terça-feira, 30 de novembro de 2010

bAD tRIP sIMULATOR#2

Munha do Satanique Samba Trio fala sobre a nova peça diabólica de morte da MPB

POR CRISTIANO BASTOS/URBANAQUE

Obscurantistas, sacrílegos, subversores, SATANISTAS! O Satanique Samba Trio, ou (SS3), carrega essa avalanche de alcunhas agourentas nas costas e no nome da banda com o mesmo prazer libertador que Jesus teve ao carregar a cruz.

E durante este tortuoso percalço o trio teve que se deparar com a fúria de fiéis fanáticos do HOMEM, produtores musicais inescrupulosos que pregam a palavra do "faça-você -mesmo" em favor próprio e mesmo assim chegaram firmes ao terceiro ato do périplo, intitulado Bad Trip Simulator #2.

O destemido Cristiano Bastos encontrou Munha, representante destes pobres diabos, em uma encruzilhada do nosso Distrito Federal e incitou-o a propalar algumas palavras sobre a nova peça diabólica de desconstrução e morte da MPB cometida pelas bestaferas.

[Faça o sinal da cruz antes de ler]

Antes de mais nada, fale sobre o disco que o Satanique Samba Trio está lançando. Se chama Bad Trip Simulator #2, certo?

Munha - Sim. É a primeira peça de uma trilogia (em 2011 lançaremos o Bad Trip Simulator #1 e depois, sabe-se la quando, o #3) e está a venda no nosso site (www.sataniquesambatrio.net). Como sei que comprar discos em lojas virtuais pode ser trabalhoso demais para a maioria dos maconheiros lendo essa entrevista, aviso que também vendemos nossas tralhas pelo e-mail.

A propósito, por que estão lançando o volume 2 antes do 1?

Munha - Ordenar números naturais é uma prática cristã.

Ok… E é verdade que a banda vem sendo perseguida por grupos evangélicos?

Munha - Não chega a ser perseguição, mas definitivamente estamos sendo assediados por cristãos fanáticos (de católicos e evangélicos a espíritas) via internet. É comum que cheguem mensagens de intolerância, ameaças de boicote e sermões religiosos (a maioria repleta de erros ortográficos vergonhosos, diga-se de passagem) na nossa conta oficial de email.

Não negarei que acho divertido, mas volta e meia fico deprimido com a frequência dos ataques.

E o que esse "cristãos fanáticos" costumam alegar durante os ataques?

Munha - Ah, nos acusam de heresia, infantilidade e até de envolvimento com o Candomblé…o que, por sinal, é muito preconceituoso da parte deles. Primeiro por que assumem – sem o mínimo conhecimento de causa sobre qualquer culto afro-brasileiro – que o Candomblé representa uma prática de idolatria demoníaca.

Segundo por que deduziram que nós estaríamos automaticamente envolvidos com o Candomblé só por que escolhemos ostentar uma referência a Satã no nome do projeto. É muita ignorância, convenhamos.

Então o Satanique Samba Trio não é uma banda de macumba-jazz?

Munha - Certamente que não! Seria desrespeitoso com o Candomblé e outros cultos afro-brasileiros associá-los a crenças monoteístas. Acredito que desavisados enxerguem essa conexão por causa da matéria-prima que usamos em nossa estética, que é predominantemente calcada em ritmos afro-brasileiros.

Claro que estampar uma galinha morta no primeiro disco da banda não ajuda muito nessa dissociação que você parece exigir…

Munha - Não é uma galinha, é uma pomba. Aliás, antes que você pergunte, já adianto que as pombas mortas nas capas dos nossos discos representam o sacrifício ritualístico do bom-mocismo na MPB. Nada a ver com candomblé.

Essa última resposta soou meio Black Metal. Vocês se interessam por essa estética?

Munha - Nem um pouco.

O mercado do rock undergound não os apraz, então?

Munha - Existem alguns obstáculos no trânsito do Satanique Samba Trio por esse universo. Como somos músicos profissionais e precisamos ganhar dinheiro com nossas apresentações, fica difícil nos atirarmos em projetos e festivais que partam do pressuposto que o artista convidado está devendo um favor ao subir em seus palcos.

Não me leve a mal: o público do rock sempre nos recebeu muito bem e com certeza ainda apareceremos neste ambiente ocasionalmente, mas quem sustenta nossos vícios são os eventos de jazz e MPB.

Desenvolva o tema…

Munha - Obviamente, existe um resquício da tradição do faça-você-mesmo no inconsciente coletivo do rock brasileiro. Parece haver um acordo invisível de não-pagamento entre os produtores e os artistas. Muitas vezes o produtor organiza os eventos da maneira mais econômica possível e oferece o palco para que o artista se apresente.

Esse costume gera uma dificuldade para os artistas se manterem financeiramente a partir de sua música e o ciclo se fecha. Não à toa, a maioria dos músicos que tocam em bandas de rock o faça como um passatempo, antes de qualquer coisa.

Atente para o fato de que me referi à maioria, não a todo o mercado. É lógico que a Pitty vive de música, recebe cachê e paga bem toda sua equipe…

Opa, o que temos aqui? Um fã da Pitty?

Munha - Em nome de Satã, não!

E essa história de Satanique Samba Trio Elétrico? Que diabo é isso?

Munha - É exatamente isso. Subimos em um trio elétrico e circulamos pelas ruas de Brasília (DF) tocando nosso repertório. Foram 5 ou 6 edições patrocinadas pelo fundo de apoio a cultura, acredite ou não.

Apoio do governo? Interessante…

Munha - Sim, disso não podemos reclamar (o que certamente é uma pena), até por que o trio elétrico se tornou uma alternativa para palcos controlados por produtores que têm medinha de nosso furacão. A bem da verdade, a Secretaria de Cultura do DF tem nos ajudado bastante.

Mesmo sabendo que vocês usam drogas?

Munha - Ok, essa acusação foi pra lá de leviana. Não posso falar pelos outros membros do SS3, mas eu nunca usei drogas ilícitas.

E você não pode usar drogas por causa de seu envolvimento com artes marciais? Descobri essa faceta inusitada sobre sua pessoa recentemente e achei que deveria incluir nesta entrevista. Parece digno de nota. Pra esclarecer: o quão envolvido com isso você está ou esteve?

Munha - Ultimamente tenho me dedicado ao Vale-Tudo, mas treino jiu-jitsu desde 2008, Muay-Thai desde 99 e Sanshou desde 93. Afinal, o futuro é um soco na cara…

CANCIONEIRO INFERNAL
1. Lambada post mortem
2. Cabra da peste negra
3. Ana Lídia resurrection
4. Self-destructing samba-reggae
5. Tagua York City molestus ostinato
6. DF death trap
7. Luciferi turn turn
8. Cancro Molly
9. Deprelicius
10. Badtriptronics #14
11. Herpes soul & samba zoster
12. Estilo Ricky Ramirez (original mix)
13. Pentagramarama
14. Kit de amputação asasulista

*Baixe Bad Trip Simulator #2 que não dá nada. Satã ainda dá uma força...

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

pEPEU gOMES

PAR CRISTIANO BASTOS - MAGAZINE BRAZUCA

Comme tout grand guitariste qui se respecte, Pedro Anibal de Oliveira Gomes, Pepeu Gomes, se dédia très tôt à son instrument. A 11 ans, il intégra le groupe «Los Gatos» et, à 14 ans, il rejoignit le groupe «Os Minos».

C'est cependant avec son groupe suivant, les Leifs, for- mation qui accompagna Gilberto Gil et Caetano Veloso dans son album Barra 69, qu'il achève l'exil des deux Bahianais «subversifs».

A l'époque Gilberto Gil offrit à Pepeu son LP Smash hits, de Jimi Hendrix: «Ma vie n'a plus jamais été la même», raconte-t-il. La musique bré- silienne non plus. En 1972, après avoir intégré la famille des Novos Baianos, ce guitariste représente une par- faite alchimie entre la samba, le rock, et la brésilianité.

Mais bien sûr Pepeu Gomes a aussi eu une vie post-No- vos Baianos. Sa carrière solo va être à l’origine d’un cer- tains nombre de hits très polémiques comme homem Feminino, et Barrados na Disneylandia, enregistré avec sa femme la chanteuse Baby Consuelo (mainte- nant «Baby do Brasil»).

Son premier disque solo Geração do Som, est un disque très exubérant, aussi bien au niveau de la technique qu’au niveau des sentiments. Ce n’est pas pour rien qu'aux Etats-Unis, il a été nommé par le magazine Guitar World l’un des meilleurs gui- taristes du monde dans la catégorie world music.

C'est l'homme de la situation.

...

Como todo grande guitarrista que se preze, Pedro Anibal de Oliveira Gomes, Pepeu Gomes, cedo empunhou seu instrumento. Aos 11 anos, entrou nos Los Gatos e, aos 14, integrou o conjunto Os Minos.

O domínio sobre as cordas (guitarra, violão e craviola), porém, rebentou com a banda seguinte, Os Leifs, formação que acompanhou Gilberto Gil e Caetano Veloso no álbum Barra 69, que carimbou o exílio dos "subversores" baianos.

Na época, Gilberto Gil presenteou o púbere Pepeu com o LP Smash Hits, de Jimi Hendrix: "Minha vida nunca mais foi a mesma", contou. Tampouco a música brasileira foi a mesma. Em 1972, integrado à famiglia Novos Baianos, o guitarrista fez a perfeita e alquímica junção de samba, rock e brasilidades afins.

