sexta-feira, 31 de agosto de 2007

rOCK, mEDO & dELÍRIO eM lAS vEGAS

A editora Conrad acaba de lançar, pela primeira vez no Brasil, o testamente gonzo Medo & Delírio em Las Vegas, livro de 1971 do escritor norte-americano Hunter S. Thompson. Originalmente, "Medo & Delírio" foi publicado pela revista Rolling Stone, que encomendou ao escritor a cobertura da Mint 400, uma corrida off-road de buggies no meio do deserto de nevada. Na bagagem, um arsenal de drogas - da mescalina a "uma galaxia inteira de pílulas multicoloridas", conta Thompson.

Hunter S. Thompson se suicidou com um tiro de espingarda na cabeça em 20 de fevereiro de 2005. Ele deixou um bilhete em que se mostrava deprimido e sofrendo de terríveis dores após uma cirurgia na região da bacia. Seu corpo foi cremado e as cinzas foram lançadas ao céu por um pequeno foguete, em uma cerimônia bancada pelo ator Johnny Depp, seu amigo e que interpretou o personagem Raoul Duke na versão para o cinema de Fear and Loathing in Las Vegas.

O texto abaixo é sobre isso:

Um protótipo de Deus:
muito esquisito para estar vivo,
muito raro para estar morto

A epígrafe foi extraída de uma fala do filme Fear and Lothing Las Vegas (1998) – no Brasil, Medo & Delírio em Las Vegas. É assim que Raoul Duke se refere a Dr. Gonzo, seu companheiro de loucuras intermináveis. A frase traduz o que significou a personalidade e a obra do jornalista e escritor Hunter S. Thompson para a cultura pop, para a literatura e, sobretudo, para a renovação da linguagem do jornalismo. No dia 20 de fevereiro de 2005, aos 67 anos, Thompson suicidou-se com um tiro na cabeça, na sua casa no Colorado, EUA.

O longa-metragem Medo & Delírio é uma adaptação do livro homônimo de Thompson, Fear and Loathing in Las Vegas: A Savage Journey into the Heart of the American Dream, publicado na década de 60. Ao agregar ao gênero jornalístico aspectos ficcionais e passagens dementes de sua própria biografia, Thompson cunhou um gênero - o jornalismo "Gonzo". Nele, faz de si mesmo um protagonista essencial da narrativa: "A ficção é baseada na realidade, a menos que você seja um artista de contos de fada", afirmou Thompson em 2003.
Não há dúvida de que o jornalista foi um sujeito raro – especialmente, esquisito. Sua maneira transtornada e confessadamente drogada de levar a vida, chega, às vezes, a preceder o seu próprio legado literário. No início da década de 60, antes de se tornar conhecido, o jornalista viveu no Brasil uns poucos anos como correspondente do Brazil Herald, um jornal de língua inglesa, editado no país. No Rio de Janeiro, aprontou algumas das suas. Foi preso, certa vez, por praticar tiro ao alvo em local público. Passou a conversa no delegado de plantão, mas se entregou quando deixou cair do bolso um monte de balas de revólver. Apesar da curta estadia, as reportagens que fez por aqui já primavam pelo gênero gonzo.

Na ida para o Brasil, de passagem por países da América do Sul, enviou uma carta para o editor do Brazil Herald, com o seguinte relato gonzo: “Estou no limite da insanidade. Enfraquecido pela disenteria, atacado por moscas e vermes, sem correio, dinheiro ou sexo. Perseguido 24 horas por dia por ladrões, mendigos, cafetões, fascistas, agiotas, loucos e bestas humanas de toda espécie”, relata o jornalista na carta. Quando retornou aos EUA, escreveu sobre gangues de motoqueiros e viagens químicas em Las Vegas – as aventuras que estão descritas em Medo & Delírio, sempre em primeira pessoa.

