quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

aLMA vIVA

O filme Control conseguiu algo delicado: dar um ponto de vista mais "positivo" sobre a biografia do vulto Ian Curtis (1956-1980), anjo decaído do Joy Division.
O longa-metragem do fotógrafo neerlandês Anton Corbijn fez milagre vertendo o flagelo existencial de Curtis em modestas, porém significantes, gotículas de vida.
Vida é condição que não lembro associada ao nome de Curtis - continuamente sinônimo de fragilidade emocional. No oráculo Google, o casamento das palavras genialidade + morte + Ian Curtis dá as caras cerca de 16 mil vezes.
A combinação vida + genialidade, por sua vez, apresenta 48 mil resultados. Pelo menos na Internet, Curtis está mais vivo do que morto.
Para o terror dos necrófilos, antecedendo a arte, o fundo do poço e a queda, não se pode ignorar que  houve a vida - de fato e prosaica - vivida por Ian Curtis. Sim, porque ele também viveu: sua padecida existência não  reduziu-se exclusivamente à "morte".
Além da sua obra letrística, havia,muito antes, o adolescente aspirante a um nome no panteão do rock. Com a primeira sessão de Control, a "alma morta" de Curtis ganhou sobrevida no umbral dos artistas suicidas: ao seu estranho modo, ele deve ter vibrado...
Ian Curtis não tinha o perfil do típico "depressivo incurável", como Nick Drake - esse ferida aberta e sem cura. Por sorte, não sou psiquiatra - nem é preciso, pra sacar que Drake lidou toscamente (essa é a real) com a depressão que baixou sobre ele.
A farmacêutica e os remedinhos de hoje poderiam ter evitado o trágico desfecho. Mas e dai?
O predicativo poético de Curtis - Rimbaud do pós-punk - não se discute. Tomou de David Bowie lições de como treinar sua visão 3D e enxergar o pop (sim, o pop) "eight miles high" - sem adição de ácido. Pills!
O jeito de cantar, na realidade, era o jeito de Bowie transfigurado: Curtis pegou o camaleão pela mão pra dar um passeio pelas abissais "colônias" de sua mente.
A voz de baixo-barítono (timbre intermediário, mais extenso e dramático que o baixo-cantante - segundo o léxico) permitia emular 20 mil anos aos 23 de idade...
Ao som de "Jean Genie" ensaiou passos iniciais da sua dança. Depois D'ele só Curtis teve o estilo & a elegância pra dançar: Fred Astaire's Goth.
Ainda não dá pra precisar quais seriam as transformações que daria no Joy Division (o que seria do New Order? Seria?), com o tempo.
O curto legado do poeta-gênio. Sua vida, uma fraqueza só.
Com o álbum Unknown Pleasures, tudo, enfim, arquitetado por Ian Curtis começa vaa acontecer: e o Joy Division estava fadado ao mundo.
Teria noção o profeta? Sim.
Preferiu a morte mesmo assim? Sim.
Teve escolha? Sim.
Tudo isso importa? Não.
O sonho original de Ian Curtis (basically, glamour), a bem poucos passos, estava de materializar-se No âmago, ele almejava a glória de ter seu nome citado nalgum versículo bíblico do rock. Foi uma espécie de Cristo. Ou Judas. Não sei.
Em 24 Hours Party People, Curtis tem um diálogo com Tony Wilson, o homem da Factory. Ambos ouvindo no carro a gravação final de "She's Lost Control" pela primeira vez:
Curtis - Soa como o Bowie...
Wilson - Que bom. Você gosta do Bowie.
Curtis - Odeio o Bowie. Em "All The Young Dudes" ele canta que se deveria morrer aos 25. Sabe que idade ele tem? 30 ou 29 anos. É um mentiroso.
Wilson - Não importa. Muitos artistas fazem seus melhores trabalhos com mais idade. Willian Burroughs, Yeats...
Ian Curtis - Nunca ouvi falar.
Tony Wilson - Yeats é o maior poeta desde Dante.
Ian Curtis - Se ele tivesse morrido aos 25, eu teria ouvido falar nele.
Agora sei porque, antes do filme (o equivalente a ler a biografia Touching from a Distance, escrita pela esposa Deborah), a expiação do cantor me parecia...enfadonha: sua história era mal contada.
Um praxe nas grandes biografias é a de se evidenciar as facetas mais obtusas possíveis dos "biodegradados". Tragédia garante Ibop em qualquer meio - a TV brasileira que o diga.
O pobre Curtis que é "o louco coitado", depois. Relativização é o que há - e o que anda em falta, na hora de encarar a complexidade do mundo: perverso, belo, cinza, colorido, feio, tudo, enfim. Infelizmente, foi o que faltou ao herói da melancolia.