Pepeu Gomes também teve vida pós-novos baianos. Sua obra-solo produziu hits polêmicos, como "Homem Feminino", e o verídico "Barrados na Disneylandia", ao lado da esposa e cantora Baby Consuelo (hoje "do Brasil").

Seu primeiro disco-solo, Geração do Som, é exuberante em técnica e sentimento. Não à toa, foi eleito pela revista norte-americana Guitar World um dos dez melhores guitarristas do mundo na categoria world music.

É O cara.

FISSURA (Pepeu & Geração de Som)
 





sábado, 20 de novembro de 2010

cASTIGO - lUPICÍNIO rODRIGUES




*Música cantada heroicamente por Nelson Gonçalves após ser nocauteado, no sétimo round, pelo campeão mundial Éder Jofre. A luta (foto) marcava o regresso de Nelson aos palcos quando ganhou "alta" de seu exílio contra o vício em cocaína. Ginásio do Ibiapuera, São Paulo, 1966. Aqui a gravação é do próprio Lupi, que, de mulheres, entendia muito bem. A letra dá a real...

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

bARULHO pOUCO é bOBAGEM*

POR CRISTIANO BASTOS, de Goiânia (GO) - ROLLING STONE
FOTO: MARCO HERMES

Goiânia Noise Festival chega à 16ª edição com programação variada e show inusitado de Gilberto Gil com o trio Macaco Bong

Em 1977, o punk destronou o rock do período com muita barulheira e a palavra de ordem: "faça-você-mesmo", o do-it-yourself. Foi a senha para o surgimento de rios de bandas e de gêneros que, por outra via, talvez nunca tivessem acontecido.

No Brasil, tal fenômeno veio ocorrer plenamente apenas nos anos 90, com o advento daquela que, a essas alturas, poderia ser chamada de "A Era dos Festivais de Rock". O faça-você-mesmo foi trocado pelo coletivo "façamos-por-nós-mesmos" - embora muitos ainda prefiram o lema "fazendo-por-si-mesmo".

Ao lado do recifense Abril Pro Rock e do brasiliense Porão do Rock, o Goiânia Noise Festival que, em 2010, chega à sua 16° edição, é um dos pilares desse levante. Os festivais revelam boa parte das bandas formadoras da atual, e caudalosa, cena do rock independente brasileiro.

"A premissa dylanesca 'pedra que rola não cria limo' continua mais válida que nunca no Goiânia Noise", metaforiza um dos organizadores, Márcio Jr., também vocalista da banda Mechanichs.

As noites mais movimentadas do "Noise", como é chamado carinhosamente pelos goianos, rolarão em Goiânia no próximo fim de semana, entre os dias 19 e 21 de novembro. O festival desenrola-se dentro da programação da 3ª Conferência Brasil Central Music, iniciada no último dia 13, na capital.

A Brasil Central este ano é correalizadora do Noise. No line-up, bandas e nomes importantes, como Krisiun, Musica Diablo, Otto, Nina Becker, Cólera e, para fechar, os californianos The Mummies, que tocam pela primeira vez no Brasil.

Os Mummies (que inventaram seu próprio estilo: o "budget rock"), antes, tocam em São Paulo nesta quinta, 18. E quem são os esfarrapados integrantes dos Mummies? Eles não revelam suas faces nem à base de vodu: "Múmias são múmias", criptografaram à imprensa.

É sabido, porém, que detestam toda espécie de tecnologia. Quem os viu em ação garante: a performance dos "mumificados" é das mais divertidas.

Este ano, o Goiânia Noise Festival tem orçamento estimado em cerca de R$500 mil e deve arrastar mais de 12 mil fiéis roqueiros para a rumorosa festa de guitarras. O encerramento, no domingo, tem tudo para ser histórico.

O ex-punk da periferia (também ex-Ministro da Cultura) Gilberto Gil será arremessado para os anos 60/70, época na qual vingaram os grandes festivais da música popular brasileira, para dividir o palco com o power trio cuiabano Macaco Bong (o encontro também aconteceu em São Paulo, no último dia 14; clique aqui para saber como foi o show).

O déjà vu (para Gil) acontecerá na Universidade Federal de Goiás. A "vibe" da apresentação vem sendo incensada como foi a dos Mutantes quando acompanharam o baiano em "Domingo no Parque", no III Festival de Música Popular Brasileira, em 1967.

Momento ainda mais importante para a Macaco Bong, que há muito tempo vem "boxeando" no cenário independente.

A banda Vespas Mandarinas, que tem o ex-Forgotten Boys Chuck Hipolitho como frontman, tocará pela primeira vez no Goiânia Noise. "Para falar a verdade", assume Chuck, "só percebi o valor de festivais como o Noise há pouco tempo. Foi quando realmente me aproximei da organização e do conceito. Tinha tocado lá umas duas ou três vezes. Mas só agora percebo o valor que agrega à banda ter sido escalada".

Para Chuck, o convite mostra que as coisas estão dando certo: "Fora que é rara oportunidade para reencontrar amigos antigos, gente talentosa e conhecer novas bandas. Sempre vale a pena. Sempre muito rock and roll", festeja.

A Conferência Brasil Central Music reúne também alguns dos festivais (menores) de música da cidade: Release Alternativo, Pé Rachado, Goyaz Festival e Música no Campus, entre outros. Nesta quarta-feira, 17, a programação terá três encontros especiais: Superguidis com Felipe Seabra, da Plebe Rude, Lucy and The Popsonics com John Ulhoa, do Pato Fu, e Diego de Moraes e O Sindicato.

E, para quem curte um bom "falatório", haverá palestras, oficinas e muitos debates. Durante o dia, bandas participarão de palestras, workshops e gravações acompanhadas por profissionais da música nacional e mundial.

Entre eles, o produtor Pena Schmidt, o guitarrista Peter Shelley (Buzzcocks) e a guitarrista Viv Albertine (do The Slits, cuja vocalista, Ari Up, morreu recentemente) - os dois últimos, deflagradores do tal do-it-yourself citado acima.

"Lembro a primeira vez que participamos do Goiânia Noise, em 2007. Fiquei impressionado com a cidade e com a estrutura do festival. Serve de exemplo para outros festivais independentes feitos no Brasil", afirma o baixista da Superguidis, Diogo Lachance.

Outra banda que guarda ótima relação com o Noise é a mineira Pato Fu: "Somos das bandas que mais fazem esse meio-de-campo mainstream/alternativo. Por isso estamos sempre presentes em festivais assim. Tocamos no Noise em 2007 e, agora, vou tocar com a Lucy and the Popsonics com muito orgulho", diz o compositor John Ulhoa.

Essa será a primeira vez que, juntos, tocarão o repertório de Fred Astaire, novo álbum da banda brasiliense, cuja produção é de John.

"Estou curioso para ver como estão soando com baterista de 'carne e osso' [antes havia apenas uma bateria eletrônica]. Era uma coisa que pensamos desde as gravações: que seria esse o passo seguinte, e inevitável, para a nova sonoridade que eles têm a partir de agora".

Os Walverdes, que também acabam de lançar disco de inéditas, Breakdance, é outro velho convidado do Goiânia Noise. E esse ano vai tocar de novo.

"Tocar no festival é sempre muito bom, a qualidade e a diversidade só aumentam com o passar dos anos. Deverá ser nossa quarta ou quinta participação e, para quem gosta de Walverdes, é garantia de que assistirá nosso show em alto e bom som", promete o baterista Marcos Rübenich, que também é produtor da porto-alegrense Wannabe Jalva.

Quanto à polêmica questão do pagamento dos cachês às bandas, o presidente da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin), Fabrício Nobre, afirma que, nas últimas quatro edições do festival, 100% dos artistas tiveram cachê ou ajuda de custo.

"Sempre oferecemos também a melhor hospedagem, alimentação, traslado local e a melhor equipe técnica da região."

Nasce o "monstro" - Criado em 1995, o Goiânia Noise Festival mudou, de modo particular, a história do rock goiano. Em sua primeira edição, dez bandas de Goiânia, São Paulo e Distrito Federal se apresentaram para um público estimado em quatro mil pessoas.

Após anos de intenso e perseverante trabalho realizado pela Monstro Discos, passaram pelo evento nomes nacionais de peso, a exemplo de Ratos de Porão, Los Hermanos, Sepultura e Patrulha do Espaço, além de dezenas de artistas internacionais de países como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Argentina, Chile, Uruguai, Finlândia, Bélgica e Escócia.

Leo Bigode, produtor da Monstro, avisa que o selo passará a investir em uma relação mais "íntima" com os seus fãs. Leo conta que, ainda em 2010, o selo vai lançar um portal onde fãs poderão ter vantagens como, por exemplo, receber em casa postais, adesivos e CDs, além de ter acesso a uma coletânea de inéditas grátis para download.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

cHEGA dE sAUDADE*


PAR CRISTIANO BASTOS - MAGAZINE BRAZUCA

Il est drôle de penser que le rythme innovateur de la Bossa Nova doit sa paternité à João Gilberto, un compositeur dont les plus grands idoles sont les chanteurs (tant oubliés) de l’époque que l’on a appelée l’Ere de la Radio comme: Francisco Alves, Silvio Caldas et Carlos Galhardo et, plus spécialement en ce qui concerne João: Or- lando Silva, «le chanteur des foules».

