mamilos em profusão.
Em 2001, o jornal Village Voice colocou Beyond the Valley of the Dolls na 87º posição de uma lista que elegeu as grandes filmagens do século. Sem noção? No ano passado, o filme saiu pela primeira vez em DVD, com extras e entrevistas. Veja com seus próprios olhos.
* Revista Bizz

sábado, 29 de março de 2008

lEVITAR & sUBVERTER*

O jugalmento dos "Sete de Chicago" encerrou o paz-e-amor hippie em tom de revolta, política & raiva artística

POR CRISTIANO BASTOS
A data de 11 de maio de 1972 deveria ingressar na história como "O dia em que a juventude derrotou o poder".
Nesse dia, no julgamento da Conspiração de Chicago, que se tornou um dos mais atribulados da história dos EUA, a Justiça inocentou os sete militantes políticos conhecidos como "Chicago Seven", acusados de transtornar a Convenção Nacional do Partido Democrata, em 1968.
Formado por membros da Students for a Democratic Society (SDS), o Chicago Seven tinha em suas fileiras os agitadores Abbe Hoffman e Jerry Rubin - cabeças do levante Youth International Party, os Yippies, dos quais o grupo de estudantes absorveu estratégias para suas ações.
Com seu "estilo freak de agitação política", os yippies foram caçados como inimigos públicos da segurança nacional.
Anarquistas psicodélicos egressos da subcultura flowerpower e xarás de outros bandos nervosos - Motherfuckers, Panteras Negras e Diggers -, eles exigiam mudanças sintonizadas com o modo de viver da juventude: rock, drogas, e política:
"Misturamos esquerda com vida psicodélica. O ácido e o rock - aí está a verdadeira revolução!", postulava Rubin.
Em 1968, os yippies criaram o Festival of Life", que ocorreu paralelamente à convenção democrata, no qual se apresentaram MC5, The Fugs e Country Joe & the Fish. Os protestos se inflamaram e, no show do MC5, tropas foram destacadas para reprimir as manifestações.
A "Levitação do Pentágano" - a maior jogada comandada pelo grupo - foi levado a cabo numa das mais ousadas operações de marketing que já se ouviu falar.
Combinando energia psíquica e orientalismos zen-budistas, os yippies juntaram 50 mil hippies que, por horas seguidas, entoaram a sílaba mágica "OM". A intenção dos freaks, infelizmente, não chegou a se concretizar.
*Bizz, maio de 2006

tAMBÉM eM mAIO - 1972

GAROTOS DO SUBÚRBIO
Na Europa, os selvagens britânicos do Slade excursionavam por todos os países com seus álbuns no topo das paradas.
A consagração veio em amio, com o single "Take me Back' ome" (no inglês cockney mesmo) - canção que o baixista Jim Lea admitiu ter composto se apropriando de algumas passagens de "Everybody's Got Something to Hide Except Me and My Monkey", dos Beatles.
Na época, foram acusados pelos professores ingleses de detratores do idioma, por grafar o nome das músicas conforme a entonação fonética usada pela massa de jovens fãs da banda.
O Slade foi considerado péssima influência para a juventude. Assim, ficou fácil emplacar hits como o estridente "Cum on Fell the Noise".
LANÇAMENTO DIFERENTE
Com um show no Teatro da Praia, no Rio, O Pasquim lançou o "disco de bolso", compacto simples com duas faixas inéditas. De um lado, "Agnus Sei", de João Bosco e Aldir Blanc. Do outro, "Águas de Março", de Tom Jobim.
GAMES COM PLASTICIDADE
O Odyssey 100, fabricado pela Magnvox, foi o primeiro videogame lançado comercialmente, em maio de 1972. Não tinha cores e os jogos ficavam coloridos com folhas plásticas colocadas sobre a tela da TV.
HIT PARADE - REVISTA POP 1972
1) Ben / Jorge Ben
2) Dança da Solidão / Paulinho da Viola
3) The London Sessions / Chuck Berry
4) Trilogy - Emerson, Lake & Palmer
5) Jards Macalé - Jards Macalé
6) Carlos Santana & Buddy Miles / Santa & Buddy Milles
7) Never a Dull Moment / Rod Stewart
8) Scholl's Out / Alice Cooper
9) Exile on Main Street / Rolling Stones
10) Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida / Rita Lee

sexta-feira, 28 de março de 2008

nÃO-LEAD

Era pro Munha (o careca da foto) ter respondido antes, mas parece que tava muito ocupado com os lances dele de magia negra, pentagramas e pactos de músicos em encruzilhadas por aí, tal.
Como lead, dependendo de certo ponto de vista, é apenas um grilhão criado pelo jornalismo - e esse é um espaço de não-lead -, mete bronca, Munha! Ele adora falar.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Qual foi a maior diabrite que você já aprontou?
É o tipo de pergunta que não posso responder, por questões legais.
[DESORIENTAÇÃO]] - A Satanique Samba Trio vai lançar novo disco?
A princípio, uma série de três compactos virtuais a serem disponibilizados para compra no I-tunes e no site da Amplitude.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Já tentaram excomungar vocês em Brasília?
Antes fossem os padres. Pelo menos assim haveria uma chance de acabar em pancadaria, dado o histórico da Igreja Católica. Infelizmente somos impopulares somente entre os roqueiros e isso não rende sequer um tapa de luva.
Na verdade, o SS3 ja recebeu elogios de um seminarista - e não nego que fiquei ofendido.
INFERNAL ASTRAL DE MUNHA

Sorvete de chocolate ou pavê de morango?
Não como açúcar

Frank Sinatra ou Dean Martin?
Não gosto de racistas

Heaven or Hell?
Hell!

Goiaba ou Carambola?
Não gosto de natureza

Bridget Bardot ou Jane Mansfield?
Beyoncé

Louis Cypher ou Diabo Veste Prada?
Louis Cypher com olhos amarelos de CG pré-histórica

A Profecia ou O Exorcista?
O Exorcista (antes e principalmente depois do livro de Thomas B. Allen)

Amor Além da Vida ou Ghost - do Outro Lado da Vida?
Nem sei que porra é essa

Mickey Rourke ou Matt Dylon?
Ah, sei lá! Escolhe você

quinta-feira, 27 de março de 2008

pROJETO: dESMONTANDO

A SS3 faz a estréia da nova seção fixa do blog - o Projeto Desmontando: psicanálise musical sem divã. Bandas & artistas vão contar, em pormemores, como foi a gravação de um de seus álbuns em estúdio.
Faixa por faixa, revelarão segredos, estórias de produção e toda sorte de detalhezinhos subliminares que se sentirem à vontade pra confessar. Só dependerá deles.
O próximo desmontado será Timbres Não Mentem Jamais, novo do Marcelo Birck. Os outros, já confirmados, eu não digo. Tomara que a Graforréia destaque algum daqueles caras pra falar sobre Chapinhas de Ouro...
Agora, divirta-se a valer com o "samba do contra" do contrabaixista Munha. Desmontando Satanique Samba Trio: Sangrou - gravado, inclusive, na rua. Em Brasília (DF).

dESMONTANDO sATANIQUE sAMBA TRIO: sANGROU

Munha: baixo elétrico, acústico & desplugado, regência
Hideki: cavaco, harmonium, vozes
cítara, programações, teclado, didjeridoo e pífano
RC: guitarra, viola de doze e violão
Eduardo: trompete, trombone e apito
Lupa: bateria e todo tipo de percussão
Marcelo: trompete

Capa: manipulação de imagem de Pedro Ivo Oliveira sobre foto de Rayssa Coe

Saturações, scrocs, arritmias, texturas distorcidas e dissonâncias absolutamente propositais. Não reclame, agradeça

