sábado, 2 de fevereiro de 2008

a mALDIÇÃO dO sAMBA*

A cada briga de rua, uma nova música - um novo hino de louvor ao fim dos tempos
CRISTIANO BASTOS
Um aviso aos incautos: não basta gostar de black metal, nem bancar o eclético. É preciso ter santo forte e nenhuma repulsa para encarar as 18 faixas instrumentais de O Jazz Vai à Merda, o primeiro disco da banda brasiliense Satanique Samba Trio (gravadora Amplitude).
Só pelo nome das canções dá para ter uma noção da atmosfera de horror e blasfêmia que o SS3 quer instaurar com sua "música do contra": "Kit de Amputação Asa-sulista", "Canção pra Atrair Má Sorte (Ato 6)", "Todos os Santos na Grelha", Salve Satã e Ponto Final", "Auto-retrato em Tripa de Cachorro".
Insurgidos dos subterrâneos da capital federal 2000, esses missionários do anticristo com formação erudita se investiram na missão confessa de meter medo. O golpe é mais ou menos o seguinte: o trio - que na verdade são cinco integrantes - primeiro absorve os cacoetes mais indigestos da música erudita contemporânea, de dissonâncias a distorções rítmicas. Depois, regurgita tudo na cara da MPB com uma injeção de punk, ao menos no barulho e na atitude. "As microfonias foram cuidadosamente planejadas para azucrinar o ouvinte com uma algazarra infernal", adverte o criador do grupo, baixista e regente Munha.
A duração das músicas de O Jazz Vai à Merda, obssessivamente calculada, nas quais não há nem sombra de improvisos, segue o ideário punk. Nada ultrapassa os cerca de 3 minutos. Na opinião de Munha, a ambivalência de uma banda que toca música desconhecida e particular soa desafiadora, cativa os expectadores menos imbecilizados, mas enoja fãs do jazz, irrita roqueiros e causa asco nos eruditos.
O SS3 jura que não é simplesmente lúdica essa conversa de adoração ao demo, que já virou piada gasta por causa do culto infantil dos fãs de heavy metal. Todo o universo temático do grupo está voltado para o louvor ao conceito de "adversário", conforme esclarece a etimologia hebraica (Shaitan) do termo "Satã".
Segundo o músico, que sofre de transtorno bipolar e toma remédios controlados, além da besta, suas influências resumem-se a quatro: falta de dinheiro, umidade relativa a 10%, insônia aguda e Gustav Mahler: "A quarta sinfonia de Mahler é de fazer lacrimejar os olhos do mais duro fuzileiro naval!".
Na opinião de Munha, de tão árida e tediosa, Brasília se torna bastante inspiradora: "Sempre que vejo uma briga na rua, volto para casa e componho. Na última pancadaria, escrevi uma ópera na seqüência". Ele vê a cena do rock brasiliense como um retrato deprimente da realidade nacional. "Bandas tão inventivas quanto a equipe de criação do Caldeirão do Huck", zomba.
A imprensa local nem reconhece a existência da SS3, tamanho é o boicote do jornalismo quase beato da cidade, critica o compositor. "Por aqui todos querem escrever sobre pessoas simpáticas que levam a vida na maior curtição. Da cena brasiliense, gostaríamos de ser os vilões, mas os roqueiros nos ignoram. Não que isso seja ruim, é claro".
Se a imprensa local não dá espaço ao SS3, pelo menos a de fora do país está antenada com o que se passa no nosso submundo. No ano passado, a banda saiu nas páginas do jornal britânico The Observer. Com o título "Anyone for a spot of satanic samba?" - algo como "Alguém a fim de um pouco de samba satânico?", a matéria, que também citava Graforréia Xilarmônica e Hurtmold, afirmava haver muito mais que bossa nova no Brasil: "Uma explosão de coisas novas, algumas profundamente estranhas", comentava o artigo.
Sobre o atual estado da música popular brasileira, Munha acha que há tanto artista bunda-mole solto por aí que dá até desânimo criticar: "É como chutar cachorro morto. Prefiro falar mal de roqueiro". Mesmo depois de lançar em 2005 o elogiado EP Misantropicália, ele confessa que ainda não sabe definir como o grupo soa. "Imagino que para quem houve deve ser algo do tipo 'samba de filho da puta'". Diante de tudo, só resta a pergunta: que diabos esses caras pretendem, afinal? "Nada que preste, pode apostar", escarnece Munha.
*Bizz, março de 2006.