Héros d’antan que la bossa a pratiquement balayé et envoyé vers les limbes de la mu- sique brésilienne.

Né à Juazeiro da Bahia, João a reçu sa première guitare à 14 ans et ne l’a plus jamais lâchée. Dans les années 40, il s’enivrait en écoutant Duke Ellington et Tommy Dor- sey. A 19 ans, il intégra le groupe Garotos da Lua, dont il participa, où plutôt fut expulsé – jusqu’à ce qu’il quitte Salvador pour Rio de Janeiro en 1950.

En juin 1958, il entra dans les studios de l’Odeon pour y concocter un 78 tours qui comportait, d’un côté Chega de Saudade, de Tom Jobim et Vinícius de Moraes, et de l’autre Bim Bom, une composition propre très rare.

João les enregistra en susurrant et en jouant de la guitare d’une manière que l’on avait encore jamais entendue. Et après cet enregis- trement, l’histoire de la musique brésilienne et du monde ne sera plus jamais la même.

Perfectionniste, dans ses concerts, João ne tolérait pas les chuchotements dans le public, les bruits de l’air condi- tionné et encore moins les amplis déréglés. Il faisait de très rares apparitions sur scène et en quitta plus d’une au milieu du concert à cause du bruit.

De telles excentrici- tés sont facilement acceptées car il est le musicien le plus respecté de la planète, qui a gagné quatre Grammys, dont l’un en compagnie du géant du jazz nord-américain Stan Getz (pour son album Getz/Gilberto).

Le père de Bebel Gilberto, chanteuse devenue célèbre en Europe a mainte- nant son nom dans l’encyclopédie «The Grove Dictionary of Jazz».

João Gilberto n’a pas révolutionné que la bossa nova. Dans les années 1970, il devint le parrain des Novos Baianos, un groupe qui, orienté par le maître, parvint à la parfaite dose de mélange de samba, de rock et de «brasilidades».

Parfois ils passaient des nuits dans d’in- terminables jam sessions. On raconte qu’à la fin de l’une de ces nuits, les deux générations de Bahianais sortaient flâner dans les rues de Rio. Alos que le jour se levait, João aperçut une mulâtresse qui descendait de la colline pour aller travailler.

Il s’écria «Regardez, c’est le Brésil qui des- cend de la colline!». Le chanteur-compositeur, Moraes Moreira capta le message et le transforma en l’un de leur plus grand succès qui commençait ainsi «Qui descend de la colline, n’habite pas sur l’asphalte / Voilà le Brésil qui descend de la colline».

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Chega a ser cômico que a inovadora batida da bossa nova tenha sua paternidade no cantor e compositor João Gilberto, cujos maiores ídolos são os (um tanto olvidados) cantores da distante Era do Rádio.

Entre os quais, Francisco Alves, Silvio Caldas e Carlos Galhardo e, no caso de João, especialmente, Orlando Silva – "O Cantor das Multidões".

Heróis de remotos tempos que a bossa praticamente varreu para o limbo da música brasileira.

Nascido na sertaneja cidade baiana de Juazeiro, João ganhou seu primeiro violão aos 14 anos. Desde então, jamais o largou. Nos anos 1940, embevecia-se escutando Duke Ellington e Tommy Dorsey. Aos 19  integrou o grupo Garotos da Lua, do qual participou – ou melhor, foi expulso – até mudar-se de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1950.

Em junho de 1958, João Gilberto entrou no estúdio da Odeon para registrar um 78 rpm que, de um lado, teria "Chega de Saudade", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes e, do outro, "Bim Bom", uma de suas raríssimas composições próprias.

Lançado pela Odeon, em 1959, o LP Chega de Saudade, pode-se afirmar, alude às canções "dor-de-cotovelo" ou "dó-de-peito", tão em voga antes do advento bossanovístico. João Gilberto gravou-as com a voz em sussurro, o violão tocado de um jeito que jamais se ouvira.

Quando saiu do estúdio a história da música brasileira, e também mundial, nunca mais seria a mesma.

Perfeccionista, em seus shows João não tolera telefones celular, cochichos na platéia, ar-condicionado barulhento e, o mais desagradável para ele, caixas de som desreguladas. Faz raríssimas apresentações e abandonou muitas delas por falta do exigido silêncio.

Tanta "excentricidade" justifica-se pelo fato do homem ser um dos músicos mais reverenciados do Planeta. Ganhou quatro prêmios Grammy. Um deles foi por causa da parceria com o jazzista norte-americano Stan Getz.

João Gilberto, que foi casado com a cantora Miúcha e é pai de Bebel Gilberto, também é cantora (mais internacional do que nacional, diga-se), virou verbete na enciclopédia The Grove Dictionary of Jazz. Em 2009, uma fita-cassete gravada por Gilberto – encontrada por aficionados e disseminada na Internet –, espécie de working progreess de "Chega de Saudade", gerou enorme polêmica e, para o compositor, trouxe grande desconforto.

São 38 faixas. No registro ouve-se clássicos que viria a incluir em seus primeiros álbuns, assim como outras canções que nunca gravou. Entre elas, "Mágoa" (Tom Jobim/Marino Pinto), "Nos Braços de Isabel" (Silvio Caldas/José Júdice), "Chão de Estrelas" (Silvio Caldas/Orestes Barbosa), "O Bem do Amor" (Carlos Lyra) e "Beija-me" (Roberto Martins/Mário Rossi).

João Gilbeto não revolucionou apenas com a bossa nova. Nos anos 1970, apadrinhou o bando Novos Baianos, a qual, norteada pelo mestre, encontrou a infusão perfeita entre samba, rock e afins brasilidades.  Houve um tempo em que eles passavam noites em intermináveis jam sessions.

Conta-se que, ao fim de uma dessas noitadas, as duas gerações de baianos saíram a flanar pelas ruas do Rio de Janeiro. Amanhecia quando João avistou uma mulata descendo o morro indo para o trabalho. E exclamou:

"Olha lá o Brasil descendo a ladeira!" Moraes Moreira captou o mote e transformou-o num de seus maiores sucessos: "Quem desce do morro, não morre no asfalto/ Lá vem o Brasil descendo a ladeira".

*Texto publicado na revista franco-brasileira Brazuca - O Brasil de A a Z (distribuída gratuitamente em Paris e Bruxelas), cuja capa do mês é o violonista Baden Powell. O magazine é editado pelo brasiliense Daniel Carriello.

Ao texto, eu ressalvaria o que disse o crítico Zuza Homem de Mello numa das Discotecas Básicas da BIZZ, a respeito da "monstruosa" interferência de Chet Baker para o 'turning-point' da bosssa. 

Segundo Zuza, dificilmente em outro país - que não o Brasil - o álbum Chet Baker Sings atingiria consequências tão revolucionárias. Foram as "Revoluções Por Sussurros" (RPS).

mUSIQUE

domingo, 7 de novembro de 2010

eDITORIAL

Nelson Gonçalves era um homem sem medo. Fazia questão de proclamar seu desassombro, como convém ao gaúcho de Livramento. Mas tinha, claro, suas preocupações – e um pensamento que o afligia era o de cair no esquecimento.

O gago boxeador que esmurrou o destino e se tornou um dos maiores cantores do Brasil transformou esta melancolia em uma destas frases que entram para a história. "O Brasil é um país sem memória", cuspiu Nelson. "Alguém se lembra de Francisco Alves?".

Pois não é que o Brasil achou o jeito mais canhestro de dar razão ao velho Nelson? 2008 chegou ao fim e o que você, caro leitor, viu ou ouviu sobre os dez anos da morte do último boêmio? Quem se apercebeu do que define como "vergonha nacional" foi o repórter Cristiano Bastos, que assina a reportagem de capa desta edição.

"Quando me dei conta desta barbaridade, o deadline era de dois meses. Eu tinha, porém, que, antes, conhecer a caudalosa vida e obra do Metralha, achar sua filha Marilene, no Rio, os amigos cantores ainda vivos – poucos – e conhecer seu inigualável e divertido fabulário", lembra Cristiano.

Não era sem motivo, portanto, a amargura antecipada que Nelson sentia quando anunciou sua vontade: "Quero ser cremado. Uma semana depois de morto, estarão fazendo xixi sobre a minha tumba".

"Não se preocupe, Metralha", anota Cristiano ao pé da matéria. "Demos uma boa limpada em sua lápide. Esperamos que você goste do que a gente escreveu, aí no céu dos boêmios!"

Boa leitura,
Eugênio Esber

o dONO dAS cALÇADAS*

Sangüíneo, mulherengo e cantor genial são só alguns dos adjetivos utilizados para classificar Nelson Gonçalves

POR CRISTIANO BASTOS, do Rio de Janeiro

As cinco frases enunciadas pelo cantor Nelson Gonçalves, na abertura do espetáculo Eternamente Nelson, resumem os desígnios – trágicos e redentores – de sua trajetória nos palcos e na vida. O ano é 1981. Soa o gongo.

O Metralha, apelido decorrente da fala rápida e entrecortada, galga a trote as escadarias que conduzem ao galante palco iluminado, sobre o qual cantará nos festejos de 40 anos de uma carreira brilhante.

Atrás de si, a metáfora grafada em maiúscula: RING – palavra que, a vida toda, foi uma espécie de amuleto para o astro, boxer, e dos bons, na juventude. Com seu timbre de veludo, ele dá a ficha:

"Meu nome é Antônio Gonçalves Sobral. Gaúcho de Livramento. Minha vida sempre foi uma luta. Minha arma, minha voz. Meu destino: cantar".

