quarta-feira, 19 de março de 2008

tAMBÉM nÃO eSTAVA lÁ

Barbada dizer como Tod Haynes fez de I'm Not There uma cinebiografia com a estatura da criatividade do maior gênio da música popular do século 20 – Robert Allen Zimmerman, o velho Bob Dylan. Haynes entendeu que Dylan viveu a vida de uns mil homens.
I’m Not There leva dos súditos suspiros de aprovação e atiça o público que até hoje pensa que Dylan é o prosador fanhoso e profético de "Blowing in the Wind" - e só. Se apenas a vida do poeta, tivesse vivido Dylan, "a lenda" ele já seria com certeza.
Pelo jeito, o cineasta Tod Haynes é outro aficcionado por cultura pop. Pontuando melhor, Haynes é aficcionado pela história da música pop.
A questão não é só semântica - tem significação profunda. Diminuindo & maximizando: é aficionado pela história da música. Assim fica bom.
Cultura pop tá mais pra fenômeno de caderno dois do que pra léxico definidor de "conjunto de conhecimentos" - numa tentativa sociológica de se especificar o pop, já que o HengHaw também tentou no "Papa é Pop" - então, a gente também pode, né, Humberto?
Apesar das bobagens açucaradas da usina de entretenimento musical, na qual tanto gostamos de chafurdar diariamente (eu também, não pensem vocês), cultura pop, no fundo, pare pra pensar um minutinho, é aquele conceito divertido que o Roland Barthes percebeu e - click (!) - chamou de - vou soletrar: f-a-i-t d-i-v-e-r-s. Fait divers.
Palavra e tanto. Aprende-se na faculdade, mas ninguém nunca presta atenção. Nome de banda, poderia ser, inclusive. Que tal? Dá pra montar uma banda de rock neoísta, o conceito Monty Cantsin de nome múltiplo, o pop star aberto.
Terrorismo poético-new wave pra disseminar a soberania de uma única banda com mesmo logotipo, trajes, canções, ideário e, obrigatoriamente, mesmo nome, claro, pra estabelecer-se no quadrilátero da fétida & mal-freqüentada Interzone. Alôôô, Carneiro, chama o Plato e o Doctor Benway!
O som, já sugiro, poderia ser The Fall, Throbbing Gristle & The (International) Noise Conspiracy (pra botar um situacionismo no meio) com pegada do The Sonics - só pra ver em que loucura isso ia dar.
FAIT DIVERS: Nascimento de bezerros de duas cabeças, gêmeos grudados pelo ventre, crianças com três olhos, microanões, celenterados amestrados, pulgas domesticadas. Todos esses fetiches com os quais o SBT adora nos excitar eroticamente, dia e noite sem parar.
O que, além dos fatos, é lido como "notícia" nos jornais todo o santo dia e, agora, nos portais do inferno midíatico também. Presta atenção que todo grande site sempre tem uma manchete trash nos atraindo a visão - Videodrome! Não tou dizendo que nada disso deveria deixar de existir, certo? Não vão pensar que...Já tão pensando.
No rock é ler nos tablóides que Damon Albarn pegou Justine Frischmann, depois tomou o fora da lady junkie, o pobre dandy. Diferente, por exemplo, de saber que o Bill Wiman ronca em "She's a Rainbow", do Their Satanic Majesties Request. Fato, ele ronca. Tá lá gravado.
Assim como a vida de Dylan, I'm Not There, que ainda não entrou em cartaz no Brasil (mas deu pra ver no IX Festival Internacional de Cinema de Brasília e em outras mostras), não é um filme fácil: cut-up de fatos & fotos, idas & vindas, voltas & reviravoltas, conversões & desconversões na vida do Mr. Tambourine Man, dá pra dizer. A mais completa loucura.
Os neófitos correm o risco de sair boiando da sessão; em nenhum momento apresenta-se uma cronologia da vida de Bob Dylan. O que mais deve ter confundido a cabeça foi a solução bem sacada do diretor, ao colocar vários atores para interpretar diferentes fases da vida de Dylan com atuações absolutamente metafóricas. Funcionou perfeitamente. Foi um dos últimos trabalhos de Heath Ledger.
