segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

cAN i bE sATWA?*

Dentro e fora do país, o pernambucano Lailson de Holanda Cavalcanti é prestigiado por sua obra como ilustrador. No mundo, o reconhecimento vem tanto do seu traço quanto de sua música.
É de sua autoria a série clássica de HQ Pindorama, onde reconta a história do Brasil, desde a chegada dos portugueses até as eras Fernando Henrique & Lula.
Aos 17 anos, morando nos Estados Unidos, Lailson começou a publicar suas charges no jornal The Pine Cone (Arkansas, EUA), pelas quais recebeu o Award for Best Original Artwork, atribuído pela Arkansas High School Press Association.
A música veio no final dos anos 60, quando, de volta ao país passou a dividir sua arte com o rock e o folk. Formou a banda Phetus - um dos grupos seminais do rock pernambucano dos anos 70 - com o guitarrista Paulo Rafael e Zé da Flauta.
Em 1973, gravou com Lula Côrtes o LP instrumental Satwa, considerado o primeiro álbum independente editado no Brasil – hoje relançado pela Time-Lag Records (prensagem esgotada).
Gravado nos estúdios da lendária Rozemblit, Satwa foi o primeiro lançamento do selo Abrakadabra, montado pelo multi-artista Lula Côrtes e pela designer, hoje cineasta, Katia Mesel.
Lailson também deixou a marca de seu violão nordestino de 12 cordas tocando ao lado da troupe que tocou em Paêbirú.
Gravado em 1973, Satwa traz a dupla Lailson/Côrtes tomada por uma lisergia pós-flower power, capaz de assustar incautos ouvintes em pleno 2008. Músicas como "Alegro Piradissimo", "Valsa dos Cogumelos" ou "Blue do Cachorro Muito Louco" não deixam dúvidas sobre o conteúdo do vinil – 'tosco', mas com ótimo som.
Robertinho de Recife também faz uma ponta no disco, tocando 'lead guitar' na lentidão viajandona de "Blue do Cachorro Muito Louco".
O som predominante do disco, no entanto, é um folk nordestino/oriental, resultado da mistura da cítara popular tocada por Lula (trazida do Marrocos), o tricórdio, e da viola de 12 cordas de Lailson.
Fruto da cena nordestina pós-tropicalismo, como traz a ficha técnica, Satwa foi "curtido" nos Estúdios da Rozemblit, em Recife, entre os dias 20 e 31 de janeiro de 1973. Com tiragem limitada e distribuição basicamente regional, o disco desapareceu tão logo surgiu, permanecendo lenda para o restante do país.
A Time-Lag o relançou com o nome de Satwa World Edition
Como foi produzir Satwa em 1973, em Recife? Imagino as dificuldades enfrentadas...
Lailson - Foi um desafio, uma diversão e uma grande viagem. Em agosto de 1971 eu tinha retornado de um ano (1970/71) como bolsista internacional nos Estados Unidos, onde morei bastante tempo em Arkansas e depois em Nova York.
Antes de viajar eu já tinha banda de garagem com Paulo Rafael (que hoje toca com Alceu Valença e que tocou comigo e Zé da Flauta na banda Phetus) e, ao voltar para o Recife, encontrei a cidade bastante agitada.
Em novembro de 72, o DA de Medicina resolveu organizar o nosso "Woodstock" local, que foi a Feira Experimental de Música de Nova Jerusalém, dois dias de "rock do pôr ao nascer do sol" e me chamaram para ser o coordenador da parte musical do evento, já que eu transitava pelas mais diversas bandas da cidade.
Foi aí que conheci Lula Côrtes e iniciamos uma grande amizade, pois tínhamos muita coisa em comum (desenho, pintura, poesia, música, psicodelismo).
Passado o festival, passamos a nos encontrar regularmente na casa dele e começamos a criar uma música diferente, eu com uma viola de 12 cordas e Lula com o tricórdio que havia trazido do Marrocos.
Minhas influências eram o rock e o blues. Lula, pela própria escala do instrumento oriental, criava melodias que se assemelhavam a ragas indianas. Ambos temos um "sotaque" nordestino que transparece nas músicas que compusemos naquela época.
Começamos a gravar domesticamente o que estávamos fazendo, as pessoas passaram a aparecer por lá para ver o que estava rolando e daí, para decidirmos gravar um LP, foi um pulo.
Eu estava juntando uma grana para viajar, mas resolvi investir no projeto. Então, Satwa é o resultado de tudo isso, de todo esse momento, e da época.
Satwa é considerada a primeira produção independente do rock brasileiro. Hoje, isso te espanta?