Dez anos se passaram desde que o destemido boêmio morreu, aos 78 anos de idade, vítima de um fulminante ataque cardíaco. Mas, felizmente, a data não passará em branco. Lançamentos à altura de Nelson vão presentear seus fãs, velhos e novos, com o talento daquela que, provavelmente, foi a maior voz que já cantou no Brasil.

No DVD Eternamente Nelson – Especial e Registros Raros da Carreira de Nelson Gonçalves, o show captado e exibido pelaRede Globo em 1981, a Sony&BMG reavivou som e imagem do espetáculo que marcou quatro décadas de carreira do valentão.

A gravadora também vai relançar o debut do cantor em LP (long-play), Nelson Interpreta Noel, de 1954. A novidade principal, contudo, deve ser O Canto Que MeEmbalou – Poemas para Meu Pai, Nelson Gonçalves, livro da filha Marilene Gonçalves, a primogênita, que deve atrair grande número de admiradores interessados na face humanado ídolo.

Nelson, revela Marilene, em nada era convencional. "Não procurei falar do artista que todos conheceram, mas da pessoa que se escondia nele. Uma pessoa inocente, sensível, inteligente", diz a filha. Famoso de dar inveja, Nelson tratava o sujeito do elevador, o garagista ou a celebridade da mesma maneira simples. "Agora, era machão. Tinha personalidade forte. Sempre foi teimoso, mas também sempre foi um menino", revela.

Nelson Gonçalves foi um dos maiores cantores do Brasil, como prova sua trajetória. Até hoje, a marca que atingiu é altíssima: 70 milhões de discos vendidos, média espetacular de mais de 1 milhão anuais – embora o copioso numerário tenha minguado ao extremo na infernal temporada aos confins da droga que fazem parte de sua biografia.

Nos cálculos do próprio cantor, da gravação de estréia – a valsa Se Eu Pudesse um Dia (outubro de 1941) – ao derradeiro CD Ainda É Cedo(1997), são mais de 2 mil registros fonográficos. No Brasil, só perde para o mitólogico Roberto Carlos.

Cancioneiro sulcado em 183 discos de 78 rotações, 100 compactos, 200 fitas K-7 e 127 long-plays, só o registro da indefectível A Volta do Boêmio, que marcou justamente o fim de seu casamento com a cocaína, vendeu 2 milhões de exemplares. Algarismos que nem o colega de RCA Elvis Presley superou, com suas cerca de 1,6 mil canções e 63 álbuns.

De afinidade, entretanto, os "reis" têm apenas o prêmio Nipper, deferência dada aos bastiões da gravadora – no mundo, apenas Presley e Nelson receberam a honraria. Gaúcho por acaso, a origem caiu como uma luva ao tipo falastrão e superlativo construído por Nelson.

Em 1919, os pais, imigrantes portugueses de Vizeu que ganhavam a vida como artistas mambembes, tiveram o varão na cidade fronteiriça com o Uruguai. E pouco tempo depois (as versões variam de dez dias a dois anos) partiram definitivamente para São Paulo. O cantor, em que pese esse acidente, sempre valorizou suas raízes gauchescas.

"O Nelson era gaudério mesmo", diz o roqueiro Lobão, que durante os anos 80 conviveu e gravou com o cantor. Segundo Lobão, três coisas formavam a personalidade sangüínea do artista: a ascendência gaúcha, a experiência semi-profissional como pugilista, em São Paulo, e a atividade de gigolô na Lapa carioca. Lobão diz que nunca vai esquecer o dia em que conheceu o astro.

"Cheio de deferência, fui me apresentar: 'Como vai, Seu Nelson?' O malandro emendou: 'Seu Nelson é o caralho! Sou você amanhã", lembra o roqueiro, numa menção à dependência de cocaína que ambos amargaram – Lobão, no caso, ainda amargava. O músico continua a se deliciar com o lema do amigo: "Onde houver botequim, puteiro e violão, haverá Nelson Gonçalves cantando uma canção", recita.

Depois que deixou Santana do Livramento, Nelson Gonçalves esteve na cidade apenas duas vezes: uma em 1972, para fazer um show no Ginásio Coronel Mallet lotado; outra em 1978, para receber uma homenagem da Câmara deVereadores. Na primeira vez, Nelson vinha de um período de três anos sem gravar – o artista recém tinha superado sua relação com a cocaína e tentava reestruturar a carreira.

"O show foi um estouro, tinha gente pra caramba. Depois da apresentação fomos todos comer parrilla em Rivera", conta Roberto Silva, há 42 anos radialista na cidade e que fez a apresentação oficial do espetáculo. Conforme Silva, Nelson era quieto, falava pouco e ficava na dele em função de uma gagueira acentuada que o incomodava.

Nelson, que nasceu na rua Silveira Martins (esquina com a Vasco Alves), voltou à cidade quatro anos depois para receber o título de cidadão santanense. Antes da homenagem, conta o radialista, comeram um churrasco numa estância e, depois, foram à Câmara para inaugurar uma placa alusiva à data. Vai daí que alguém sugeriu um show. "Só que ele se recusou. Alegou que não tinha músicos para acompanhá-lo", lembra Silva, mais uma vez testemunha privilegiada da história.

Tarde demais: o Ginásio Guanabara já estava lotado, à espera do cantor. O time de músicos – formado por um violão de 12 cordas e outro de sete, mais um cavaquinho e farta percussão – estava a postos. Muito a contragosto, Nelson topou cantar apenas uma música. "Mas gostou do acompanhamento e do clima e mandou outras dez", lembra o radialista.

Mesmo assim, ficou tão irritado com o episódio que nunca mais voltou à cidade. "Apesar disso, é Deus em Livramento. Tem um carisma muito grande", atesta Silva. Reza a lenda que o cantor ainda tem parentes na cidade, que moram no Cerro do Marco, na divisa entre Livramento e Rivera.

E que, freqüentemente, ia jantar com os primos, devidamente disfarçado, no restaurante do Pedrinho. Nos anos 90, Nelson foi tema de um samba-enredo baseado no sucesso Normalista, feito pela Escola de Samba Império da Zona Sul de Santana do Livramento. Com autorização por escrito, o nome de Nelson entrou na letra do samba.

"Nelson tem anel de bamba/Na Lapa formado em samba/e vem pra nossa escola desfilar/e na avenida nossas cores exaltar/Hoje Santana festeja tua vitória/Nelson Gonçalves canta a alma brasileira/e pra mostrar que nosso povo tem memória/a nossa escola pôs teu nome na bandeira", engrandece o enredo.

De Santana do Livramento, a voz de Nelson Gonçalves conquistou o Brasil. Em Rondônia, no topo da popularidade, vivida entre os anos 50 e 70, uma tribo de índios guarajámirim recebeu o ídolo ritualisticamente: todos nus, dançando com cópias do compacto A Volta do Boêmio debaixo dos braços. Em 1975, Nelson foi bem mais longe com o sambacanção Naquela Mesa, de Sergio Bittencourt: primeiro lugar nas paradas de sucesso da Bélgica.

Salto carrapeta - Nada mal para quem foi desacreditado por ninguém menos que Ary Barroso. Ao botar os pés na emissora paulista PRA-5, em 1939, para prestar mais um teste, o aspirante a galã ainda respondia por Antônio. Contava então com 18 anos. No dia do teste, o garboso Nelson – então Antônio –caprichou no figurino: cabelo engomado, paletó apertado e salto carrapeta, aquele taquinho que levanta a parte traseira do pé.

O nome artístico foi dado na hora da estréia. "Antônio parece dono de botequim. Nelson é mais musical", recomendou-lhe um dos integrantes do regional que o iria acompanhar. Já como Nelson Gonçalves, interpretou Lábios Que Beijei, na época um sucesso estrondoso na voz de Orlando Silva, o cantor das multidões. Agradou e foi contratado.

Como o rádio brasileiro atingia seu clímax de popularidade, Nelson aproveitou o emprego para se casar com Elvira Molla naquele mesmo ano. Era o primeiro de uma série de três esposas oficiais, sete filhos (cinco deles adotados) e uma incontável legião de casos. Entre elas, Maria Luiza – a última esposa, que agüentou a barra de ter um viciado em casa e acabou domesticando Nelson.

"As mulheres foram o seu fraco", reconhece a filha Marilene. Para aproveitar mais a vida, chegou a implantar uma prótese peniana com a qual assustava os amigos nas horas mais afetuosas: por conta do implante, ninguém queria abraçá-lo. No limiar da Segunda Guerra, antes de engrenar carreira artística, Nelson perdeu o emprego na PRA-5 e nada mais lhe restou senão ganhar a vida como garçom no bar em que o irmão tocava, na avenida São João.

Só não renunciou ao sonho de cantar no Rio de Janeiro, feito que conseguiu realizar afanando 70 mil réis do irmão. Na Tupi, foi se apresentar no show de calouros A Hora do Gongo, de Ary Barroso.

Após a apresentação, o irreverente compositor de Aquarela do Brasil perguntou o que ele fazia em São Paulo. "Eu jogo boxe", respondeu Nelson. "Então volta pra lá. Tu não canta é nada", disse o radialista.

O aprendiz escutou a recomendação – mas não voltou a São Paulo para jogar boxe, e sim para estudar música com o maestro Armando Bellardi. Nelson Nelson levou a carraspana a sério, o que rendeu ao país seu maior cantor. Aprendeu divisão de palavras, valorização de tônicas, respiração pelo diafragma.