Todas as músicas compostas, orquestradas e concebidas por Munha. Arranjos e execussões por Satanique samba Trio
DEVS NON FACIT MELIOR
Brasília, Século XXI
Os Sininhos Dizem Morte (1:04)
Sei que parece caô de "cantora eclética", mas concebi essa música graças a uma pesquisa de áudio que o RC (guitarrista da SS3) fez pro seu filme, Estalactites de Davi. No áudio ouviam-se aqueles sininhos azucrinantes de hare-krishna ao fundo.
Kit de Amputação Asasulista (1:08)
Esta é uma experiência de apropriação dos maneirismos de "melodia flutuante" do compositor erudito e influência inegável Anton Webern. O kit de amputação asasulista foi um saco cheio de objetos pérfuro-cortantes que a gangue da 407 Sul escondia em um conteiner de lixo abandonado durante os anos 90.
Estilo Ricky Ramirez (1:44)
Menção à banda de death metal mexicana Brujeria. La pelas tantas, em "matando güeros", seu hit máximo, o vocalista canta: "matando güeros, estilo pancho villa/ matando güeros, estilo ricky ramirez!". Se você não sabe, Richard Ramirez foi um serial killer com senso de humor bastante peculiar em atividade nos anos 80.
Auto-Retrato em Tripas de Cachorro [face 1] (1:17)
Quando criança, pintei meu auto-retrato com sangue de um cachorro morto na passarela de concreto em frente ao IBI da Asa Sul. Não é algo de que me orgulhe muito, mas foi um momento muito inspirador pra todos que o acompanharam. E super arrrte.
Chuva de Sangue em Exu (PE) 2:20
Relato metafórico de um evento real presenciado pelo meu amigo Giorgio Xenofonte. Em uma feira popular a céu aberto, ele e dezenas de testemunhas viram sangue cair do céu, em pequenas gotas.
A cidade onde isso REALMENTE ocorreu se chama Exu, fica em Pernambuco e é conhecida por ser onde Luiz Gonzaga nasceu. Se a peça não fosse um baião desengonçado não faria sentido e nem teria graça.
Salsa em Carne Viva (1:43)
Escrita nos 90, foi recuperada quando achei as partituras das melodias centrais numa área esquecida do meu quarto. Fiz algumas adaptações básicas, redefini a instrumentação e virou esse troço aí: matemática estrutural usada para o mal.
Comendo Faca (2:27)
É a música que mais se aproxima de ser um Hit na história do SS3. Não por acaso, também é uma das mais simples. Lamentável.
Todos os Santos na Grelha (1:53)
Metade desta música foi gravada num elevador.
A Alma Boca Afora (2:13)
Trata-se do arquivo de audio de uma cena excluída de um filme ainda não finalizado. Melhor não falar muito sobre isso, por que de processo ja bastam os atuais.
Morre, Brasília! (2:03)
Oficialmente, a primeira música do satanique samba trio com vocais: tive que reger um coral de maconheiros pra montar as harmonias que eu e o compositor erudito Jota Ferreira escrevemos um ano antes. Quase morri.
Cancerbol (1:44)
Se você parar pra analisar, notará que se trata de um tema em metástase, que cresce até forçar a eclusão de seu próprio DNA. Mas você não vai.
Auto-Retrato em Tripas de Cachorro [face 2] (2:03)
Gravada em 98, nos dias de lusbel is a jazz project. Eu, RC, dois baixos e bateria, com solode trompete do onipresente Eduardo Santana adicionado anos depois.A ressucitei para lembrar a mim mesmo e aos rapazes que as coisas poderiam estar piores.
Salve Satã e Ponto Final (3:04)
Originalmente concebida com vocais. Estamos a regravando, no melhor estilo "Tim Maia em seus piores momentos" justamente pra livrá-la de seu karma e adicionar as vozes. Preciso de um coral de crianças, conhece algum?
Diabolyn (8:23)
Diabolyn é o nome da vilã de um desenho animado oitentista chamado Cavalo de Fogo. O personangem é uma cópia descarada da bruxa de A Branca de Neve e os Sete Anões, mas mil vezes mais sensual. Foi o primeiro símbolo sexual de muita gente. Ou só o meu.
Canção para Atrair Ma Sorte [ato VI] (1:00)
É a continuação orquestrada dos interlúdios do EP Misantropicalia, de 2004. Tanta gente reclamou deles que me senti moralmente obrigado a continuar desagradando a todos no disco seguinte.
Infelizmente, ninguém parece ter notado que esta peça foi montada com os temas casuais dos interlúdios. Hideki, nosso cavaquista, adicionou mais um tema ao plantel da música e a levou a outro patamar. Talvez por isso tenha se tornado tão irreconhecível.
Peça para Pó, pele e osso em Dez por Oito (1:11)
Um arranjo avulso do Lupa (percussionista da banda) que acabou virando música. Mais uma pra a série to be continued.

gURI iNTERROMPIDO

Na última Rolling Stone, o jornalista Marcelo Ferla acessou à intimidade do jovem Vinícius Gageiro Marques (16), o Yoñlu.
Ele foi o talentoso menino de Porto Alegre que não só discutiu como deu o "clique final" em sua própria vida auxiliado por internautas de uma comunidade de suicidas.
Yoñlu se foi no dia 26 de julho de 2006 e deixou seu precoce legado de música e uma porção de coisas escritas e registradas na rede.
Suas opiniões ainda podem ser lidas em fóruns de música que ele participou na internet.
Após leitura de algumas dessas intervenções de Yoñlu, fica ainda mais difícil saber o que mais impressiona nele: seu pendor musical, a confusão ou o medo de viver.
Num desses fóruns ele diz sobre Porto Alegre - May 24 2006, 02:36 PM: "It's a southern-Brazilian town that the name translates as Gay Harbour".
Ferla já foi editor de música do Segundo Carderno do jornal Zero-Hora, editou a revista Frente! com os jornalistas Emerson Gasperim e Ricardo Alexandre, e publicou vários livros sobre música.
O jornalista foi convidado pra escrever "o perfil de um músico que se suicidou" - e não sobre sucídio, propriamente dito - e faz questão de frisar:
"Tanto que não falei com a polícia, por exemplo, embora tenha sido jornalisticamente inevitável falar do assunto pra traçar o perfil do Yoñlu", justifica Ferla.
Leia trechos da reportagem "Canções para Viver Mais" no site da Rolling Stone. Um trechinho aqui:
"(...) O quarto de Vinícius fica no meio do corredor, à esquerda. É lá que estão o violão, as partituras, a coleção refinada de CDs: Beatles, Radiohead, R.E.M., Flaming Lips, Tom Waits, Jeff Buckley, Strokes, Air, Beastie Boys, Billie Holiday, Caetano Veloso, Vitor Ramil, João Gilberto.
As fileiras são desordenadas e alguns discos cobrem os demais, mas nem preciso revirá-los para ver melhor. Já deu para entender as referências dele. Ao lado da cama de solteiro, coberta por uma colcha do Grêmio, estão um pôster do vocalista do Radiohead, Thom Yorke, o mais brilhante artista da música pop do século 21, e outro do grupo escocês de pós-rock Mogwai, autografado.
Na cabeceira da cama repousam, sobre um travesseiro, o terço da primeira comunhão e um CD que estampa na capa a foto de Vinícius – bonito e concentrado, com headphones e agasalho esportivo vermelho abotoado até se formar uma gola alta.
'Yoñlu' é o que está grafado na capa do disquinho digital. O estúdio caseiro onde as 23 faixas do CD foram gravadas, entre 2004 e 2006, fica no meio do mesmo corredor, à direita. Abriga o aparelho de som do garoto, mais discos, uma guitarra, um teclado e o seu computador, um PC onde os sons foram registrados com um aplicativo básico de áudio, o Cool Edit Pro, e um microfone".
É uma infeliz coincidência que Porto Alegre tenha sido cenário de duas das histórias mais chocantes de suicídio de jovens nos últimos anos no Brasil.
O outro caso foi o de Felipe Klein, filho do deputado federal Odacy Klein, cuja história contada pelo jornalista Renan Antunes de Oliveira ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo. Leia a íntegra da reportagem.
"Eu acredito que a cadência e a harmonia certas no momento certo podem despertar qualquer sentimento, inclusive o da felicidade nos momentos mais sombrios".
Esse é um excerto da carta que Vinícius deixou pros seus pais antes de abandonar o mundo aspirando concentrações letais de monóxido de carbono dentro do seu próprio quarto.
Marcelo Ferla falou sobre o desafio de fazer a reportagem para a Rolling Stone, sobre o talento de Yoñlu - que foi não inteiramente desperdiçado, afinal - e nos arrumou esse texto incrível de Vinícius, a ficção "Dor, Agonia e Angústia".
[[DESORIENTAÇÃO]] - Fazendo a reportagem, qual foi sua conclusão: quem era Vinícius Gageiro Marques?
Marcelo Ferla - Vinícius era um garoto muito inteligente e sensível - emocional e artisticamente -, filho de pais bem-dotados intelectualmente, inserido num contexto de classe média de Porto Alegre. Ele tinha uma depressão profunda e, embora tenha se tratado desde pequeno, não conseguiu vencê-la.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Foi difícil fazer essa matéria?
Marcelo Ferla - Foi difícil, apesar da colaboração dos entrevistados. O tema é delicado e, desde o começo, tomei muito cuidado pra não ferir ninguém, não fazer julgamento de valores, não tentar explicar causas e, sim, expôr fatos, pra evitar o tom sensacionalista e não glamourizar o suicídio. O fato é muito triste e foi tocante falar com todo mundo a respeito do garoto.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Qual era o talento musical de Yoñlu?
Marcelo Ferla - Yoñlu tinha muito potencial e deixou um legado de alta qualidade. Acho que ele tinha ótimas referências, grande aptidão pra escrever letras e compor músicas e dedicação na hora de gravar (ele começou com 2 canais eterminou com 36, sempre só).
Tudo isto somado a uma sensibilidade visceral que ele só conseguia expôr na música. Tudo indica que ele seria um grande artista. O CD que foi lançado é uma boa amostra.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Ele se encaixa na "cena" gaúcha?
Marcelo Ferla - Partindo-se do pressuposto que ela exista, não.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Você acha que se Vinícius não tivesse cometido suicídio sua música, ainda assim, seria conhecida?
Marcelo Ferla - Tudo indica que ele seria um grande artista. E ao mesmo tempo em que se pode afirmar que a maneira trágica como ele morreu contribuiu para que a sua música fosse conhecida (embora tivesse um séquito considerável em vida), é possível supor que, vivo, poderia ter hoje um hype parecido com o da Mallu Magalhães.
[[DESORIENTAÇÃO]] - A música de Vinícius vai viver mais que ele?
Marcelo Ferla - Tem tudo para viver, o contrato da Luaka Bop é um indício.
DOR, AGONIA E SUICÍDIO
De: Yoñlu
Sobre Big Brother Brasil 2
Nota: 0,0
Pouco antes da intimidante faca dilacerar seu pescoço, Jorge, lixeiro de 45 anos, revê a causa de tal situação. Era uma terça-feira. Jorge chegara exausto, porém empolgado, do trabalho. O dinheiro que estava guardando para comprar um armário finalmente seria usado a fim de enfeitar a casa, mas o verdadeiro motivo de sua empolgação era apenas por estar a caminho do quente abraço de sua querida esposa.
Esposa essa que o aguardava nos braços de outro rapaz. Como a Jorge não fora dada a força para suportar a perda de um amor, ele recorreu à vodka mais próxima. Ao ver que todo o dinheiro que tinha havia sido utilizado na compra de um armário, Jorge teve de arcar com uma sangrenta e dolorosa luta corporal que só o arranjou hematomas e cortes.
Entorpecido pela dor da condição humana e também pelas frenéticas luzes automobilísticas que banhavam a rua húmida, Jorge caiu no meio da calçada. Paralelamente a isso, as lágrimas inconsoláveis de certa personagem do Big Brother Brasil, por sentir-se rejeitada (e com excesso de rímel), são acompanhadas fielmente pelos olhos atentos de Janaína, estudante de15 anos, sentada há uma hora à frente da TV.

