sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

a sAGA dOS gAULESES

POR CRISTIANO BASTOS


Foi com o espírito gaudério, por assim dizer, que eu e meus amigos e jornalistas Alisson Avila e Eduardo Müller arregaçamos as mangas pra fazer o livro Gauleses Irredutíveis - Causos e Atitudes do Rock Gaúcho.

E lá se foram dez anos desde então. As coisas no mundo mudaram um pouco de lá pra cá. No Rio Grande do Sul, se depender de alguns setores, vão continuar as mesmas para sempre.
À maneira dos autores, muitas vezes arriscamos nossa amizade para fazer um livro sobre o "rock gaúcho".

O que vale mais: um livro de rock ou uma amizade?

Gauleses, na verdade, é imperfeito. Mas as amizades também o são.

Muitos artistas que, "obrigatoriamente", deveriam estar falando no livro não estão. Alguns simplesmente não quiseram abrir a boca, direito que deve ser respeitado. Quem leu sabe as peças-chave que faltaram no tabuleiro.

Casos, por exemplo, de Wander Wildner, Charles Master, que era do TNT, Jimi Joe e Hermes Aquino, compositor do hit "Nuvem Passageira". Uma pena!

O livro tem mais méritos que defeitos: apesar de realizado em apenas 5 meses - recorde que o exime de suas falhas. Quem tem a mínima ideia sobre pauta, apuração e edição jornalísticas sabe o trabalhão que dá fazer 167 entrevistas nesse tempinho de merda. Entrevistar é o mais afudê de tudo.

Complicado é o antes e o depois.

Lembro de ter me entortado de conhaque com o Nei Lisboa, na Lancheria do Parque (ponto de encontro de roqueiros e boêmios em Porto Alegre) porque a única maneira de conseguir uma entrevista com o lendário músico bonfiniano era interpelá-lo de assalto em seu quartel-general.

Após várias tentativas frustradas de tentar marcar um encontro com o autor do hit "Carecas da Jamaica", por telefone, eis que lá estava ele em pessoa solitariamente sentado à sua mesa predileta num fim de tarde qualquer.

Como carregava meu inseparável gravador (de fita K7), não tive dúvida: parti para cima da vítima.


Entortado na Lanchera - De talagada à talagada, acompanhei o Nei em seu conhaque e - tempo de vacas magras - ainda o ajudei a liquidar sua carteira de Hollywood vermelho. Nei Lisboa começou a entrevista tímido, meio desconfiado, mas logo passou a curtir verdadeira psicoterapia jornalística.

Fiquei para lá de Marrakesh e ele deu uma entrevista definitivamente maravilhosa. Está no livro.

Essa era a parte da curtição: mesmo bêbado, saber que se estava apurando a história que ainda não havia sido contada, pelo menos do jeito contado em Gauleses Irredutíveis. Uma das grandes dificuldades era definir no livro, muitas vezes por critérios absolutamente subjetivos, quem seriam as pessoas "importantes" que representariam o rock gaúcho nos Gauleses.

Livro que, na verdade, não relata, como muitos pensaram, a "história do rock gaúcho", embora a cronologia histórica dos acontecimentos da cena esteja contemplada nas temáticas estabelecidas.

Outros manifestaram sua mágoa conosco por não se encontrarem no livro.

Uns com razão, outros não, alguns se julgavam importantes no processo de formação da música jovem no Rio Grande do Sul. Mas como explicar que um livro não é a Bíblia?

Após definir as fontes (músicos, jornalistas, produtores e agregados da cena) a serem entrevistadas, novo desafio: encontrá-las. Muitas foram achadas andando pela rua. Eram sumariamente abordados, como o músico Zé do Trompete, interpelado em plena Oswaldo Aranha. Outros simplesmente sabíamos onde encontrar.

Colocávamos o gravador na cara do cara e praticamente ordenávamos: "Desembucha!"

Eu e o Eduardo, o Cocó, passamos cinco meses a fio vagando pela noite de Porto Alegre. Dois jornalistas estropiados no cumprimento do estreito deadline imposto pela editora Sagra Luzzatto, que queria fazer o lançamento na Feira do Livro daquele ano, em outubro.

Passamos noites rondando o circuito under no eixo Barros Cassal/Independência/Oswaldo Aranha/ Bonfim.

As alamedas de Porto Alegre.

Nosso prazinho ainda incluía a decupagem de uma centena de fitas K7 com mais ou menos uma hora de conversas gravadas. Traduzindo: milhares de horas de conversas gravadas. Nada foi apurado por e-mail, à época ainda não popular, o que deu bem mais trabalho, mas garantiu maior autenticidade aos depoimentos.


Plato, Vinho & açúcar - Algumas entrevistas foram marcantes. Fomos à casa do Plato Divorak e ele nos recebeu com uma lista de 11 histórias prévias que queria contar. Ofereceu-nos vinho misturado com açúcar e iniciou seus relatos, de rara franqueza, sobre suas peripécias sexuais, mentais e musicais.