Soltou seu primeiro "ré-gravíssimo". Bellardi explicou ao pupilo então que, na verdade, ele não sofria de gagueira, como acreditava. Era, sim, taquilárico (do grego "takimós": respiração curta e acelerada): ou seja, falava mais rápido que o pensamento, "metralhando" palavras.

A primeira oportunidade profissional no Rio surgiu logo depois, ofertada pelos irmãos Orlando Monella e Oswaldo França para gravar Se Eu Pudesse um Dia. O trato era o seguinte: se Nelson a interpretasse bem, os irmãos bancariam a prensagem de 10 mil cópias de um disco. Nelson topou. Com a prova de acetato em mãos, o cantor procurou o diretor RCA Victor, Vitório Lattari; ouviram a gravação e, ao final, Lattari comentou, embevecido: "Maravilhoso cantor. Quem é?".

Ao saber que era Nelson, teve uma reação intempestiva: "Esse não é você. Você é gago! Ponha-se daqui para fora, seu ladrão de acetato". bradou. A interpretação da música no ato, para dirimir a dúvida de Lattari, acabou livrando a cara do novato. E, de quebra, lhe rendeu o primeiro disco, um 78 rpm datado de 1941.

Faltava, no entanto, uma música para o lado B. No Café Nice, reduto da boemia carioca, o sambista Ataulfo Alves deu a Nelson o regalo mais importante da sua incipiente carreira: o samba Sinto-Me Bem, no qual o cantor colocou os versos ("sinto-me bem quando estou na solidão/sinto-me bem ao chorar por meu amor/sinto-me bem quando o coração reclama no meu peito/batendo contrafeito para aliviar uma dor"). Foi um estouro. A ele se seguiram mais 74 compactos só nos anos 40, com sambas, tangos, valsas, boleros. Em 1945, chegou a gravar 13 discos.

Na década seguinte, mais uma enxurrada de gravações com os sucessos de Camisola do Dia (1953), Carlos Gardel (1954), Esta Noite Me Embriago (1955) e A Volta do Boêmio (1957) – o frisson causado pelo samba-canção sobre o desiludido homem que suplica por sua nova inscrição na boemia retardou o advento sonoro do rock, já iniciado por Celly Campelo e companhia. Junto com Cauby Peixoto, que chegou a namorar o rock, Nelson Gonçalves virava estrela. Gravaram juntos Nervos de Aço, de Lupicínio Rodrigues.

"Nelson foi o cantor com o grave mais belo que conheci", enaltece Cauby.

Personagem pronto - Uma vida tão célebre não poderia deixar de render polêmicas públicas. A mais conhecida delas envolve a biografia A Revolta do Boêmio, publicada em 2001 pelo escritor Marco Aurélio Barroso e que tenta desmistificar as aventuras vividas por Nelson Gonçalves.

Como a notícia de que uma cantora americana de nome Betty White se suicidou ateando fogo ao corpo por não ter sua paixão correspondida pelo astro. "Era tudo invenção dele. A tal cantora não era americana, se chamava Vera Alves Guimarães e morreu num acidente doméstico com álcool", diz o pesquisador. Segundo ele, Nelson a conheceu na boate Tabu, aprendeu a tocar violão com o irmão dela e não a abandonou, como dizia.

Barroso desmistifica também a relação de Nelson com o boxe, com as drogas e com o próprio ofício de cantar. "Ele tinha talento sim, mas não soube usufri-lo da melhor maneira", opina. Na verdade, o pesquisador é um desafeto confesso do intérprete Nelson Gonçalves. "Nunca gostei dele como cantor. Não o conheci quando estava vivo. Aliás, nem quis conhecê-lo", reconhece Barroso, que começou a escrever a biografia logo depois da morte do cantor.

Segundo ele, atraído pelo personagem "pronto" que representava Nelson Gonçalves – para ele, "um mentiroso que construiu sua fama com o auxílio da imprensa". O escritor conta que fez mais de 200 entrevistas com amigos, colegas e familiares de Nelson. "Biografia não é ficção. Eu não inventei nada", defende-se Barroso. O livro, bancado pelo próprio autor, está esgotado.

Seja como for, a polêmica provocada por Barroso não afetou a importância de Nelson para a música brasileira – especialmente para seus milhões de fãs. Quando morreu, em abril de 1998, um cortejo de duas horas em carro aberto levou o corpo do cantor ao cemitério São João Batista entre uma multidão pelas ruas do Rio de Janeiro. "É um livro frio, sem charme e sem beleza. E o tiro saiu pela culatra, pois não fez sucesso nenhum", desdenha a filha do artista, Marilene.

Segundo ela, as fontes em que se baseou Barroso não lhe deram acesso ao verdadeiro Nelson. "Ele usou depoimentos de pessoas que conviveram pouco com o pai, entre elas alguns dos filhos adotivos", explica. De fato, a imagem do boêmio – falastrão, jogador, irresponsável – segue intacta dez anos depois da sua morte.

No bar Nova Esplanada, reduto tradicional da boemia na Lapa, o sambista carioca Dicró lembra uma história que o próprio Nelson lhe contou para exemplificar o espírito fanfarrão do astro. Certa vez, o artista foi se apresentar no interior. Como sempre acontece, a cidade estava em polvorosa e, dias antes do show, o prefeito lhe disse:

'Nelson, quando chegares aqui vamos te apresentar o maior cantor que temos na cidade. Canta tão bem quanto você. Inclusive suas músicas', tascou. Nelson, que era meio grosso mas não perdia a compostura com os contratantes, concordou. No dia da apresentação, entretanto, combinou com os músicos que o acompanhavam para que tocassem a música escolhida pelo cantor local dois tons acima.

"Quando o sujeito abriu a boca, desafinou tanto que ninguém entendeu nada", relembra Dicró, às gargalhadas. Arthur Moreira Lima é outro fã do talento do cantor. Ele e Nelson Gonçalves deram 50 concertos juntos tocando as músicas de O Boêmio & O Pianista (1992), álbum no qual o duo reinterpreta cantigas como Lamento (Pixinguinha), As Rosas não Falam (Cartola) e El Dia Que Me Quieras (Le Pera e Gardel).o estúdio, ajustar os sofisticados arranjos de piano urdidos pelo maestro Laércio de Freitas aos enlevos vocais de Nelson requereu artimanha de gravação: a inserção do piano de Arthur foi feita posteriormente ao registro da voz de Nelson, que cantou sem acompanhamento. "Gravação complicada mas com resultado muito bom", define Freitas.

Nelson também arrebatou corações de artistas mais jovens, mesmo quando já estava em fim de carreira. Nelson Gonçalves interpretou Nada por Mim, parceria de Paula Toller com Herbert Vianna, num CD de 1997 só com hits de baladas pop brasileiras. A crítica torceu o nariz. "Pura implicância. É só ouvir de novo para perceber que ele não se curvou a modismo algum, cantou nossas músicas com a dicção à moda antiga, trazendo-as para sua praia", diz Paula Toller.

Angela Rô-Rô é outra fã de carteirinha. "Tivemos a mesma relação intensa com as mulheres", diverte-se a cantora. O cantor cravou seis décadas de permanência na música brasileira. Em 1989, aos 70 anos, mantinha a voz em forma com a turnê nacional 50 Anos de Boemia. José Milton, produtor do espetáculo, sintetiza: trabalhar com Nelson era fácil:

"Além de cantar muitíssimo bem, tinha familiaridade com o estúdio e não era estrela", recorda. Dez anos depois, debilitado, morreu de um ataque cardíaco. O Metralha ainda faz falta.

*Em seguida leia sobre os "10 Discos Essenciais" de Nelson Gonçalves (comentados);após,a resenha crítica do DVD Eternamente Nelson, da reportagem da Aplauso

sábado, 6 de novembro de 2010

10 dISCOS eSSENCIAIS

Nelson Interpreta Noel (1956) – A Sony BMG prepara para 2009 o relançamento desse que foi o primeiro LP de Nelson, de 1956. O Metralha ataca de Noel Rosa em sambas como Três Apitos e As Pastorinhas.

O Boêmio & o Pianista – Nelson Gonçalves & Arthur Moreira Lima (1992) - Arthur Moreira Lima reveste antigas canções com classe e intimismo. No álbum, Nelson se reinterpreta.

Eu & Elas (1984) – Bem-sucedido disco de duetos de Nelson Gonçalves com grandes damas da MPB, como Maria Bethânia, Fafá de Belém e Alcione. Com esta última, canta o hit Louco, de Wilson Batista e Henrique de Almeida.

Eu & Eles (1985) – Na trilha do sucesso da versão feminina, artistas como Milton Nascimento, Lobão e Chico Buarque dividem o microfone com o vozeirão.Destaque para o antigo sucesso Renúncia, com Tim Maia.

Quando a Lapa Era a Lapa (1973) – Álbum recheado de curiosidades. Entre elas, quatro canções assinadas pela esposa Maria Luiza. A grande surpresa fica por conta de Maria e Mais Nada, letra de ninguém menos que Chico Xavier.

Êxtase (1959) – Disco de capa memorável e de canções românticas ainda mais: Meu Triste Long-Play, Deusa do Asfalto, Vaidosa e O Preço da Glória, da dupla David Nasser e Herivelto Martins.