terça-feira, 25 de março de 2008

o mAPA

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,

Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei

(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

Mario Quintana
(Apontamentos de História Sobrenatural)

pÚBLICA aPRESENTA: pORTO aLEGRE

Porto Alegre, cidade meio província & meio metrópole, onde opiniões se dividem pra tudo, hoje completa 236 anos de idade.
Nem parece - mais parece balzaca, de tão conservadona.
A lembrança do seu colo afável, sempre fere o coração de muitos confessos apaixonados como eu e outros desgarrados de seu amor.
Em Brasília, sou do tipo que me mato de saudades dessa minha ex-namorada (que não desaprendi a gostar), outra confissão.
Ela nasceu em 1772 e foi batizada com o nomezão - Freguesia de São Francisco do Porto dos Casais. Depois mudou várias vezes:
Porto de Viamão (no século 18), depois Porto do Dorneles, em seguida Porto de São Francisco dos Casais e, finalmente, Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre. E just Porto Alegre.
Geograficamente, essa cidade de clima subtropical úmido tá localizada no místico paralelo 30º, e é circundada por 40 morros e orla fluvial de 72km.
Será que tem alguma influência no florido número de lindas gurias que se avista por lá em qualquer canto - nas ruas, nos bares, a caixa do supermercado, a balconista da farmácia, a Patrícia do Shopping Iguatemi, a moça no ônibus, a cadelinha underground?
Até a mais feiosa é bonita e é até melhor trocar o assunto, falando nisso.
Caminhar por Porto Alegre no inverno em um sábado de manhã ensolarado, acoplado em phones de ouvido e aquecido por sobretudo, blusão de lã, cachecol, luvas e escutando um som bem quentinho rende sensação próxima ao estágio que antecede calma lisergia: o Júpiter que deve ter sacado isso.
No inverno de Porto Alegre a luz é diferente - infiltra-se por tudo & brilha. De manhãzinha, quando o sol tá saindo, as partículas de foggy noturno ainda pairam sobre a sua cabeça. Foggy & sol dão cores muito loucas.
Porto Alegre é uma cidade de luz própria, mas que também fica gatinha no P&B da foto clássica de Mario Quintana no Hotel Majestic (no post de cima).
Mais legal é quando tu encontra um amigo(a), vocês sentam numa graminha pra conversar, tomar chimarrão e "lagartear" ao sol enquanto as bergamotas do saco vão sendo descascadas compulsivamente - o cítrico aroma das bergas impregnando o ar e os dedos.
À noite é melhor paramentar-se pra enfrentar o "frio de renguear cusco" e o Vento Minuano que assovia seu canto encanado pelas ruas. Se preparar pra encontrar queridos amigos bêbados nos bares antes das festas e dos shows de rock.
Nunca é preciso marcar: eles vão estar lá te esperando - és o que faltava à mesa lotada de cevas e, quando chegas, bridam copos no ar: "Mazzzzzzáááá!".
E todos fazem a festa juntos, embebedam-se juntos, vão aos shows juntos. Na virada da madruga, todos os "seqüelados" se encontram novamente, trôpegos & felizes entre as "alamedas de Porto Alegre" (não deu pra evitar) pra passar o resto do dia juntos - falando sobre música, ouvindo música e concentrando pra noite: vai rolar mais música pra curtirmos juntos.
Show de algum amigo seu. O som é legal e você vibra ainda mais porque todos na banda são grandes parcerias suas.
Foram tais sensações (e vivências) que a Pública conseguiu transmitir com o videoclipe de "Um Lugar Qualquer", que acabou de ser lançado pela banda. O clipe é um bonito presente pra essa cidade que pariu loucos geniais como Qorpo-Santo e foi berço de uma cantora eterna como Elis Regina.
O Mini, da Walverdes, disse no blog dele, Conector, que tem muita gente no Youtube fazendo a conexão Porto Alegre-Inglaterra com "Um Lugar Qualquer": "Inicialmente, parece excessivo entusiasmo-anglófilo-juvenil, mas, na real, não é relação tão esquisita assim, já que boa parte da nossa cultura urbana é muito influenciada pelo rock inglês", observa.
O vídeo da Pública, continua o guitarrista, apenas reflete uma forma de olhar bastante presente em Porto Alegre - goste-se ou não. "Escrevi em algum lugar que a Pública consegue soar como um encontro entre Nei Lisboa e Stone Roses. E isso é um elogio".
O walverde, que não esconde sua adoração pela cidade, elogia a canção da Pública: "O clima de camaradagem é amplificado pela linda canção, uma das minhas preferidas do álbum Polaris".
A gurizada que aparece no clipe, muitos deles amigos meus também (pros quais já mando um abraço!), a maioria toca em bandas ou tem atividades independentes na cidade. Curta o clipe de "Um Lugar Qualquer Lugar" no post abaixo.
O cantor e letrista da Pública, Pedro Metz, que admira os compositores de Porto Alegre [Júpiter, Gross, Prego, Edu (Planondas), Lucas & Andrio (Guidis), André (Cartolas), cita alguns], deu essa entrevista pra falar sobre "Um Lugar Qualquer", de poesia, do seu pai, dos seus discos favoritos e dos planos da banda.
E de Porto Porto Alegre - mas é óbvio: PARABÉNS PORTO ALEGRE!
[[DESORIENTAÇÃO]] - Como rolou a sacada de "Um Lugar Qualquer"?
Pedro Metz - No ano passado, por causa do VMB, a MTV pediu pra gente filmar uma vinheta mostrando a nossa cidade. Pensamos: "Porto Alegre tem partes muito bonitas, mas como fazer pra filmar?"
Sugeri o ônibus de turismo doble deck da prefeitura e todo aquele lance dos amigos entrando e se confraternizando. A gente tinha esse material e conclui que, dali, poderia se fazer um clipe. Editamos e o resultado ficou muito legal, despretensioso, verdadeiro. Acho justo homenagearmos a cidade que nos criou.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Porto Alegre é uma cidade poética?
Pedro Metz - Pergunta difícil. Acho que sim. Tem sua beleza, tem mulheres lindíssimas (o que ajuda muito), tem o colorado, o Bambus (hahahaha). Acho que isso tudo ajuda na criação dessa atmosfera peculiar. E tem a irredutibilidade também, né?
[[DESORIENTAÇÃO]] - A Pública se importa bastante com a finalização dos seus vídeos. Como nascem as idéias e viabilizam a produções?
Pedro Metz - Nos dois primeiros, roteirizamos e chamamos amigos do cinema pra dirigir. Produzimos boa parte e contamos com a ajuda de muita gente. Em "Long Plays", resolvemos que era hora de nos arriscarmos na direção.
Chamamos outro amigo para co-dirigir. Produzimos em parceria com uma produtora, Capitão Araújo. O de "Lugar Qualquer" foi o mais fácil: conseguimos com a Secretaria de Turismo autorização pra gravar. Chamamos uns amigos, duas câmeras, play - era isso. Bem livre.
Editamos na Baixada Nacional Filmes. O fato é que gostamos muito dessa parte: adoro participar da edição, da produção, me envolver com os detalhes. E isso, de uma forma ou de outra, acaba contribuindo no resultado final, numa certa unidade entre música e imagem.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Conta sobre o teu pai, o Jacaré, que era intelectual respeitado. Ele influencia tuas criações?
Pedro Metz - Acho que minhas composições são bem diferentes das coisas que ele fazia. Meu pai ia fundo no lance "poético". Eu tento ser um pouco mais coloquial, meus autores preferidos são caras como o Salinger, o Fante, o Capote, o Jack London.
Ele gostava do Erzra Pound, Mallarmé, lia muito Borges. Era fascinado pelo Dylan. Então nossas raízes são um pouco diferentes. Acho que ele tinha espirituosidade fora do comum - os amigos eram absolutamente apaixonados por ele. Era desapegado, viveu sempre duro, enfim, o cara era muito afudê.
Acho que isso foi o que mais me marcou. Essa coisa de ser simples. Mas claro que gosto bastante da obra dele. Uma pessoa muito inteligente e que faz falta pra caralho. Mas penso que se talvez ele não tivesse morrido eu não seria quem sou. A morte dele me motivou a produzir alguma coisa. E foi na música que encontrei um monte de respostas.
[DESORIENTAÇÃO]] - Qual sãos planos da banda? Tão gravando novo disco?
Pedro Metz - Vamos fazer as gravações do próximo álbum no sítio da minha mãe, em Três Coroas, como foi gravado o primeiro. Já tá tudo composto e vamos aproveitar pra registrar imagens pra um documentário. Tô numa ansiedade tremenda pra começar a gravar e esperamos lançar no segundo semestre.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Diz aí o que tu quiser, meu!
Pedro Metz - Bom, valeu pela entrevista, foi ótima, ainda mais que tou fazendo 30 anos e as perguntas me fizeram pensar num monte de coisas legais sobre minha vida.
Um grande abraço e até breve!
CINCÃO!
Ok Computer – Radiohead
Hoje em dia o Radiohead não nos influencia tanto como nos primeiros anos de banda, mas Ok Computer, provavelmente, é um dos discos que mais escutamos em nossas vidas. É o Dark Side of the Moon dos anos 90, no sentido de se fazer um álbum "conceitual".
As músicas são belíssimas, os arranjos irretocáveis. Transmite a emoção de uma banda que sabia que estava fazendo algo maior.
In it for the Money – Supergrass
A forma como o Supergrass constrói as melodias é inusitado e peculiar. É uma banda versátil, conseguem atirar em todas as direções com qualidade. Este disco marcou demais minha saída da adolescência e ainda o tenho como um dos principais referenciais.
Definitely Maybe – Oasis
Tá lôco! Quando vi esses caras pensei como todos os garotos ingleses: "Quero ser eles!" Na real, queria muito ter sido jogador de futebol, mas rompi ligamentos com 19 anos e, durante a recuperação, só ouvia Oasis - banda que, se te pega, é um lance meio hipnótico, tu não consegue ouvir outra coisa.
Por isso que os fãs de Oasis são meio ignorantes musicalmente. Mas os dois primeiros álbuns têm uma importância muito grande pra mim.
Imagine – John Lennon
Pedi pra minha mãe comprar um disco que tivesse "Imagine". Só que ela me deu a fita cassete do Shaved Fish. Então, desde a infância, quanto à música, o Lennon já era o cara mais importante da minha vida.
E o álbum Imagine é foda demais. Tenho o dvd do making of e já assisti umas vintes mil vezes. Lennon é o maior de todos.
Álbum Branco – The Beatles
Minha porta de entrada nos Beatles. Não que não os tivesse ouvido antes, mas o Álbum Branco foi o que me fez ir atrás de todos os outros da segunda fase. Tinha um tempão que não escutava esse disco, mas recentemente voltei a ouví-lo - é inacreditável como os Beatles só faziam músicas boas!
MARCOS!
"Mary" – Supergrass"
"Marquee Moon" – Television
"Life on Mars" – David Bowie
"Jealous Guy" – Johnn Lennon
"Time Wait for no One" – Rolling Stones