No irriquieto filme de Terry Gillian (de Brazil, o Filme e Os 12 Macacos), diretor egresso da trupe do Monty Phyton, quem vive o papel de Hunter S. Thompson – que usa o pseudônimo de Raoul Duke – é o excelente Johnny Depp. Dr. Gonzo, o transtornado amigo que o acompanha em suas "viagens", é encarnado pelo também ótimo Benício Del Toro. Tobey Maguire é apenas um pobre infeliz que pega carona com a dupla de perturbados e fica a mercê deles. Com absoluta certeza, o papel mais absurdo de toda a carreira do ator de O Homem-Aranha. O elenco conta ainda com as participações especiais das atrizes Cameron Diaz e Christina Ricci.
Não é tarefa fácil relatar a descrição que Gillian conseguiu obter, em imagens, da insanidade, da psicodelia, da drogadição e, sobretudo, da comédia que materializou em Medo & Delírio. Só assistindo para crer. A diversão é garantida. A história se passa na virada dos anos 60 para os 70. O contexto é a interminável guerra do Vietnã, os ideais da época, dilacerados, Nixon no poder... Marca o fim do sonho e o início do pesadelo americano. Nesse ambiente de confusão e desesperança, Raoul Duke e Dr. Gonzo saem para fazer a cobertura jornalística de uma corrida de automóveis. Com o porta-malas do conversível vermelho abarrotado de substâncias de todas as espécies, de mescalina, heroína e barbitúricos de toda a sorte, a substâncias mais vagabundas como álcool e éter, eles as engolem freneticamente enquanto tomam o rumo de Las Vegas. Têm início inúmeras situações insólitas de paranóia e alucinações. E muito riso.
Rock & Delírio - A trilha sonora contempla algumas músicas que fizeram a cabeça de Thompson, um notório apologista do consumo de substâncias alucinógenas de todos os tipos. Como a emblemática "White Rabbit", que surge em um dos momentos mais caóticos e irreverentes do filme. A canção, do grupo Jefferson Airplaine, grande ícone do rock ácido dos 60's, é uma das principais composições do rock a versar sobre o tema psicodelia em todos os tempos. Sua letra, de cujos personagens são Alice e o Coelho Branco do País das Maravilhas, embalados sob o efeito de cogumelos alucinógenos, pode ser interpretada como a canção de ninar mais onírica já composta, pela força das imagens que sugere.
A música aparece num instante de total alucinação de Benício Del Toro, empapuçado por um coquetel de drogas das mais bizarras. Deitado na banheira do quarto do hotel, pateticamente ele implora ao parceiro para que arremesse o tape-deck quando a música atingir o ápice. Apesar de "Somebody to Love, outro libelo do Jeferson Airplaine, aparecer no filme – durante uma reconstituição de um show da banda, quando Duke se dá conta de que os tempos estavam finalmente mudando –, ela ficou de fora da trilha.

A viagem psicodélica prossegue com as suítes "Drug Score (Pt. 1 - Acid Spill)", "Drug Score (Pt. 2 - Aorenochrome, the Devil's Dance)" e "Drug Score (Pt. 3 - Flash Backs)", de Ray Cooper, que acompanham os personagem nas horas em que estão seriamente enlouquecidos. "Combination of the Two", do Big Brother & the Holding Company, é uma pérola psicodélica pouco conhecida da banda que acompanhava Janis Joplin e, "Magic Moments", do crooner Perry Cuomo, a típica balada para bebuns que levam a vida a torrar grana nos cassinos de Las Vegas.
Uma curiosidade é um grande sucesso de 1970, "Mama Told Me (Not to Come)", do Three Dog Night, um grupo proto-heavy metal que tinha como maior preocupação o entretenimento do que passar "mensagens cabeça". A letra, composta pelo caipira Randy Newman, vem já na primeira estrofe com a transgressora proposta, muito pertinente ao caráter químico-etílico do filme: "Quer um pouco de uísque na sua água?". Outra redescoberta foi ter incluído "One Toke over the Time Is Tight", do Booker T. & the MG's, entre as músicas escolhidas. O Booker T., banda que tinha na sua formação brancos e negros e que tocava soul music típica da região de Memphis apenas com órgão, sax e guitarra, foi o símbolo da gravadora Stax, concorrente da Motown na década de sessenta.

A trilha ainda revela outras relíquias: a canção "Line", da dupla de folk rock Brewer & Shipley; "She's a Lady", hit da grande e grave voz de Tom Jones; o beat "For Your Love", dos ingleses do The Yardbirds, banda que revelou nomes como Jimmy Page, Jeff Beck e Eric Clapton. Também há espaço para velhos estandartes, como "Tammy", na voz de Debbie Reynolds, atriz principal do clássico Cantando na Chuva, e emoção, com a pungente "Get Together", dos The Youngbloods. Há também lirismo country em "Expecting to Fly", do Buffalo Springfield, do qual surgiram os músicos que integraram formações de grupos como Crosby Stills Nash & Young, Poco e Neil Young & Crazy Horse.
Sobem os créditos e, apropriadamente, o filme encerra com uma versão punk dos Dead Kennedys para a festiva "Viva Las Vegas", que Elvis Presley imortalizou em um dos seus filmes. Foi em Las Vegas que o Rei do Rock terminou sua longa carreira marcada, assim como a vida de Hunter S. Thompson, pela aventura e pelos excessos mundanos.