Escultura (1958) – Enorme sucesso. Traz os hits radiofônicos Deixe Que Ela Se Vá, És Tudo para Mim e a belísisma Destino, que embalou muitos corações nos dourados anos 50.

Pensando em Ti (1957) – Segundo LP de Nelson. A afirmação do sucesso vem com a canção título, puxada por dois de seus hits monumentais: Meu Vício É Você e a emblemática A Volta do Boêmio.

O Tango na voz de Nelson Gonçalves (1956) – Para ele, a dupla Herivelto Martins e David Nasser compôs números como Carlos Gardel, Vermelho 27 e Hoje Quem Paga Sou Eu. Sucesso também no Uruguai e na Argentina.

Trilha Sonora do filme Nelson Gonçalves (2001) – Trilha do documentário sobre a vida do cantor gaúcho, bem explorada em canções de todas as fases, como Sinto-Me Bem, Dos Meus Braços Tu Não Sairás e a fetichista Camisola do Dia.

eTERNAMENTE nELSON

Ainda sem data de lançamento nem preço definidos, o DVD que será apresentado pela Sony&BMG trará gravações históricas de Nelson Gonçalves.

O vozeirão aveludado poderá ser visto (e principalmente ouvido) em clássicos que marcaram época, como Normalista, Maria Betânia, A Volta do Boêmio e Saudade – esta última um samba-canção de Lupicínio Rodrigues interpretado por ele com lirismo e entrega sentimental absolutos.

Beirando os 60 anos na época da gravação, na verdade um especial para a Rede Globo, Nelson ainda cantava de maneira soberba. A voz estava no auge da força e vigor.

Na apresentação, com participações especiais do compositor Evaldo Gouvêa e do xará Nelson Cavaquinho, o boêmio também apresenta Meu Vício é Você, uma versão fado de Nem às Paredes Confesso e as másculas Carlos Gardel e Negue. Ambos, números nos quais a admirável extensão vocálica se mostra à toda prova.

A edição de Eternamente... é histórica não apenas por se tratar do principal registro audiovisual do cantor lançado no mercado, mas, igualmente, por juntar uma incrível coleção de extras.

As mais reveladores são aqueles em que Nelson não esconde detalhes sobre a célebre fase junkie, entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70: "Em casa, eu tinha guardado um quilo de pó", revela de forma drástica, de dentro de um ringue.

Musicalmente, o material recupera duetos gravados com artistas como Martinho da Vila, Alcione e Tim Maia no extinto televisivo Globo de Ouro. Videoclipes de músicas como Auto-Retrato, por exemplo, trazem de volta os imemoriais tempos pré-MTV.

O valor documental do DVD é indiscutível – são testamentos nostálgicos de uma gloriosa era que, tão cedo, não se repetirá. Tanto para indústria fonográfica quanto para a Música Popular Brasileira.

*Ei-lo: lançadíssimo!

sábado, 23 de outubro de 2010

tUDO É pREZA


POR CRISTIANO BASTOS/URBANAQUE

A Bidê ou Balde voltou!

Depois de seis longos anos de exílio do noticiário pop e marrom a intrépida trupe comandada pelo mais novo pai de família da praça, Carlinhos Carneiro, deu uma rasteira no hiato e lançou dois singles de uma vez só, que irão figurar no EP a ser lançado no fim do ano:

A grudenta "Me Deixa Desafinar" e a falsa melosinha "Tudo É Preza". (ouça abaixo)

Nosso destemido colaborador Cristiano Bastos (o mano Cristiano) entrevistou o vocalista que teve de ser auxiliado por uma médium que o guiou para incorporar três entidades indígenas das etnias Xavante, Kraho e Guarani.

Carlinhos & Os Índios (isso já é nome de banda…) falaram sobre as atividades paralelas da Bidê – quando não está com o microfone na mão o vocalista mantém uma rotina campeira – e contaram as boas novas da banda, como Rivers Cuomo liberou a versão de "Buddy Holly" do primeiro disco.

E, por fim, a indiada enfileirou todos os seus ídolos do rock gaúcho. Mantenham a calma e fiquem atentos, que "eles" exigem respeito!

Vamos lá?

Sim, vamos!

Você está sozinho na sala ou tem mais alguém com você aí?

Sim, eu estou acompanhado. Sinto a presença de três índios que vieram tentar rever o mundo através de mim e fizeram da minha fala uma ponte para suas intenções e delírios. Pois os mortos deliram.

Do quarto ao lado escuto a presença de minha senhora e nossa filhinha (primeiro um resmungo chorado, depois um 'pega a teta, Sofia' e então os estalos semelhantes aos de beijos, sinalizando que ela se atracou no papá).

E eu estava agora há pouco falando pra um antigo colega de faculdade no MSN, a quem prezo carinhosamente, sobre o quanto é maravilhoso procriar e estar envolto em amor incondicional.

Como você se sente nunca estando solitário?

Como um canguru, ainda.

Você está pronto para falar sobre a banda, A Bidê ou Balde?

Sim, acho que sim. Os índios gostam da Bidê. E a minha filha, Sofia, mais ainda! Ás vezes só dorme quando colocamos o Outubro ou Nada! para embalá-la no sono. E seguido pego a Bruna, minha mulher, musa e personal stylist, cantando 'Me Deixa Desafinar' pra ela nanar!

Depois de toda a sensação que a banda causou quando surgiu, qual o momento da Bidê hoje?

Estamos, finalmente, lançando material novo na bocada! Semana passada, no dia do meu aniversário, 6/10, rolou a estreia da primeira música inédita nossa em 5 anos, 'Me Deixa Desafinar', na rádio Atlântida – principal rede de rádio pop da região sul do Brasil.

Lançamos com exclusividade lá, antes mesmo da internet, de blogs e de rádios de caráter mais indie e ansiosas por novidades, na tentativa (bem sucedida!) de reestabelecer a parceria que sempre tivemos com eles.

É também uma reafirmação de um lance que sempre temos que reafirmar: somos uma banda pop – uma banda pop que se alimenta até de coisas nada pop, mas que enxerga viabilidade pop em tudo que gosta, e com isso ainda pretende salvar o pop das garras do iogurte desnatado estragado.

Desde que a música entrou na programação os caras receberam uma enxurrada de pedidos de execução dela, de gente curiosa em ouvi-la (até gente de outros estados, onde não pega a rádio, pediu para ouvi-la online, no site da Atlântida), os saudosos de novidades da Bidê e gente nova, que curtiu a música de cara!

Isso é muito massa e inspirador, principalmente por causa do sistema que escolhemos para lançá-la (e consequentemente para lançar todo o nosso novo álbum), aos poucos, em pílulas… primeiro essas músicas ["Tudo é Preza!" foi lançada na internet também] e mais rádios, e ambas estarão em um EP que deve chegar da fábrica em novembro, com 5 faixas…

Daí seguiremos gravando singles e/ou EPs até ter o equivalente a um disco ou algo do gênero, como um box de EPs (que é a origem da ideia)… então ter uma estreia boa, com ótima recepção, é muito inspirador para as coisas que vamos continuar gravando e produzindo!

(um dos índios fala através de Carlinhos, com carregado sotaque de índio): acho preza dizer que a Bidê é a única banda brasileira que tem um vocalista que não assistiu Avatar, nem Nosso Lar – ainda.

Antes de decidir um nome para os discos, a Bidê sempre nomeia os discos como projetos. No novo que estão gravando qual é o projeto?

Chamamos esses projetos de nome provisório do disco, nesse é "Projeto: contar patranhas", no primeiro, no segundo e no terceiro eram, respectivamente, "Projeto: ganância", "Projeto: alienação" e "Projeto: simples".

Não é pura e simplesmente verdade que se possa comparar a crença em deuses com a amizade ou o amor que se sente por pessoas com as quais convivemos realmente todos os dias, e que ao longo da vida nos dão provas de reciprocidade (ou de falta dela).

Ninguém toma o pequeno-almoço com deuses, nem vai ao supermercado com deuses nem os leva à escola de manhã. Chamávamos, lá pelas tantas, esse amontoado de coisas passíveis de se tornar um disco de "Projeto: mistério", pois o mistério é um tema ou elemento que liga muitas das canções, sem querer.

Qual a tua opinião sobre a cena de Porto Alegre. O que tu destaca de legal?

Não sou muito de ir ao teatro, mas (em 2007) gostei muito da versão de “Sonho de uma Noite de Verão” que tem o meu amigo Léo Machado no elenco. É num estilo cabaret, cheio de cantorias, muito bem dirigido e com ótimas atuações (na minha modesta opinião).

Vocês fizeram parte de um momento de explosão das bandas independentes. Passados tantos anos, o que mudou no cenário?

Agora o Internacional é bi-campeão da Libertadores, do mundo e da Recopa. Tríplice coroa. Acho preza esse termo/título, que deve ter sido inventado pelos marqueteiros do colorado mesmo. É também campeão da Sul-Americana, e dia desses ganhou com seu time sub-20, acho, a taça cidade de Santa Maria. Uma tremenda mudança no cenário!

O que você anda ouvindo, Carlinhos?

Janelle Monáe! O EP dela e o The ArchAndroid, que estou considerando um dos melhores discos de 2010!

Vocês ainda são filiados ao anti-movimento Vive Le Flesh Nouveau? Quem está por trás de VLFN?

Só eu continuo no Vive Le Flesh Nouveau! O resto do pessoal da banda saiu por desentender-se com convenções religiosas do coletivo. Ninguém está por trás do Vive Le Flesh Nouveau! A Carne Não Tem Raízes!