uM lUGAR qUALQUER

sexta-feira, 21 de março de 2008

pETER bAIESTORF: "tUDO é pERMITIDO"

Por trás das câmeras, do boom de qualidade pós-Cidade de Deus, das discussões de Tropa de Elite, dos roteiros da Globo Filmes, da "unanimidade" sobre O Auto da Compadecida - e dos festivais - tem gente que acha a sétima arte feneceu.
Está morta na maneira que passa no cinema pro público, não importa se hollywoodiano, cult-movieniano ou de videolocadora nos fins-de-semana.
Por detrás de tudo isso e do que há de positivo acontecendo com o cinema brasileiro, nos últimos anos (ainda convalescendo do golpe que levou nos anos 90, mas quase totalmente recuperado), tem um cara que, no editar das fitas e no vai-e-vem das crises, não desiste do seu sonho. Ou melhor, do seu pesadelo estético - nunca.
O nome é Peter Baiestorf, o cineasta catarinenense que leva no ombro a câmera do gênero "faço o que quero e foda-se" no Brasil. Basicamente, pra quem saca a linguagem de Baiestorf, o que ele faz, no fim das contas, é arrancar grandes risadas de divertimento do fiél e doentio público.
Contudo, 100% das pessoas que não apreciam o seu gênero ultratrash de cinema acha que ele deveria ser internado num hospício, antes que suas fantasias saiam das telas pros lares. Como Bela Lugosi, que foi o Count Drácula pelo resto da vida. E que Drácula: I neverrr drrink...wine.
Baiestorf já horrorizou muito, mas também fez rir pra caralho com produções como Boi Bom, marco do udigrudi nacional. Ele, que não pára, agora anunciou sua mais nova produção, uma parceria com a Bulhorgia Produções, o poético título - Arrombada: Vou Mijar na Porra do seu Túmulo!!!. Deve ser lançado em outubro.
Nos filmes da Canibal Filmes espera-se de tudo: violência explícita, mulheres nuas, estranhas parafilias, música splatter & humor negro. E sonoras gargalhadas.
Segundo Baiestorf, Arrombada é uma história de amor carnal-necrófilo com as participações do seu gêmeo xipófago, o "abominável" Coffin Souza, Carli Bortolanza (maquiagens) e a estréia da atriz pornô Ljana Carrion, que teve o cachê dobrado para aceitar filmar cenas de sexploitation com Souza.
Como um fã de Baiestorf definiu, no estranho domínio da internet, se você gosta de fortes emoções, efeitos especiais de tirar o fôlego, bandas consagradas criando soudtracks, momentos de companheirismo & amor ao próximo, pode tomar no seu c*":
"Agora, se prefere assistir a um filme realmente livre das frescuras, que ultimamente tomam as grandes telas, ver muita podreira, sexo e metal barulhento arregaçando os tímpanos vá assistir à nova produção da Canibal".
Nas palavras do diretor, assista: "Vai deixar você feliz".
Peter Baiestorf é de Palmitos, Santa Catarina. The Texas Chain Saw Massacre poderia ter sido rodado lá tranqüilamente.
Ele é um expoente do terror nacional com influências que vão de diretores como Zé do Caixão, John Waters a Pier Paolo Pasolini, só pra ficar nos mais conhecidos.
Direto do seu covil pestilento em Palmitos, Baiestorf deu essa entrevista exclusiva, proibida para menores de 18 anos e pessoas de estômago fraco. Se você se encaixa no perfil, é melhor não ler:
[[DESORIENTAÇÃO]] - Perversões sexuais & produção cultural são A nitroglicerina do cinema trash?
Baiestorf – Na arte tudo é permitido e qualquer manifestação artística é válida. Sou daqueles que acredita que a perversão encenada é algo maravilhoso. Na vida real sou mais tradicionalista: a favor de pena de morte aos estupradores e pedófilos, políticos corruptos e padres.
[DESORIENTAÇÃO]] - Como explica a predileção por temas tabu das produções de baixo orçamento – sadomasoquismo, bondage, zoofilia & outras esquisitices?
Baiestorf – Vídeolocadoras e cinemas estão cheios de filmes "normais". Istoé, quem vai querer pagar pra ver a mesma coisa de sempre com uma produção medíocre e sem recursos financeiros? Quer desbancar uma novela da Globo? Coloca no ar, no SBT, uma novela às 8 horas da noite com roteiro esperto: incesto, pedofilia sugerida, necrofilia, sadomasoquismo. Vai causar impacto e audiência!
[[DESORIENTAÇÃO]] - Teoricamente, os trash movie deveriam ser fenômenos urbanos, não é? Qual razão pra turma do interior do Brasil, especialmente Santa Catarina (Cascavel, Chapecó, Palmitos), ter se tornado pólo dessa estética? Tédio?
Baiestorf - Os capitalistas estão conseguindo aquilo que estava traçado no seu plano: construir um mundo maravilhosamente globalizado. Com Internet e TV ao alcance de qualquer pessoa no mundo – tudo acaba ficando igual! Hoje não existe mais essa separação – é tudo a mesma merda...
Ninguém quer ser diferente, todo mundo quer ser igual, essa é a real! A Canibal é um caso à parte, já que filmes como Gore Gore Gays e Sacanagens Bestiais dos Anjos Arcanjos Fálicos tiveram que ser filmados com pessoas de todos os cantos do Brasil, cidades grandes e pequenas. Foi impossível reunir equipe técnica e elenco num local apenas.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Fala das tuas produções doentes.
Baiestorf – A Canibal ficou mais grotesca em 1998, quando lançamos dois longas-metragens e um curta (Boi Bom) que causaram impacto extremo no underground nacional. Mas nossa estética pervertida vem desde 1992, quando filmei o não-concluído Lixo Cerebral, que tinha a cena de um cara defecando e um garoto de onze anos remexendo em tripas e comendo carne humana – ou seja, canibalismo.
Em 95, fiz o, hoje considerado clássico do vídeo gore nacional, O Monstro Legume do Espaço, com cenas de necrofilia e coprofagia. Depois foram quatro longas: Eles Comem Sua Carne, sobre canibalismo com uma cena de amor necrófilo, onde o amante desmenbra sua noiva e volta à condição de feto em meio às vísceras da mulher, recusando-se a viver nesse mundo.
Veja bem: os canibais eram ateus que se alimentavam da carne de fiscais da Prefeitura de Palmitos...
[[DESORIENTAÇÃO]] - Do que mais você foi capaz?
Baiestorf – Caquinha Superstar a Go-Go, com coprofagia, necrofilia e um padre tarado que, além de necrófilo, era bicha e se masturbava com uma cruz sobre o túmulo de uma morta. Blerghhh, um filme policial gore que mostrava um terrorista torturando uma ninfeta (garota com mais de 18 anos, lógico!).
Além disso teve Drogada e, ainda, Bondage, dedicado aos amantes da prática homônima. Em 97, realizei, com estética de cinema marginal e surrealismo, o longa Super Chacrinha e seu Amigo Ultra-Shit em crise vs. Deus e o Diabo naTerra de Glauber Rocha - sem nenhuma perversão.
Mas produzi dois médias no tema: Bondage 2 (com Bondage, sadomasoquismo e sangueira, pois a primeira parte foi bem vendida) e Chapado (sobre três caras drogados, em que um deles, em plano delírio, faz masturbação anal sobre uma cruz gigante e uma mulher vestida de Tor Johnson beija uma cabeça decepada podre).
[[DESORIENTAÇÃO]] - Alguma dessas produções assustou até mesmo os maníacos?
Baiestorf - Sim. Em 98, fiz dois longas amaldiçoados por todo mundo e que não possuem público - foram totalmente rejeitados, assustando até mesmo os tarados. Esses filmes foram pensados para serem assim: grotescos e com fundamentos sociais/religiosos, onde utilizamos a narrativa debochada pra brincar com temas proibidos.
Estou falando de Gore Gore Gays (sinopse: dois viados pervertidos deixam de ser viados após um deles cortar fora o pênis e viram assassinos necrofilos e coprofágicos) e Sacanagens Bestiais dos Arcanjos Fálicos (sinopse: cientista estuda a cabeça de um padre e um fotógrafo/jornalista que possuem apego por todas as taras conhecidas), que filmamos simultaneamente e talvez sejam os dois filmes mais ferozes dos anos 90 produzidos no Brasil, com suas críticas sociais contra o povo/sociedade brasileira que é totalmente pacífica e acomodada.
Já dizia Jörg Buttgereit: 'Cada sociedade tem os filmes que merece!'.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Espera que algum dia esses filmes sejam "compreendidos"?
Baiestorf - Esses dois longas-metragens são filmes malditos e incompreendidos, mas tenho certeza que as gerações futuras encontrarão neles o significado pra todo o "deboche anárquico" que colocamos na tela.
É como outro filme incompreendido, Boi Bom, o curta em que coloquei Jorge Timm (um ator de 150 quilos) matando um boi a dentadas vestido de gaúcho, lógico!
E graças à censura financeira, chegamos fálidos de grana ao ano de 99. Daí optei por deixar minha produtora mais acessível ao público. Desde então, estou rodando filmes menos radicais, como Zombio e Raiva, produções gore mais comerciais, com críticas mais sutis, que existem pra vender e dar dinheiro, já que faço com recursos próprios.
Mas não arrependo-me, em momento algum, de ter feito esses filmes: são um "mal necessário" à sociedade brasileira que vegeta enquanto é culturalmente depredada.