Tem o garoto negro de onze anos (Marcus Carl Franklin) que perambula com um violão apresentando-se como Woody Guthrie, o mentor de Dylan; um sábio surrealista (Ben Whishaw) cuja atuação são apenas charadas de simbologia enigmática - o fascínio de Dylan por Arthur Rimbaud; o velho excêntrico Billy The Kid (Richard Gere) que percorre o Wild-Wild West em retiro voluntário do mundo moderno - na verdade, um paralelo à estadia de Dylan num local retirado próximo à Woodstock, em Nova York, onde gravou com The Band The Basement Tapes.
E a maior sacada de todos os tempos: a chapadona Cate Blanchet emprestando sua pele de nívea para, justamente, o papel do provocador Dylan que agitou a Inglaterra, puxou fumo com os Beatles (o Fab são quatro bobalhões fugitivos da alucinada turba feminina) e "chineleou o pico", para usar a gíria portoalegrense, com a imprensa britânica.
Mas com um coração que também bate pelos outros, às vezes. Pressionado pela súplica do jornalista para "dar uma palavra à imprensa inglesa", Dylan lança mão do sarcasmo lacônico que motiva os incompreendidos: "cosmonauta".
O subtítulo já entrega o sabor da narrativa montada por Haynes - "Inspirado nas várias vidas de Bob Dylan". Bob - dessa vez vou me permitir falar assim (se o Eduardo Bueno pode eu também!) - aprovou o formato da produção e permitiu ao diretor a mais rara das concessões: usar suas músicas no filme.
Era pra David Bowie ter feito o mesmo no exagerado Velvet Goldmine (1999), filme de Tod Haynes sobre o glitter rock, inicialmente pensado para homenagear um dos alteregos do cantor, Ziggy. Mas o superego de Thin White Duke não aprovou, ainda proibiu Haynes de utilizar as músicas, o que pegou meio mal não sei pra quem - um ou outro.
Ficou apenas o nome, Velvet Goldmine, título de canção bside de um single de Bowie. A trilha sonora é ótima, com músicas feitas especialmente pro filme - special guest de Grant Lee Buffalo, Teenage Funclube, Brian Eno, fora Roxy Music, T-Rex, Steve Harley, que completam a soundtrack.
Haynes, fã de Dylan na puberdade, voltou a escutar o velho poeta à beira dos 40, quando iniciou o roteiro do drama Longe do Paraíso (2002). Foi vasculhar músicas, ler biografias, ficou perplexo com todas as transformações de Dylan: "O que mais escutava de relatos sobre ele era a respeito de uma vida de infinitas mudanças, de uma maneira muito mais profunda em termos culturais do que as modificações camaleônicas de David Bowie ou Madonna que rolariam décadas mais tarde", comentou.
Mudanças que tiveram profundos efeitos intelectuais, culturais e quase físicos no público de Dylan: "Ele liquida com tudo que você acredita, todos os seus padrões e conceitos. Ele sacode tudo aquilo que as pessoas construíram para servir-lhes de base. Sempre que você pára para prestar a atenção nele, ele já está em outro lugar. Achei que a única forma de contar uma história em um filme sobre ele seria exacerbando esse fato, usando isso como o princípio para organizar a narrativa, ou as narrativas".
I'm Not There reproduz com fidelidade passagens marcantes da carreira de Bob Dylan, como o famoso show de 1966, no Royal Albert Hall, Inglaterra, no qual um fã grita lá pelas tantas: "Judas!", e Dylan responde - "Eu não acredito em você!".
MEMORABILIA - Desde 2001, Bob Dylan vem revelando pistas de quem é Robert Allen Zimmerman. Dylan abriu seu baú de memórias. Lançou o livro Down the Highway: The Life of Bob Dylan (Conrad Livros), biografia assinada por Howard Sounes.
Em 2005, publicou o volume um de Crônicas (Editora Planeta), onde ele mesmo relembra o passado em textos curtos. Depois, saiu o imperdível No Direction Home, documentário de Martin Scorsese.
Ainda lançou o excelente álbum Modern Times (2006). Veja, reveja e junte tudo isso. Ainda vai faltar todo o resto para entender o mínimo sobre Bob Dylan.