VLFN! tem a ver com “terrorismo new wave” e “empirismo pop”, conceitos pop-arrrtivistas formulados em Outubro ou Nada?

nÃO COMPRE aRRRTE, gASTE EM cARRRNE! (um dos índios é mudo).

Quem são seus ídolos do rock do Rio Grande do Sul, Carlinhos?

Plato, Flu, Edu K, Júpiter, Frank Jorge, Wander, Mini, Julio Porto, Zé do Bêlo, Tony da Gatorra, Jorjão, André Arieta, Cristiano Zanella, Lee Martinez, Jesus Buceta, Os Panarotto, Carlo, Birck, Petraquinho, Os Felinos, Pedrão Motora, Luiz Wagner, Rangel de Jaguarão, Campo & Lavoura, Vini Tonello, Liverpool, Pancho da Cara, Diego Medina, Rangel de Verdade, Fernando Rosa, o Agromod, Miranda, Flavinho Carneiro, Biba Meira, King Jim, Dr Love, Patrick, Glauco Caruso, Marcos, Cidade, Claudinho Transportes, Padeiro, Six, 4nazzo, Jimi Joe, Guri Assis Brasil, Jairo William Caveman, Kamika, João Carteiro, Moskito, Sting, Vitória Cuervo, Bolada, Pedrão Hahn, o Franco da Blazz, a dona Ivone Pacheco, Serginho Moah, Nando Endres, Cláudio Cunha, Ferla, Nik, Peninha, Katsy Carmichael, Menchen, Benvenutti, Ildo, Cicuta, Rogério da Toca, Getúlio da Boca, Salim, Rossatto, Liege, Deborah Blank, Suzy Doll, Dani hyde, Terréks, Dani Bolan, Chicão e o coral dos Irmãos Guatemala. (…)

Rivers Cuomo aprovou pessoalmente a versão de Buddy Holly, do primeiro disco? Como foi? Ele curtiu? Conta aí.

Pergunta pro Will, da Wonkavision, porque foi ele que conseguiu a liberação. Ele morava em Los Angeles, disse que ia tentar chegar pra ele na cara dura, mostrar a música e perguntar se ele liberava e dar esse start para liberação junto a editora e tal. Deu certo, o Rivers disse que liberava e deu o caminho das pedras para a liberação.

Na época, ele disse que o cara tinha achado estranho/engraçado ouvir sua própria música em português. Isso é o que mais me marcou. Às vezes me pego pensando na versão islandesa de "Gerson", na turca pra "Mesmo que Mude”, “Me Envergonha” em mandarim…

Na vinda deles ao Brasil, no show em Curitiba, houve um segundo contato massa entre nós e eles: o Sá alugou o seu mini-moog pro Brian Bell tocar, e foi – com a Vivi – no show, acompanhando o sintetizador (viu passagem de som, conheceu os caras, os ensinou seu extraordinário passo de dança "o manobrista Pete Townshend", salvou a Terra e ligou pro Al Gore. Tudo num dia!).

Depois do show eles colocaram no site deles um agradecimento ao Sá, pelo instrumento e por ter salvo o mundo, e falaram da gente. Achei massa.

(o índio com jeito de bicha diz): no Rock in Rio 3 o jorrrnalishta José Flávio Júniorrrr, que era inclusive da Bizz, deu uma cópia do primeiro dishco da Bidê pro Dave Grohl, que comia – ou come ainda, sei lá – aquela mina que tocava no Hole e no Smashing Pumpkinsh que tinha como primeiro nome o mesmo Melissa da música dosh Bidê. Ele mostrou isso pro cara e viu que tinha “Buddy Holly” também. O jorrrnalishta José Flávio Júniorrrr explicou que era a música do Weezer, e o Dave Grohl reshpondeu 'that fuckin' Weezer song???".

Eu achei muito preza que esses dias me disseram o boato que os fãs do Weezer estavam oferecendo 10 milhões de dólares pra eles não mais tocarem e os decepcionarem. Hahaha!]

Rock Sukita é coisa do passado?

Ainda se samba e se sambará. Ainda se beija e se beijará. Ainda se casa e se casará. Ainda se reza e se rezará. Ainda se deita e se deitará, um dia pra sempre. E assim pra sempre será.

Conta como surgiu a história da música "A-Há!"

A letra de 'A-há!' é inspirada num conto do Marcelo Benvenutti, que estava em uma revista que a gente fazia na época da faculdade, no comecinho da banda, a RevistaZE. O texto era sobre uma festa em uma boate portoalegrense, onde do nada faltava luz e havia a aparição de uma entidade/homem com um pau incandescente gritando "eu sou Mickey Rourke".

Além disso, tem muitas passagens do texto na música, além de um tanto de outras coisas que eu mesmo inventei e coloquei na “história”. A título de curiosidade: entre essas coisas incluídas por mim está o nome que cito na primeira estrofe, Renan, que na época veio à música influenciado pela sonoridade do nome do mesmo (por enquanto) senador Renan Calheiros, que tem estado tão em voga nos noticiosos.

E as abelhas?

Pois é, tenho andado muito preocupado com esse lance das abelhas saírem pra polinizar e não voltarem mais para as suas colmeias. Acho isso muito doido!

Carlinhos: quais são as suas 10 canções pop de todos os tempos, se tivesse que montar uma coletânea?

Não sou de listas. Muito menos as que se propõem definitivas. Prefiro imaginar uma coletânea:

"My Sharona" – The Knack
"Sexx laws" – Beck
"Lala love you" – Pixies
"Blinding Sun" – Mudhoney
"Besta é Tu" – Novos Baianos
"Got to Get Into My Life" – Beatles
"Você Não Serve Pra Mim" – Roberto Carlos
"Picture Book" – Kinks
"20th Century Boy" – T-Rex
"Race For the Prize" – Flaming Lips

Mas tinha que ter Clash, Sinatra, Elvis, Jorge Ben, Tim Maia, Erasmo, Lulu Santos, Paralamas, Butthole Surfers, Dinosaur Jr, B52′s, Gang of Four, Titãs, Mutantes, Happy Mondays, Beastie Boys, Beach Boys, Cypress Hill, Rolling Stones, Bob Dylan, Neil Young, Burt Bacharach, Blur, uma pá de coisa… não curto listas…

(a ligação cai e o entrevistador não consegue mais estabelecer contato com Carlinhos).

[ENTREVISTA: Cristiano Bastos/EDIÇÃO: Leonardo Dias Pereira]
Me Deixa Desafinar

Tudo é Preza

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

vIDEOoUbALDE





dESMONTANDO bIDÊ oU bALDE: oUTUBRO oU nADA!