Ian Curtis, com os anos, passou a Patrimônio Deprê da Humanidade. Um cara deprê, e pronto. Fácil assim. Não há chance, segundo essa ótica engessada, pra que tenha gozado de um momento sequer de felicidade. Alegria à toa, que seja. Será que ele ouviu Herman's Hermits um dia, No Milk Today?
Até os "mais deprê do mundo" devem ter curtido um único instante de felicidade, algum dia. Entrelaçado em Simone de Bouvoir (com aquele formoso & roliço bumbum das fotos de juventude), a treinar sacanagens ultracerebrais com a mulher, Sartre deve ter se sentido menos existencialista e muito mais carnalista, certas tardes, na biblioteca de casa.
Em Touching from a Distance, Deborah foi a mulher mais honesta do mundo, com atordoante sinceridade ao reconhecer que estava no segundo escalão entre o rock e o conflituoso mundo em que o marido vivia dentro e fora do Joy Division.
É refrescante quando uma visão ilumina a posteridade que se julgava morta e enterrada, como no caso de Curtis.
Control evoca fantasmas que o atormentavam na fase avançada de sua deterioração. Declarações idílicas (sinceras?) feitas à esposa, das quais se arrependia amargamente: "Você é minha, irremediavelmente" - uma "nuvem negra" que marcavam cada um de seus passos.
O dilema a aniquilar Curtis era não amar mais a esposa - da qual, entrementes, não conseguia se separar. Deborah descobre seu caso com a (interessantíssima) jornalista belga Annik Honoré, e quer o divórcio. Mas não suporta a autocomiseração por abandonar esposa e filha recém-nascida. Sofre.
Sua vida estava (re)virada numa pocilga. Pra lambuzar um pouco mais, os malditos ataques epiléticos: a única coisa da legal na sua epilepsia é que motivaram aquela dança very strange...
Os ataques se integraram ao show e ao mito, menos ao frontmen, uma alma que penava mais e mais, na medida em que se intensificavam.
O obscurantismo das letras de Curtis, todavia, não espelha - como quer a maioria - um estado de espírito permanente: conta a lenda tinha fascinação por "esoterismo nazista".
Na gênese, a claustrofobia melancólica das composições era apenas "o sublinhado estético" misterioso do Joy Division - não a ideologia dark.
Control elucida bem que Curtis não queria morrer, a princípio: pelo contrário, sonhava com o estrelato. Seria David Bowie, se pudesse.
Desejava o mistério de Jim Morrison, cobiçava o pesadelo de Iggy Pop, se comprazia no niilismo blasé de Lou Reed.
"Eu queria ser todos os corações partidos de Nova York. Uma serigrafia de Andy Warholl", deixou escrito. Vivia o rock. No fim, era somente um cara de 23 anos.
Nas letras, foi tocado por William Burroughs, J. G. Ballard e Joseph Conrad — os títulos das canções "Interzone", "Atrocity Exhibition" e "Colony" vieram dos três autores, na ordem.
Uma corrente de pensamento - na qual me incluo (sem especulações) - acredita na hipótese de Ian ter somatizado todos os seus problemas numa decisão crucial: morrer como o mito da estrela de rock decadente.
O suicídio de Ian Curtis foi às vésperas da primeira tour do Joy Division pelos EUA. A viagem seria o turning point da banda.
Momentos antes de se enforcar, assistiu a um de seus filmes favoritos: Stroszek, de Werner Herzog; teve outro ataque epilético, abatido sozinho na sala de casa. Consta-se que ouvia The Idiot, de Iggy Pop.
As duas "mortes importantes" de 1980 (Johnn Lennon, dezembro/Bonn Scott (ACDC), fevereiro) não deixaram grande destaque pro suicídio de Ian Curtis nos jornais e revistas especializadas em música. Sobrou o obituário.
Curtis foi cremado e, com suas cinzas, foi-se o penúltimo sonho de uma geração: o último foi o de Cobain - que, de sonhos, teve apenas pesadelos.
Mas que "sonhos", a propósito?
Melancolia, romantismo negro e desesperança pós-industrial: as friezas que eternamente vão encarcerar Ian Curtis a si mesmo.
Seus restos mortais estão em Macclesfield, Inglaterra. Na lápide, a inscrição que Deborah mandou botar: "Love Will Tear Us Apart".
O epitáfio não alude apenas à letra da canção mais pop & dolorida de Ian Curtis - é o ensejo maior, que arrastou sua alma sofrida ao precipício: AMOR.