quinta-feira, 20 de março de 2008

eSCOLA dE rOCK

Ora vejam só: Frank Jorge veio me pedir "autorização" pra usar os textos do blog no Curso de Formação de Produtores e Músicos de Rock.
É lá que ele impõe sua batuta na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), região metropolitana de Porto Alegre.
O curso não tem precedentes no Brasil - o único, é preciso frisar, e muito bem organizado pelo Frank.
Uma demanda reprimida que o músico sacou e viabilizou de forma acadêmica e extremamente profissional. Banzo é bom pra sentir saudades; rock é um lance de iniciativa. Uma frase aqui só pro texto não ficar desalinhado.
Dá pra dizer que, no Rio Grande do Sul, dada a estrutura criada com o tempo, os profissionais egressos do curso vão encontrar pela frente espaços, no mínimo, decentes pra exercer sua formação.
O curso, na boa, só qualifica mais o ramo, incentiva produções, abre cabeças, descompacta visões. O Frank, na real, tá de parabéns por ter pensado numa providência dessas, muita oportuna. Com a benção do Beefheart, que se frutifique em muito rock, arte & poesia! Que a expertise gere receita & mercado.
A proposta dele é usar os "textos 'desorientados' como referência autoral para os alunos". Opa! Espero que não me achem um louco. Mas se o cara que escreveu "Amigo Punk" pediu, então, mais que ótimo. Eu, que mil vezes ouvi os discos da Graforréia, fico honrado.
Diz ele sobre o texto do Beefheart, o caapomonga (o substantivo existe, pode procurar no dicionário, mas não te assusta, bagual) explêndido que não desgruda dos ouvidos - bruxaria que se instalou no player:
Gostei muito das tuas colocações; uma ou outra um pouco infantis e rabugentas, o que entendo perfeitamente, diga-se de passagem. Vejo que faz parte da nossa humanidade essa coisa do 'antes era muito melhor'. Só cuidado pra não parecermos nostálgicos e esquecermos que homens e dinossauros jamais coexistiram no planeta
De total acordo, mestre!
Brincadeiras a parte, termina o compositor que nos deu "EU": "podemos, sim, gostar mais das bandas dos 50, 60, 70, 80 aos invés dos 90 e 2000". As dos 80 tou meio que dispensando - beleza, Frank?
Bem pouco tempo atrás, vamos lembrar, fixar-se no passado era a coisa over - mas, agora, em voga a Lei do Eterno Retorno de Nietzsche, isso tá mudando. Até que o velho fique velho de novo e tudo vá pro espaço.
Tentei arrancar a fórcepes, novidades sobre a Graforréia Xilarmônica (assista!), mas nosso Jack Black não abriu o bico. Quer dizer que alguma novidade quente deve pipocar por aí - só que, por favor, não incomodem o homem com isso por enquanto! Deixem o cara trabalhar.
Legal é falar dos guris do seu curso de rock. Eles foram destaque na festa de confraternização realizada pela Unisinos no final do ano. Liderados pelo Frank, contaram com a participação da funcionária Aline de Abreu, nos vocais, para toarem juntos "Like a Prayer" e "Amigo Punk" (um projeto de lei tramita na Câmara dos Deputados para fazer da música o hino do RS). Só imagino...
Cada semestre começa com uma palestra legal. Arthur de Faria, músico e jornalista, comandou a aula inaugural 2008/1 com a exposição Dinossauros & Protozoários - a pré-história do rock gaúcho:
"Para compreender o que se ouve hoje tem que voltar e ver como se forma a música popular gauchesca. Polca, habanera, xote - tudo começa por aí", desfiou Arthur, que também comanda O Seu Conjunto.
O curso ensina os alunos a gerenciar a própria carreira, história do rock, dá noções sobre senso estético, mostra - de forma aplicada - como relacionar-se fluentemente com os meios de comunicação, a utilização das ferramentas tecnológicas:
"Pretende incutir nos alunos novo entendimento do papel do músico hoje em dia", postula o professor.
A estrutura curricular tem quatro módulos:
Construção de referências
Identidade musical e elaboração de repertório
Produção musical
Preparação da carreira
TIME DE COBRAS
Alexandre Birck: Músico e produtor, baterista da Graforréia Xilarmônica, ex-integrante do De Falla
Charles Di Pinto: Produtor norte-americano radicado em Porto Alegre. Trabalhou com Tom Bloch e Bidê
Fabrício Carpinejar: Poeta e jornalista, mestre em Literatura Brasileira pela Ufrgs, coordenador do curso de Formação de Escritores e Agentes Literários
Frank Jorge: Músico, compositor e escritor. Formado em Letras pela Pucrs e em Radialismo pelo Senac. Toca com a Graforréia Xilarmônica e tocou com Cascavelletes e Cowboys Espirituais. Lançou dois discos-solo
João Paulo Sefrin: Bacharel em música, com habilitação em Regência, formado pelo Instituto de Artes da Ufrgs. Regeu a orquestra Jovem da Ufrgs. É regente e diretor musical do Grupo Vocal Mandrialis