São as partes mais picantes do capítulo Morte por Tesão. Plato é o legítimo exemplo de um cara que deveria ser melhor reconhecido pela criatividade e labuta na cena gaúcha e brasileira, editando discos e produzindo festivais, como o Montehey Popstock.

Quem nos salvou a pátria do inferno 'degravatório' foi a equipe por nós arregimentada na Famecos/PUC.

A idéia não poderia ter sido mais eficiente: cooptamos estudantes de jornalismo do primeiro semestre, uma gurizada louca pra botar a mão na massa. Qual calouro de jornalismo não ia querer trabalhar, logo no primeiro semestre, com um livro de rock?

Invadimos uma aula de "Introdução ao Jornalismo" e escrevemos na lousa: "Procuramos voluntários para trabalhar em livro de rock".

Esperamos a aula terminar e não deu outra: umas vinte pessoas se candidataram para o trabalho, murrinha e não-remunerado, de transcrever entrevistas. Sem eles, o trabalho jamais seria feito e o livro, provavelmente, não teria saído no tempo estipulado.

E eles adoravam.

Montamos uma verdadeira linha de produção e apuração.

Fazíamos as entrevistas e passávamos as fitas para os "decupadores", que transcreviam e nos mandavam o resultado por e-mail. No fim de semana, editávamos a montoeira de depoimentos e informações coletados durante a semana.

Essa foi uma das etapas mais complicadas, porque tínhamos que - perdidos no tiroteio da barafunda de falas e opiniões, anos, datas, vocabulários, dialetos, piadas internas e ajustes de linguagem - cruzar as novas informações com as dos outros entrevistados e inserir o depoimento em sua devida temática.

Um quebra-cabeça que deu a maior enxaqueca.

Depois, a definição do projeto gráfico do livro e a curadoria das fotos que entraram na edição. Por fim, o martírio da checagem final das informações com as fontes.

Gauleses Irredutíveis chegou à gráfica praticamente no último minuto do seu prazo. Como era de se esperar (ao menos por seus autores) foi um sucesso. Não apenas porque o livro é pop e divertido de ler, mas porque o rock gaúcho, cujo início remonta aos anos 50, carecia de "registro histórico".

A gurizada do interior, da cidade e de outros Estados do Brasil, adoraram.

Os "puta-velhas" também curtiram.

Em 2001, Gauleses Irredutíveis foi a obra de autores estreantes mais vendida da 47a Feira do Livro de Porto Alegre. Assim que lançada, esgotou rapidamente a primeira edição, tornando-se peça de colecionador disputada em sebos e na internet.

O livro também ficou conhecido fora do Brasil. Os autores do coletivo italiano Wu-Ming, do best-seller Q- O Caçador de Hereges, o usaram como referência para uma obra nos mesmos moldes, lançada pelo coletivo sobre o rock italiano.

As melhores histórias foram aquelas que, pela riqueza nas descrições dos fatos e detalhamento do momento em que foram protagonizadas, puderam fornecer ao leitor um painel histórico dos acontecimentos. Mas de modo diferente, porque o lúdico estava sempre em primeiro lugar nas edições dos autores:

"Quisemos traduzir um espírito de rock-n-roll, como este espírito funcionou no RS", disse Alisson à época.

Em termos de "hard news", os radialistas Glenio Reis e Júlio Fürst fizeram descrições muito ricas sobre o que acontecia na época, respectivamente, as décadas de 50/60 e 70. O mesmo se aplica a nomes como Ricardo Barão, Mauro Borba, Katia Suman, Mary Mezzari, Claudinho Pereira.

Todos radialistas e o último, disc-jockey das antigas e agitador da cena, foi o cara que fez detonar o "Rock Grande do Sul" em 1985.

Os músicos são um caso à parte, porque lidamos com subjetividades: tem coisas que os caras se eriçavam pra contar e achávamos que não valia de nada, e vice-versa.

E agora, como escreveu Carlos Gerbase no prefácio da reedição de Gauleses Irredutíveis, falando sério:

"Porto Alegre é um lugar do caralho pra se fazer rock, porque – ao contrário de Londres, Nova Iorque e outros lugares chinelos, em que músicos podem ficar famosos e milionários da noite pro dia - aqui o sujeito vai ralar a vida inteira, vai entrar num monte de roubadas, ser enganado por empresários calhordas, brigar com programadores de rádio que só tocam jabá, vomitar no colo da fã mucra demais, tocar em amplificadores queimados, escapar de fininho de muitos ataques da polícia e, finalmente, descobrir que não ganhou nada além de divertimento e histórias para contar depois. Graças aos gauleses irredutíveis, aqui estão as histórias. Divirtam-se!".