Lailson - Como falei: gravar um disco era uma coisa tão natural que nem pensamos que esse não era o caminho normal. A Rozemblit, apesar de antiga, era acessível (foi a primeira gravadora brasileira a lançar, numa coletânea, uma música do Ray Charles) e estava meio que às moscas.
Lá a gente dispunha de tudo o que era necessário: estúdio, prensagem e gráfica. Alugamos o estúdio de 20 a 31 de janeiro de 73 e gravávamos de noite, de tarde, na hora que desse, varando as madrugadas.
Foram horas de gravação, fazendo variações dos temas que estávamos compondo, dos quais selecionamos as versões que consideramos as melhores.
O estúdio tinha limitações técnicas que foram muito divertidas de contornar, como por exemplo, o fato de que se eu fosse fazer um overdub tinha que ficar tocando colado com a cabine de som, senão, dava um delay!
A capa também foi um processo conjunto: o design é de Kátia Mesel, a fotografia da capa é uma experiência de Lula, as outras fotografias são de Paulo Klein e tem dois desenhos meus na contracapa.
Por certo que sabíamos que estávamos fazendo algo novo, mas não imaginávamos que éramos pioneiros na produção do rock independente. Isso eu só vim saber quase 20 anos depois, através de pesquisadores.
Quanto ao som: o que você e Lula Côrtes pensaram, na hora de fazê-lo. O que ouviam para criar Satwa?
Lailson - Satwa é uma palavra em Sânscrito que pode ser traduzida como sendo a interface, o equilíbrio, a harmonia, entre o corpo material e o corpo espiritual. Esse é o conceito fundamental do disco: um equilíbrio entre duas coisas diferentes que se harmonizam.
O cérebro humano tem dois hemisférios, assim como o planeta Terra, e ambos se equilibram, mesmo através de conflitos. A música do hemisfério ocidental, seja o blues ou o repente de viola têm em si os elementos da cultura oriental.
Recife é, ao mesmo tempo, um pequeno ponto na beira do Atlântico e uma cidade cosmopolita em contato com o resto do mundo. A música produzida aqui é música produzida no planeta Terra. Satwa, musicalmente, transmite todos esses encontros.
O disco apresenta essa dualidade harmônica em todos os seus aspectos, como pode ser visto nas cores da capa: cian e magenta, duas cores absolutas. Não há preto, não há amarelo.
Mas, sobre o branco, as duas cores absolutas se harmonizam e criam a identidade visual específica do disco. As músicas têm e não têm letras.
Os títulos dizem tudo o que se precisa saber sobre elas: "Amigo", "Atom", "Apacidonata", "Valsa dos Cogumelos", "Blues do Cachorro Muito Louco", "Can I Be Satwa?", "Alegria do Povo", "Alegro Piradíssimo", "Lia A Rainha da Noite" - são títulos e são versos, são letras.
Mas se as músicas tivessem letras no sentido comum, elas teriam que ser submetidas à "censura prévia" da Polícia Federal da época, o que não faria nenhum sentido para o que estávamos criando.
Então, o que precisava estar escrito para dizer o que é Satwa, está escrito na contracapa.
Além do texto (contando a saga do disco musical voador que ficou preso no limbo e foi resgatado pelo Capitão Nemo da Patrulha do Salto do Tempo) que escrevi para a Time-Lag Records, que relançou o LP em 2004, acrescentei uma tradução dos títulos para que os leitores de língua inglesa pudessem também compreender esta parte da obra.
Quanto ao som que ouvíamos, variava muito. Eu era fã do Cream, Traffic, Jimi Hendrix, Jethro Tull, Pink Floyd, Emerson, Lake and Palmer, King Crimson e Mothers of Invention. E Beatles e Rolling Stones, claro. Mas, para criar Satwa, ouvimos mesmo foi a "música das esferas".
Como sua arte se intersecciona com tudo isso?
Lailson - No disco ela só aparece nos dois desenhos da contracapa e no selo. Naquela época (eu era praticamente um garoto), meus desenhos circulavam apenas entre os amigos e apareciam nos cartazes que eu fazia para a minha banda Phetus (surgida após Satwa) e para as bandas dos amigos, como o Ave Sangria e o Batalha Cerrada.
Era uma arte psicodélica, com elementos de fantasia e do fantástico. A partir de 1975 é que passei a publicar na imprensa e meu desenho de humor político tornou-se mais conhecido. Hoje, com os quadrinhos e a ilustração, muito do meu estilo daquela época está retornando.

*Lailson de Holanda, um dos personagens do doc Nas Paredes da Pedra Encantada. Ouça algumas canções do álbum aqui no andar de baixo, ó: