É fácil dizer porque Tod Haynes conseguiu transformar I’m Not There numa majestosa cinebiografia sobre o maior gênio da música do século 20 – Robert Allen Zimmerman, melhor reconhecido como Bob Dylan. Simples, Haynes entendeu que Dylan viveu a vida de mil homens juntos.
I’m Not There tem o atributo de provocar nos fãs ardorosos um longo suspiro e, da mesma forma, instigar a fração do público que, ingenuamente, pensa que ele se reduz ao prosador fanhoso e profético de "Blowing in the Wind". Se bem que, se Dylan tivesse vivido só a vida do profeta, já teria sido satisfatório.
O cineasta Tod Haynes é um aficcionado por "cultura pop". Refazendo o conceito: Haynes é uma aficcionado pela história da música pop, o que não é apenas questão de ordem semântica, mas porque a expressão encerra uma significação muito mais profunda. Diminuindo ainda mais para maximizar o entendimento: ele é um aficionado pela história da música. Ponto.
O termo cultura pop está mais para fenômeno da natureza do que para léxico definidor de "conjunto de conhecimentos". Apesar das bobagens açucaradas produzidas pela fábrica de entretenimento musical, cultura pop, no fundo, é apenas o que Roland Barthes chamou de fait divers. Nascimento de bezerros de duas cabeças, gêmeos grudados pelo ventre, crianças com três olhos, micro-anões. Ou seja, tudo o que, além dos fatos, é lido como "notícia" nos jornais. No rock, é saber pelos tablóides que Damon Albarn, do Blur, namorou Justine Frischmann, do Elástica, e tomou um fora da mocinha. Diferente de saber, por exemplo, que é o baixista Bill Wiman que ronca na música "She's a Rainbow", do disco Their Satanic Majesties Request, dos Stones. Isso é fato.
Como a própria vida de Dylan, I’m Not There, que ainda não entrou em cartaz no Brasil (mas pôde ser assistido no IX Festival Internacional de Cinema de Brasília e em outras mostras pelo país), não é um filme fácil. É como um cut-up alucinado de fatos e imagens, cheio de ida e vindas, voltas e reviravoltas. Os neófitos devem ter saído "boiando" da sessão, porque em nenhum momento o filme persegue uma cronologia dos acontecimentos. O que mais deve ter confundido a cabeça de muitos foi a solução inteligente do diretor, ao colocar vários atores para interpretar diferentes fases da vida de Dylan com atuações completamente metafóricas. Funcionou perfeitamente.
Tem o garoto negro de onze anos (Marcus Carl Franklin) que perambula com um violão se apresentando como Woody Guthrie, que foi o maior mentor de Dylan; um sábio surrealista (Ben Whishaw) cuja atuação é apenas proferir charadas repletas de simbologia, representando o fascínio de Dylan pelo poeta Arthur Rimbaud; o velho excêntrico Billy The Kid (Richard Gere) percorrendo o Velho Oeste em retiro voluntário do mundo moderno - na verdade, um paralelo à estadia de Dylan em um local retirado próximo a Woodstock, no estado de Nova York, onde se reuniu com a The Band e gravou o álbum The Basement Tapes.
E a maior sacada de todas: uma chapadona Cate Blanchet interpretando o provocador Dylan que chocou a Inglaterra, enrolou o primeiro baseado do Beatles (eles aparecem como quatro bobalhões fugitivos da alucinada turba feminina) e enfrentou a imprensa britânica. Diante do pedido suplicante de um jornalista para "dar uma palavra para a imprensa", ele responde com o sarcasmo lacônico dos incompreendidos: "cosmonauta".
O subtítulo do filme já entrega o estilo da narrativa - “Inspirado nas várias vidas de Bob Dylan”. Dylan aprovou o formato da produção e permitiu a Haynes a mais rara das concessões: o direito de usar músicas originais e covers no filme. Era pra David Bowie ter feito o mesmo em Velvet Goldmine (1999), o filme de Tod Haynes sobre o glitter rock, inicialmente concebido para homenagear o alter-ego do cantor, Ziggy Stardust. Só que o astro não aprovou o filme e ainda proibiu Haynes de utilizar suas músicas. Ficou apenas o nome, Velvet Goldmine, título de canção do b-side de um single de Bowie.
Haynes, fã de Dylan na adolescência, voltou a escutar o velho poeta à beira dos quarenta anos, quando iniciou o roteiro do drama Longe do Paraíso, de 2002. Começou a vasculhar músicas e a ler biografias do artista e ficou perplexo com todas as transformações de Dylan: "O que mais escutava de todos os relatos sobre ele era sobre uma vida de infinitas mudanças, de uma maneira muito mais profunda em termos culturais do que as modificações camaleônicas de David Bowie ou Madonna que ocorreriam décadas mais tarde", comentou.
Mudanças que tiveram profundos efeitos intelectuais, culturais e quase físicos no público de Dylan: "Ele liquida com tudo que você acredita, todos os seus padrões e conceitos. Ele sacode tudo aquilo que as pessoas construíram para servir-lhes de base. Sempre que você pára para prestar a atenção nele, ele já está em outro lugar. Achei que a única forma de contar uma história em um filme sobre ele seria exacerbando esse fato, usando isso como o princípio para organizar a narrativa, ou as narrativas".
I'm Not There reproduz com fidelidade passagens marcantes da carreira de Bob Dylan, como o famoso show de 1966, no Royal Albert Hall, Inglaterra, em que um fã grita "Judas!" e Dylan responde, exclamando: "Eu não acredito em você!". A melhor resposta para uma acusação cretina.
Memorabilia - Desde 2001, Bob Dylan vem revelando quem é o verdadeiro Robert Allen Zimmerman. Em cinco anos, Dylan abriu seu baú de memórias. Lançou o livro Down the Highway: The Life of Bob Dylan (Conrad Livros), biografia assinada por Howard Sounes. Em 2005, publicou o volume um de Crônicas (Editora Planeta), onde o próprio Dylan relembra o passado em textos curtos. Depois, saiu o imperdível documentário para televisão No Direction Home, de Martin Scorsese (disponível em DVD). E, no ano passado, ele ainda lançou o aclamado e excelente álbum Modern Times (2006). Veja, reveja e junte tudo isso. Ainda vai faltar todo o resto para entender o mínimo sobre Bob Dylan.