quarta-feira, 19 de março de 2008

tAMBÉM nÃO eSTAVA lÁ

Barbada dizer como Tod Haynes fez de I'm Not There uma cinebiografia com a estatura da criatividade do maior gênio da música popular do século 20 – Robert Allen Zimmerman, o velho Bob Dylan. Haynes entendeu que Dylan viveu a vida de uns mil homens.
I’m Not There leva dos súditos suspiros de aprovação e atiça o público que até hoje pensa que Dylan é o prosador fanhoso e profético de "Blowing in the Wind" - e só. Se apenas a vida do poeta, tivesse vivido Dylan, "a lenda" ele já seria com certeza.
Pelo jeito, o cineasta Tod Haynes é outro aficcionado por cultura pop. Pontuando melhor, Haynes é aficcionado pela história da música pop.
A questão não é só semântica - tem significação profunda. Diminuindo & maximizando: é aficionado pela história da música. Assim fica bom.
Cultura pop tá mais pra fenômeno de caderno dois do que pra léxico definidor de "conjunto de conhecimentos" - numa tentativa sociológica de se especificar o pop, já que o HengHaw também tentou no "Papa é Pop" - então, a gente também pode, né, Humberto?
Apesar das bobagens açucaradas da usina de entretenimento musical, na qual tanto gostamos de chafurdar diariamente (eu também, não pensem vocês), cultura pop, no fundo, pare pra pensar um minutinho, é aquele conceito divertido que o Roland Barthes percebeu e - click (!) - chamou de - vou soletrar: f-a-i-t d-i-v-e-r-s. Fait divers.
Palavra e tanto. Aprende-se na faculdade, mas ninguém nunca presta atenção. Nome de banda, poderia ser, inclusive. Que tal? Dá pra montar uma banda de rock neoísta, o conceito Monty Cantsin de nome múltiplo, o pop star aberto.
Terrorismo poético-new wave pra disseminar a soberania de uma única banda com mesmo logotipo, trajes, canções, ideário e, obrigatoriamente, mesmo nome, claro, pra estabelecer-se no quadrilátero da fétida & mal-freqüentada Interzone. Alôôô, Carneiro, chama o Plato e o Doctor Benway!
O som, já sugiro, poderia ser The Fall, Throbbing Gristle & The (International) Noise Conspiracy (pra botar um situacionismo no meio) com pegada do The Sonics - só pra ver em que loucura isso ia dar.
FAIT DIVERS: Nascimento de bezerros de duas cabeças, gêmeos grudados pelo ventre, crianças com três olhos, microanões, celenterados amestrados, pulgas domesticadas. Todos esses fetiches com os quais o SBT adora nos excitar eroticamente, dia e noite sem parar.
O que, além dos fatos, é lido como "notícia" nos jornais todo o santo dia e, agora, nos portais do inferno midíatico também. Presta atenção que todo grande site sempre tem uma manchete trash nos atraindo a visão - Videodrome! Não tou dizendo que nada disso deveria deixar de existir, certo? Não vão pensar que...Já tão pensando.
No rock é ler nos tablóides que Damon Albarn pegou Justine Frischmann, depois tomou o fora da lady junkie, o pobre dandy. Diferente, por exemplo, de saber que o Bill Wiman ronca em "She's a Rainbow", do Their Satanic Majesties Request. Fato, ele ronca. Tá lá gravado.
Assim como a vida de Dylan, I'm Not There, que ainda não entrou em cartaz no Brasil (mas deu pra ver no IX Festival Internacional de Cinema de Brasília e em outras mostras), não é um filme fácil: cut-up de fatos & fotos, idas & vindas, voltas & reviravoltas, conversões & desconversões na vida do Mr. Tambourine Man, dá pra dizer. A mais completa loucura.
Os neófitos correm o risco de sair boiando da sessão; em nenhum momento apresenta-se uma cronologia da vida de Bob Dylan. O que mais deve ter confundido a cabeça foi a solução bem sacada do diretor, ao colocar vários atores para interpretar diferentes fases da vida de Dylan com atuações absolutamente metafóricas. Funcionou perfeitamente. Foi um dos últimos trabalhos de Heath Ledger.
Tem o garoto negro de onze anos (Marcus Carl Franklin) que perambula com um violão apresentando-se como Woody Guthrie, o mentor de Dylan; um sábio surrealista (Ben Whishaw) cuja atuação são apenas charadas de simbologia enigmática - o fascínio de Dylan por Arthur Rimbaud; o velho excêntrico Billy The Kid (Richard Gere) que percorre o Wild-Wild West em retiro voluntário do mundo moderno - na verdade, um paralelo à estadia de Dylan num local retirado próximo à Woodstock, em Nova York, onde gravou com The Band The Basement Tapes.
E a maior sacada de todos os tempos: a chapadona Cate Blanchet emprestando sua pele de nívea para, justamente, o papel do provocador Dylan que agitou a Inglaterra, puxou fumo com os Beatles (o Fab são quatro bobalhões fugitivos da alucinada turba feminina) e "chineleou o pico", para usar a gíria portoalegrense, com a imprensa britânica.
Mas com um coração que também bate pelos outros, às vezes. Pressionado pela súplica do jornalista para "dar uma palavra à imprensa inglesa", Dylan lança mão do sarcasmo lacônico que motiva os incompreendidos: "cosmonauta".
O subtítulo já entrega o sabor da narrativa montada por Haynes - "Inspirado nas várias vidas de Bob Dylan". Bob - dessa vez vou me permitir falar assim (se o Eduardo Bueno pode eu também!) - aprovou o formato da produção e permitiu ao diretor a mais rara das concessões: usar suas músicas no filme.
Era pra David Bowie ter feito o mesmo no exagerado Velvet Goldmine (1999), filme de Tod Haynes sobre o glitter rock, inicialmente pensado para homenagear um dos alteregos do cantor, Ziggy. Mas o superego de Thin White Duke não aprovou, ainda proibiu Haynes de utilizar as músicas, o que pegou meio mal não sei pra quem - um ou outro.
Ficou apenas o nome, Velvet Goldmine, título de canção bside de um single de Bowie. A trilha sonora é ótima, com músicas feitas especialmente pro filme - special guest de Grant Lee Buffalo, Teenage Funclube, Brian Eno, fora Roxy Music, T-Rex, Steve Harley, que completam a soundtrack.
Haynes, fã de Dylan na puberdade, voltou a escutar o velho poeta à beira dos 40, quando iniciou o roteiro do drama Longe do Paraíso (2002). Foi vasculhar músicas, ler biografias, ficou perplexo com todas as transformações de Dylan: "O que mais escutava de relatos sobre ele era a respeito de uma vida de infinitas mudanças, de uma maneira muito mais profunda em termos culturais do que as modificações camaleônicas de David Bowie ou Madonna que rolariam décadas mais tarde", comentou.
Mudanças que tiveram profundos efeitos intelectuais, culturais e quase físicos no público de Dylan: "Ele liquida com tudo que você acredita, todos os seus padrões e conceitos. Ele sacode tudo aquilo que as pessoas construíram para servir-lhes de base. Sempre que você pára para prestar a atenção nele, ele já está em outro lugar. Achei que a única forma de contar uma história em um filme sobre ele seria exacerbando esse fato, usando isso como o princípio para organizar a narrativa, ou as narrativas".
I'm Not There reproduz com fidelidade passagens marcantes da carreira de Bob Dylan, como o famoso show de 1966, no Royal Albert Hall, Inglaterra, no qual um fã grita lá pelas tantas: "Judas!", e Dylan responde - "Eu não acredito em você!".
MEMORABILIA - Desde 2001, Bob Dylan vem revelando pistas de quem é Robert Allen Zimmerman. Dylan abriu seu baú de memórias. Lançou o livro Down the Highway: The Life of Bob Dylan (Conrad Livros), biografia assinada por Howard Sounes.
Em 2005, publicou o volume um de Crônicas (Editora Planeta), onde ele mesmo relembra o passado em textos curtos. Depois, saiu o imperdível No Direction Home, documentário de Martin Scorsese.
Ainda lançou o excelente álbum Modern Times (2006). Veja, reveja e junte tudo isso. Ainda vai faltar todo o resto para entender o mínimo sobre Bob Dylan.

terça-feira, 18 de março de 2008

a bANDA mÁGICA dE cAPTAIN bEEFHEART

Por um tempinho (mas só por um tempinho, viu?), esqueça "os discos mais importantes da história do rock": Sgt. Peppers, Pet Sounds, Os Mutantes, Are You Experienced – essas maravilhas canônicas.
Largue de mão, por uns dias, daqueles que já passaram, inclusive, de recém-redescobertos: London Calling & Pet Sounds. Ou os clássicos cult: VU, The Slider, All the Young Dudes, Unknown Pleasures.
Relaxa, as obras-primas vão existir pra sempre. Nenhum advogado vai dar sumiço nelas, a liga Wasp não tá nem aí e a Igreja Católica não vai medir forças e esconjuros com o poder imbatível & satânico do rrrock.
Do umbral, novas levas de discos extraordinários e esquecidos, quase alienígenas, de autores fantasmagóricos - sim, mortos! - clamam em maximum volume para reencarnar novamente em ouvidos esquecidos de roqueiros que andam meio desligados e muito indulgentes com o passado.
É possível que se façam de surdos, mas não de loucos (ou será o contrário?) ao apelo renovador dos grandes discos. Em troca de resgate, oferecem alento em meio ao excesso de repetição & mimetização desses dias inomináveis.
Entes vivos, esses álbuns são missionários de antigas boas novas que tão valendo. Nós é que perdemos a noção, preferindo adorar hypes insuportáveis como óleo de rícino ou mais passageiros que o Iggy naquela música - não a versão do Capital Inicial, por favor!
Neles, ainda há fôlego para superar a pasmaceira travestida de novidade, com excessões aqui e ali, que tomou conta do rock "atual". Como as pedras, o rock ainda rola nos shows, nos discos, nas plataformas de sempre - só que, faz algum tempo, agora o rock é das pistas (!) - e todo mundo concorda que isso é moderrrnidade (com três erres mesmo): o rock "das pistas".
Estamos todos roubados. Na década de 70, o rock das pistas era a Disco. Se for assim, vão deixar só pro Radiohead fazer os verdadeiros álbuns e, daí, putz, que saco vai ser. Grandes álbuns de rock carecem ser deprês em alguns momentos, mas também precisam ser alegres e anarquistas.
Além disso, existe a suspeita de que a tecnologia, antes proclamada como a grande revolução televisionada, tem tolhido a criatividade nos estúdios. Tomara que não.
Álbuns que ficaram perdidos no passado agora são fonte de sonoridades futuristas. O tempo é implacável com o bom e não perdoa o ruim. Esses discos ficaram décadas esquecidos, agüentaram modas fugazes e mofaram nos compartimentos empoeirados das discotecas.
A alquimia foi feita: converteram-se em elixires sonoros. Saboreá-los agora é uma honra e, sobretudo, deleite. A new generation de bandas precisa, urgentemente, ouvir outros fabulosos discos que os arquivos do rock têm guardados em milhares de gavetas - e não só aqueles clássicos citados no início do texto.
Simples assim: se as bandas não ouvirem tudo que, como lição de casa devem ouvir (e não é pouco!), para terem alguma noção sobre estética do rock, tão fodidas. Vão ser uns comuns. Vão usar t-shirt do David Bowie sem nunca ter ouvido The Man Who Sold The World.
E a imprensa, que não perdoa, sempre vai falar mal. É óbvio. Por mais que os crossoveres regionais e as boas intenções imperem, não há "mistura" que segure a onda. Depois, não adianta chorar, se descabelar, achar que é o fim.
Os Ramones, para chegar na sua genial simplicidade de três acordes, antes, tietaram todas as melhores bandas: Joe Ramone era fanático por rock, amava Marc Bolan, Slade, Johnny Thunders; enlouquecia com o wall of sound do Phill Spector e delirava com os timbres de guitarra que Tony Visconty conseguia com Ronson/Bolan.
Joe era um apaixonado por canções e produções. Por isso deixou o legado que deixou. O Renato Russo, para engajar legiões, parou para ouvir todos os fantasmas que dialogavam com a sua sofrida alma - de Nick Drake a Tim Buckley, de Maddona a Edith Piaf. Uma genialidade que não é exclusivamente dele, portanto. Hoje, sua coleção de discos é uma pinacoteca em Brasília, famosa por catalogar os discos que ele escutou para compor seu famoso hinário.
Safe As Milk (1967, RCA), do Captain Beefheart & his Magic Band, é base sonora perfeita para perceber que as roupagens do rock atual já tão todas megaover, belvedere certo para dar um breakzinho na redundância - sempre em cima das mesmas referências e clichês. Os mesmos cabelos, o jeito de tocar guitarra. Até isso.
Ninguém, com bom senso & tímpanos com tolerância limitada, suporta mais os simulacros mal ajambrados de estética novaiorquina e britânica da década de 70 e início dos 80 que sobrelotam o cenário. O cenário de hoje tem muito das pistas de dança: o cara enjoa e ninguém quer mais saber da banda. É ela que dança no esvaziar do salão.
Será que todo mundo pensa que vai formar uma banda, fazer os trejeitos do Tom Yorke ou, pela quadribilésima vez, emular The Who e Beatles e, ainda assim, pensar que está fazendo algo legal e "fresco"?
Música ficou no segundo plano. Uma explosão inevitável de imagens, modelitos descolados, videoclipes frenéticos, clipes mais legais que a música - a música, que está a frente da imagem, quando o lance é a própria música. E o fashionismo? Franjinhas emo, terninhos mod, sei lá mais o que e, agora, as munhecas, além da balaca. Gostaria que alguém me explicasse pra que servem as munhequeiras...Rock wear?
E o som?! O som...Bom, o som, deixa pra lá. Seja no Brasil, fora do Brasil, na Antártida ou na Islândia: Deu, cansou. Como o novo não passa de quimera, poderia ter dito Cortázar - Máquina do Tempo, por favor: Ativar!
ROCK AS SAFE - Safe As Milk é uma experiência psicodélica maravilhosa - e por excelência. É o disco mais acessível do louco, músico & pintor Don Van Vliet, o Captain Beefheart. O sujeito era comparsa de infância de Frank Zappa e depois virou seu parceiro musical. Daí já viu.
Segundo o arqueologista do rock Bento Araújo, editor da revista Poeira Zine, a idéia original de Beefheart (como se fosse possível prever o que se passava na cabeça desse maníaco) era fundir blues do Delta do Mississipi com free jazz e música concreta de Stockhausen & John Cage: "Beefheart queria soar como se Howlin Wolf tivesse tomado ácido e passasse a recitar peças de poesia surrealista, nunca mais tendo uma chance de recuperar sua sanidade novamente", define o jornalista.
Para se ter uma idéia, Beefheart fazia esculturas e pinturas aos quatro anos de idade, quando a família foi morar no deserto de Mojave. No meio do deserto, desenvolveu sua musicalidade aprendendo sozinho a tocar sax e gaita. As habilidades lhe deram amizade (na escola da região) com outro músico inovador, Frank Zappa. Não demorou muito e estava tocando com as bandas locais The Omens e The Blackouts.
Bento lembra que a peculiar voz de quatro oitavas de Beefheart era quase impossível de ser gravada. Não é a toa que, durante as sessões de Safe As Milk, vários microfones foram avariados assim que ele abriu a boca, dada a violência vocal: "Busco o som de uma serra-elétrica cortando uma chapa de metal", disse Beefheart.
Em 1969 saiu o duplo Trout Mask Replica, produzido por Zappa com nada menos que 28 atentados musicais. Não é digerível nas primeiras audições e gerou muito mais influência do que $$$. Do prog ao punk, em colisão à new wave, ninguém saiu ileso.
A música de Beefheart tinha o acompanhamento de um grupo rotativo de músicos chamado Magic Band, que esteve ativo do meio dos 60 ao início dos 80. Van Vliet, famoso pela fama de ditador com os músicos, também tocava saxofone de uma forma barulhenta e sem didática, o estilo free jazz. As composições têm a estranha mistura de marcações de tempo inusitadas e letras surrealistas.
Safe As Milk é um precipício de boas surpresas do início ao fim. Abre com um típico e inofensivo blues, "Sure 'Nuff 'N Yes I Do", e pula para o embalo rock-garageiro-psicodélico de "Zig zag wanderer" - que pode funcionar nas pistas de dança mais criativas & ousadas, sem que todos fiquem te olhando com aquela cara atravessada de "que porra essa?!"...
Uma beleza da natureza. Safe as Milk não é só insanidade. Algumas vezes passeia de mãos-dadas por baladinhas singelas e delicadas, como "Call on me" e "I'm so glad", boas para dar apaixonados beijos na boca.
A voz de Don Van Vliet é instrumento poderoso, que ele usa & abusa em "Electricity", música de vocal sinuoso acompanhado de guitarras mais zombeteiras que vespeiro em dia de eleição. Assombroso!
"Dropout Boogie" entrega porque Mark Arm, o cara do Mudhoney, falou que Safe as Milk é um dos venenos prediletos na sua estante de discos em Seattle. Disco que ele não tira da vitrola.
Recitando divertidas onomatopéias, em determinado momento parece que ouvimos Beefheart clamar em "Dropout Boogie": "♪ Cebola, Cebola! - ♪ Cebola, Cebola!". Demais.
Mas o que Sr. Bigg Muff me confessou:
Qual álbum da primeira era piscodélica não sai nem a pau do seu player?
Arm - Escuto um monte de coisas diferentes e, uma hora ou outra, todas acabam deixando o meu toca-discos. Mas, Safe As Milk, do Captain Beefheart & the Magic Band é um grande álbum da primeira fase do piscodelismo. Assim como The Psychedelic Sounds, o primeiro do 13th Floor Elevators.
"Yellow Brick Road", a próxima faixa, um country rock salpicado de LSD e acid rock, antecipa todas as nuances do psicodelismo, como todo álbum, na verdade, faz - registre-se.
"Abba Zaba" é uma colagem pop de cacofonias e instrumentais inusitados. "Plastic Factory", blues com a harmônica selvagem de Beefheart, sua voz de bandido e base de guitarra fuzz lutando box com os instrumentos - mais ou menos isso, se possível. "Grown So Ugly", outro blues-rock adulterado - ninguém nunca fez blues-rock como Beefheart, nem Jon Spencer, que, esperto como é passa perto muitas vezes.
"Autumn's Child", o grand finale em soul rasgado. O início do segundo turno do pleito das vespas, um pouco mais tranqüilo e, até o fechamento das urnas, deliciosamente caótico, meio parecido com o Brasil.
O relançamento de Safe As Milk, de 1999, vem com sete bônus: "Safe As Milk (Take 5)", "On Tomorrow", "Big Black Baby Shoes", "Flower Pot", "Dirty Blue Gene", "Trust Us (Take 9)" e "Korn Ring Finger". Todas sobremesas deliciosas pós-refeição principal.
A formação que tocou em Safe As Milk é matadora.
Don Van Vliet: vocais
Ry Cooder: guitarra, baixo ("Abba Zaba" solo)
Doug Moon: guitarra
Alex Snouffer & St. Clair: guitarra
Jerry Handley: baixo
John French: bateria
Milt Holland: percussão, marimbas
Sam Hoffman: teremim
Taj Mahal: percussão
Também pudera! Agora tá tudo explicado. A história deveria ser reescrita – ao menos parafraseada: "Dos poucos seres humanos que ouviram Safe As Milk, quem ouviu, pirou".
Deus queira que as bandas descubram, no oásis de criatividade e de loucura armazenado em tipos como Captain Beefheart, onde e como nascem as grandes idéias e as belezas feitas para durar para sempre.
E vivam os novos roqueiros!

terça-feira, 11 de março de 2008

aVÔ-hERÓI

Noite dessas encontrei meu querido avô, Carlos Felisberto de Borba. Desde 13 de junho (dia de Santo Antônio, meu aniversário) de 1999 não o via.
Ele morreu nessa data. Recentemente, o vi num sonho e senti o dever de escrever sobre ele. Desde então, não passa um dia em que dele não me lembre. Escrevo levado pelo embalo tranqüilo do legendário álbum Chrome Dreams, cortesia de 1977 do mestre Neil Young. Não sei porque, apenas fui induzido a botá-lo no player e deixar rolar.
Nunca fui bom para guardar sonhos. Os esqueço assim que boto os pés pra fora da cama. Mas dessa vez foi indelével. Ficou registrado na alma, como gado marcado com ferro em brasa. Foi assim: meu avô Carlos & eu estávamos na cidadela de Las Palmas de Gran Canaria, região litorânea da Espanha, de onde meus ancestrais despacharam as raízes dos Hernandes, a família do meu bisavô, por volta de 1917 - em nível Oscar, Las Palmas é a terra natal de Javier Barden, o premiado deste ano na categoria melhor ator coadjuvante.
Jesus Hernandes Martins, avô de meu pai, Jesus Hernandes Bastos, trazia da Espanha o curioso relato: nunca comera bananas que não fossem maduras. Os cachos aportavam em Las Palmas vindos dos recantos tropicais do planeta e amadureciam nos porões escuros das embarcações. No Brasil, deliciou-se comendo a primeira banana "ao ponto" de sua vida.
No início do século, meu bisavô espanhol estabeleceu-se em Caxias do Sul, na serra gaúcha, tornando-se o primeiro comerciante a produzir vasilhames de vidro, os garrafões, nos quais, ainda hoje, muitos produtores envasam as produções locais.
Antes de surgir a concorrência, as vinícolas envasavam vinho em barricas de madeira. Engarrafar o líquido em vidro era vanguarda comercial da época, ou seja, coisa com futuro bastante promissor numa região cujo comércio era sustentado pela uva.
O negócio seguia próspero para os lados da família até que a empresa Irmãos Hernandes viu-se lograda por sócios pilantras que terminaram mui ricos - e vô Jesus ficou na pior, mas sem perder a compostura.
Cheguei a curtir meu bisavô. Neném, coloquei-lhe o apelido que levou até o fim da vida e tal qual é chamado pelo familiares até hoje: "vô Xuxo". Não conseguia dizer "Jesus"... Saía apenas essa versão masculina de rainha dos baixinhos quinze anos antes. E assim ele era: brincava comigo, pegava no colo e fazia sombras na parede para me divertir e assombrar com as mãos mágicas.
Meu avô Carlos, pai da minha mãe, Beatriz, tinha descendência alemã. Portanto, nesse sonho, acompanhava-me apenas como amigo na visita àquele lugar - o qual, instintivamente sabia, me ligava às origens ibéricas. O sonho começa conosco em frente a modesta casinha, rodeada por esmerado jardim que contornava toda a construção.
Uma pequena escadaria levava à porta principal. Nem foi preciso bater. A porta abriu-se: estavam a nossa espera. Fomos recebidos por um senhor muito velho, mas lúcido e íntegro. O sorriso que iluminava seu rosto expressava imensa alegria por nos ter em sua casa.
Entramos e vimos que muitas pessoas nos aguardavam: algumas de pé, outras sentadas num sofá. Todas verdadeiramente contentes, parentes queridos que há muito me reencontravam, como se séculos terrestres nos separassem. Velhos e crianças estavam na sala, o que não fazia a menor diferença.
No sonho, a idade perdia completamente seu significado. Eram todos parentes e me conheciam há tempos. Senti-me completamente afagado e confortado pelo amor daquelas pessoas. Aquecido pelo transbordante carinho que me passavam com abraços, beijos e palavras gentis e amorosas. Era muito querido por todos e sentia a felicidade de ser amado por tanta gente.
Eles falavam em espanhol e eu em português, mas todos nos entendíamos barbaramente. Vô Carlos apenas estava ali, faceiro como sempre, sorridente (não usava mais dentadura) - era parte da família desde sempre. Guiava-me na visita. Estava muito feliz por mim. Acariciava minha cabeça e passava os dedos entre meus cabelos - que hoje, como em outros momentos, novamente são médios.
No sonho, meu avô tinha a imagem que até hoje preservo: era o eu de hoje. Ficamos ali haurindo o bem-querer que, só raramente, haurimos na terra com nossos semelhantes de carne e osso, impedidos de sermos felizes por conta do orgulho, desavenças e posturas mesquinhas, preferindo ignorar completamente a grandeza que é a vida. Acordei tomado pelo bem-estar de ter compartilhado aqueles momentos com meus "parentes do além".
Psicanálise & espiritismo - Para o espiritismo, o sonho é a lembrança do que o espírito viu durante o sono. É a liberdade do espírito e a emancipação da alma. Com meio século de antecedência em relação à psicanálise, a doutrina espírita trouxe a primeira teoria realmente científica sobre o sonho.
Segundo o Livro dos Espíritos, "o fato de ir ver, durante o sono, os amigos, os parentes, os conhecidos, as pessoas que vos podem ser úteis, é tão freqüente que o fazeis quase todas as noites".
Sigmund Freud chegou bem perto do conceito kardecista do sono, mas o enorme preconceito que ele e seus contemporâneos nutriam pelo "ocultismo" o impediu de ir além... Materialista, Freud foi capaz de iludir-se com as "virtudes" da cocaína, mas negou pontos essenciais da espiritualidade humana. Lacan, seu seguidor, levou a relação à sério.
Meu avô Carlos foi grande exemplo. Esmagador exemplo de caráter e postura ante a vida e as dificuldades que ela apresenta. O venero por ter formado o caráter irrepreensível de minha mãe, Beatriz, da qual não faço crítica alguma nesta vida: só elogios. A paixão pela música foi um de seus legados - a propósito, deixou um violão velho, de cordas de náilon, guardado atrás do guarda-roupa de terceira.
Vô Carlos conheceu minha avó, Joana Zuboski, em Santo Antônio da Patrulha, interior do Rio Grande do Sul. Ela, colona polonesa; ele, colono-violeiro. Casaram-se e foram morar com a família em Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre. Ali, meu avô começou a trabalhar como operário numa fábrica de azulejos, enquanto nas horas vagas articulava planos de viver de música e fazer disso um negócio familiar.
Autodidata, manejava com destreza todos os instrumentos. Quando os filhos cresceram, montou sua primeira banda de baile: El Presidente - que percorria os grotões do Rio Grande do Sul fazendo um "som da pesada" nas décadas de 60 e 70. Era o maestro e frontman, enquanto meus tios, Joel, Enio e Elenita (uma gatinha!), faziam o backvocal em algumas músicas.
Ainda lembro, em flash, de todos aqueles equipamentos vintage guardados na garagem de meu avô: guitarronas velhas e amplis da época. Não esqueço as reclamações da vó Joana quando a banda ensaiava em casa... O repertório era composto pelos sucessos da época: Roberto Carlos, Nélson Gonçalves, Beatles, boleros, marchinhas de carnaval, sambas-canções, ritmos cubanos, frevo e o que mais viesse à telha de meu avô.
Vô Carlos nunca deu um piu pra reclamar do que quer que fosse. De origem muito, mas muito pobre, contudo digna, ensinou a todos, sem nunca precisar ter de levantar a voz, o valor da calma e simplicidade. Em tempos de vacas magras, seu café-da-manhã de operário na fábrica de azulejos era a potente amálgama de leite com polenta - liga polaca à base de farinha de milho para encarar o duro trampo proletariado na fábrica.
Nos tempos das raras vacas magras lá em casa, minha mãe fez eu e meus irmãos, Marcelo & Ethel, comermos a famosa polenta com leite do saudoso avô. Às vezes faço isso só pra lembrar dele. É bom! Assim como tudo que não é complicado... Sempre que a mãe fazia a mistura, nos contava a história de seu valoroso pai. Coisa certa e sagrada. O respeitávamos muito. Vai ver que é por isso que Jack London foi o cara que foi. Passou fome. Soube respeitar o ter e o não-ter.
Nosso avô sempre ficava feliz com a presença dos netos, principalmente se lhes déssemos ouvidos. Idoso, sua memória permanecia um prodígio: resgatava histórias vetustas de amores antiqüíssimos que tivera no "tempo do Epa", traquinagens de moleque. Nos segredava como começara a dar seus primeiros acordes ao violão e os primeiros beijos roubados.
Contava suas aventuras de Huckleberry Finn e ficávamos apavorados com a mente do velho: eu mesmo já imaginava aquele pestinha sardento tocando violão nos matinhos de Santo Antônio da Patrulha, comendo rapadura e trovando umas minas atrás de alguma árvore...
Eu adolescente, meu avô tentou por dezenas de vezes ensinar-me seus métodos de violão. Desajeitado, jamais aprendi suas sofisticadas técnicas que ele, habilidoso instrumentista, tirava de ouvido, o desgraçado. Era um virtuose. Hoje, eu produziria o velhinho, com certeza. Ele, porém, jamais se cansava de me ensinar & ensinar & ensinar – sem jamais se irritar, nunca.
Gostava mesmo é dos velhos cantores, hoje esquecidos: Orlando Silva, Inezita Barroso, Tonico & Tinoco, Isaías & seus Chorões. Lembro que, bobalhão, ficava tentando fazê-lo entender os sons que estava descobrindo na época, coisas como Jimi Hendrix e David Bowie (!).
Ele sempre se dignava prestar atenção e apreciava, mesmo que algumas vezes o som apresentado era, de fato, uma bosta. No entanto, era eu quem não tinha tanta paciência assim, quando ele vinha me mostrar uma de suas velharias. Hoje, essa é a coisa de que mais me arrependo em nossa relação de neto & avô.
Por curto período, quando meu pai estava construindo sua casa, morei alguns meses com meu avô. Estava bem velhinho, mas sempre lúcido, até o final. Essa foi a oportunidade ímpar que tive de conversar geral com ele e ouvir todas as suas histórias & estórias. Escutei novamente, com a maior paciência, muitos relatos que já conhecia de cor e salteado.
Nunca esqueço o dia em que cheguei com mala e cuia na casinha de três cômodos dos meus avós, em Gravataí, para passar uma temporada. Fui recebido pela avó Joana. Meu avô estava de prosa na casa de um vizinho, tomando o adorado chimarrão.
Minha avó, com a rapidez de sua impressionante genética polaca, foi apressada chamá-lo. Ele veio correndo para me encontrar, na velocidade que a idade permitia: sabia que teria alguém com quem conversar sobre o (nosso) assunto predileto: música. Fiquei completamente emocionado com a visão de meu avô chegando pressuroso para me receber.
Quando adolescentes, eu e meu irmão juntamos uns trocados pra comprar uma bíblia nova pra ele, dedicado protestante, já que a sua estava completamente puída pelo uso. Foi um grande presente: o velho não escondeu a emoção. Por paralelismo, lembro de seus olhos marejados quando eu e Marcelo nos formamos no catecismo da Igreja Luterana, em Porto Alegre.
Meu avô tinha muita fé na vida e em Deus. Sabia que, quando morresse, seu encontro com uma força superior seria inevitável. Tenho certeza de que sua envergadura moral lhe garantiu boa colocação na senda do progresso espiritual.
Mas não escondia o medo. No finzinho, apavorava-se em noites de trovoadas, suspeitando que a morte desceria para levar-lhe pela mão ao outro mundo - um mundo melhor, mas desconhecido. Não morreu em meio a trovoadas: foi-se no dia do meu aniversário, um sábado estrelado, dormindo tranquilamente.
No espiritismo e em muitas religiões, o anjo-da-guarda é o guia que está profundamente ligado a nós por laços de afinidade espiritual. Nos guia em nossa evolução e nos proteje nos momentos difíceis. É o amigo constante e amoroso que Deus proporciona a todos os encarnados na árdua etapa terrena.
A doutrina espírita ensina que para se ter o auxílio do anjo-da-guarda basta mentalizar um ente querido que tenhamos em alta conta e nele busquemos ajuda e inspiração nas adversidades. Nas horas difíceis, mentalizo meu avô Carlos. E ele sempre vem ao meu socorro. É o meu herói - e os nossos heróis nunca deixam a gente na mão.
A imagem que ilustra o post é um fac-símile da desenhada pelos espíritos que ajudaram Allan Kardek a decodificar a doutrina. Simboliza o Espiritismo.

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