1. Hollywood #52
Junção de loucuras, cheia de referências ao que ouvíamos na época e ao que passava pela nossa cabeça, à casa e ao lugar onde morávamos em São Paulo.
A casa ficava no bairro Brooklin, que tem uma rua chamada Hollywood bem pertinho. Nossa casa era uma "mansão" com quarto nos fundos, onde improvisamos um estúdio que era habitado por cupins.
De minha parte, decreta a morte da "necessidade" de ficar rico e famoso propagandeada na primeira fase da banda.
2. Cores Bonitas
Uma das músicas mais antigas da Bidê, provavelmente das que nasceu no primeiro ensaio. Ela passou por diversas versões antes de chegarmos à versão Breeders.
É assim que à chamávamos antes de surgirem Leonardo Boff e seus arranjos de corda e sopro: aí tudo mudou.
Quando a galera ouvia os arranjos sendo executados pela primeira vez, no estúdio, na hora da gravação, as gurias choraram, nossos queixos caíram e finalmente fez sentido na minha cabeça o lance de adicionar cores à uma canção...
E não havia música mais apropriada para adicionar cores do que uma chamada "Cores Bonitas".
3. Microondas
A base da guitarra, das estrofes, foi a primeira coisa que inventei num violão, quando os guris tentavam me ensinar a tocar "Melissa". Era uma espécie de exercício meu para aprender a trocar direitinho de acordes.
Um dia eles ouviram eu tocando isso no ensaio e resolveram fazer uma música em cima...Eles transformaram aquela minha brincadeira numa das músicas mais preza da Bidê! Virou outra coisa. Tanto que eles nem tocam a música do jeito que eu tocava.
Já trocaram os acordes há tempos! (hahaha) No começo, na letra, só existia aquela parte falada, meio rap, do final da música. Depois, de uma piada interna minha e da Katia, de chamar o lance de reencontrar alguém que já tinha ficado ou namorado de microondas, veio a letra principal.
31/2. Ímpares Fantásticos
Intrumental embutida no final de "Microondas" que nasceu da batidinha do Casio SK-5 da Katia, provavelmente. Tem o barulhinho de um projetor de cinema no fundo, imitando a primeira faixa do "Clouds Taste Mettalic" dos Flaming Lips.
Foi umas das primeiras a ter participação afú do Pilla, que tinha recém entrado na banda quando começamos a ensaiar e gravar o disco.
Como todas as outras instrumentais, não foi mixada: seus volumes foram apenas levantados e mandados pra masterização - e isso foi umas das coisas loucas do disco e que eu acho mais massa!
4. Bromélias
Nasceu na sala da casa de São Paulo, com o Sá e o André tocando sonzinhos com violão e teclado sentados no chão. É sobre saudade, só podia ser - era o assunto que mais tínhamos condições de falar na época.
Inventamos um milhão de versos sobre saudade, partida e "casa", mas ficaram os da histórinha que está na música.
O papo "bromélias" do verso sobre a mãe que tem bromélias penduradas nela, veio de uma 'paródia' que tínhamos feito da música "Patê" da Graforréia, e resolvemos incluir (e, depois, dar título à canção).
É filha direta do surgimento da onda Strokes em 2001, logo após a Clarah Averbuck ter pintado lá em casa numa das nossas festas com umas demos deles e eu ter ido à galeria do rock atrás daquele mesmo Cd.
5. Adoro Quando Chove
Essa nasceu de uma frase que larguei num dia que uma mulher linda demais entrou na Lancheria do Parque: adoro quando as gostosas vêm ao bar!
Depois, foi só ouvir o riff que o Sá fez num ensaio e encaixá-la de alguma forma (e descambar pro romantismo total quase ingênuo que era o momento que eu estava vivendo).
Tem a estrutura que mais nos divertimos e suamos fazendo no estúdio improvisado de São Paulo.
51/2. Pobre Johnny Thunders
Essa também nasceu d'eu brincando de aprender a tocar um instrumento, dessa vez o baixo. Eu tava brincando com essa idéia de surf no baixo, os guris gostaram e resolveram trabalhar em cima dela.
Acho tri massa que a música mais minha da Bidê seja uma instrumental. Mas, claro, o arranjo que a banda fez, as notas certas que os guris incluíram e o baixo tocado direito que o André gravou foram o que fizeram a música ser "discável" e ter aquele som legal.
Tudo isso e, claro, a chuva gravada em estéreo por nós e pelo Thomas Dreher, no estúdio.
6. A-há!
Gravada na época do nosso primeiro disco, com o Caveira na batera, mas não conseguimos mixar a tempo de entrar no disco. Foi uma das últimas músicas a ser arranjada para o primeiro. Viajo que isso a aproxima mais do "Outubro ou Nada!".
A entendemos como espécie de música de abertura de um provável "lado b" do disco, onde estariam canções como ela e "Matelassê", mais antigas (que já tinham sido gravadas antes) e as "doidêras" do álbum.
7 . Matelassê
"Matelassê" foi criada por encomenda para a Revista da Atlântida. O então editor da revista, Eduardo Nasi, me ligou um dia e pediu que eu escrevesse uma letra sobre óculos escuros, para um editorial de moda da revista.
O fiz ao meu modo, fugindo e bastante do tema, e com uma melodia na cabeça. Daí um dia cantarolei essa melodia pro Sá, que tirou seus acordes e compôs a música comigo (nossa primeira parceria).
Mais tarde, quando a mesma Revista da Atlântida nos convidou para sermos a matéria de capa de uma edição, e também o disco que vinha encartado, não titubeamos em nos pilharmos a gravar a música que tinha sido inventada pra eles e incluí-la no tal disco (o Ep Para Onde Voam os Ventiladores de Teto no Inverno?).
Mas, ao contrário de "A-há", foi regravada pra entrar em Outubro com pequenas diferenças, mas um som mais potente e a banda mais acostumada a tocá-la.
8. Dulci
Descaradamente, "Dulci" nasceu de uma espécie de versão Pavement pra "Lucy in the Sky With Diamonds", com letra totalmente baseada na fonética das palavras da letra beatle em cima da melodia torta que inventamos pra ela.
Praticamente todo mundo deu idéias pra letra, que acabou de ser escrita minutos antes de ser gravada, principalmente a Katia e o Pedro - mas teve até participação do Thomas Dreher (que sugeriu o "vermelho canalha", do rosto envergonhado da Dulci: referência aos jargões do nosso ídolo Plato Divorak).
A homenageada que dá nome à música era a Dulci Pereira, divulgadora da Antídoto (selo que lançou o disco) na época, mas as referências são mil e quinhentas, desde filmes adolescentes dos anos 80 às óbvias lisergias.
9. O Antipático
Letra e melodia, quase inteiras, nasceram numa ressaca duma festa do canal Multishow e são bem sobre o fim da nossa relação com o empresário Manoel Poladian e o ex-guitarrista Rafael Rossatto (por mais que a imagem d'o antipático' talvez seja uma coisa bem do Rossatto que, logo que havíamos nos mudado pra São Paulo cunhou a frase – que um dia ainda virou: "eu não vim a São Paulo pra fazer amigos!").
Eu viajava que ela era um encontro do Ozzy com o Roberto Carlos. A letra se encaixa com o tema de "Hollywood #52", pelo menos na minha cabeça – o que dá ao disco um teto de quase-unidade (o que se reforça com a emenda que foi dada entre ela e "Soninho").
10. Soninho
Outra das antigas, essa valsinha também passou por várias versões, umas mais guitarreiras que outras, e acabou encontrando nessa loucura Duprat do arranjo que o Boff fez sua versão tão definitiva. Essa nós tocamos ao vivo muito poucas vezes depois que o disco saiu.
Outra novidade é a Vivi e a Katia fazendo as vozes principais. O arranjo tem uma esquisitice que eu adoro (tanto os de cordas e sopros quanto o da banda e das vozes).
11. Aeroporto
Mistura de Weezer com "Cut your Hair" do Pavement, duas referências óbvias da primeira fase da banda. Essa foi uma das primeiras a ser composta após a fase do primeiro disco, quando ainda tinha o Rossatto na banda e antes de irmos pra São Paulo.
Sobre a letra, já pensei tantas coisas, que nem sei mais no que estava pensando quando a escrevi. Só sei que é sobre amor, amor em aeroporto, gostos diferentes.
11 ½. My Name is Going
Esse tetinho das faixas instrumentais, tem gravações de vários momentos colados na masterização.
Começa com uma gravação em K-7 direto da sala da nossa casa em São Paulo, com o André e o Sá pirando com os instrumentos. Daí entra todo mundo gritando "My Name is Going" - um dos tantos bordões do Pedro, que significa algo tipo "já tô indo".
Então entra o Thomas dando a ordem de "gravando" pra dar Rec na fita e a banda inteira tocando aquilo que havia sido criado pelo Sá e pelo André em São Paulo.
Por cima ainda foi incluído um irritante barulho de pedal wah-wah ligado invertido pelo Pilla, sem querer. O mais legal é o final: a fita de duas polegadas acabou no meio e foi gravado o barulho dela acabando: a música não termina e o teto é preto.
12. O Que Eu Não Vejo Não Existe
Manchesterismo sobre ciúme e infidelidade totalmente criado em São Paulo, falando sobre a insegurança de estarmos vivendo longe das nossas pessoas.
Apesar do título dar um tom de corno-mansismo pra música, a frase representa a atitude que mais repudiávamos na época: o lance de ignorar o desconhecido e reagir apenas com desconfiança, por mais que, talvez, infundada.
O mais legal da gravação, pra mim, foi o baixo com efeito dum pedal muito louco do André e o arranjo de vozes no final da música.
13. Não Adianta Chorar
Essa é pura emoção, né... Descarga dos nossos sentimentos e dúvidas na época - ctrl+alt+foda-se no que quer que estivesse nos afligindo.
Estávamos felizes de ter escolhido fazer a coisa certa: um disco, um disco bem do jeito que queríamos, do qual estávamos orgulhosos.
E tem o sax do Rodrigo Siervo solando com a galera naquele final emocionado. Tudo de massa!
14. Cores Bonitas
Era só uma versão acústica de "Cores Bonitas" e acabou virando outra coisa. Talvez seja a minha gravação preferida da Bidê, até por ter se transformado tanto no resultado final.
Palmas pro Leonardo Boff, um dos principais responsáveis pelo caráter especial que o disco ganhou em nossas vidas.
E vem um monte de efeitos, e acaba o disco - e entra uma versão ao vivo (gravada em estúdio) de "Hollywood #52", ali colocada especialmente praqueles aparelhos de som que, após o fim do álbum, o repetem (assim, o final e o início de Outubro ou Nada! se uniriam - sem fim).

terça-feira, 19 de outubro de 2010

o cORAÇÃO dELATOR*

EDGAR ALLAN POE

É verdade! Nervoso, muito, muito nervoso mesmo eu estive e estou; mas por que você vai dizer que estou louco? A doença exacerbou meus sentidos, não os destruiu, não os embotou. Mais que os outros estava aguçado o sentido da audição.

Ouvi todas as coisas no céu e na terra. Ouvi muitas coisas no inferno. Como então posso estar louco? Preste atenção! E observe com que sanidade, com que calma, posso lhe contar toda a história.

É impossível saber como a idéia penetrou pela primeira vez no meu cérebro, mas, uma vez concebida, ela me atormentou dia e noite. Objetivo não havia. Paixão não havia. Eu gostava do velho. Ele nunca me fez mal.

Ele nunca me insultou. Seu ouro eu não desejava. Acho que era seu olho! É, era isso!

Um de seus olhos parecia o de um abutre - um olho azul claro coberto por um véu. Sempre que caía sobre mim o meu sangue gelava, e então pouco a pouco, bem devagar, tomei a decisão de tirar a vida do velho, e com isso me livrar do olho, para sempre.

Agora esse é o ponto. O senhor acha que sou louco. Homens loucos de nada sabem. Mas deveria ter-me visto. Deveria ter visto com que sensatez eu agi — com que precaução —, com que prudência, com que dissimulação, pus mãos à obra!

Nunca fui tão gentil com o velho como durante toda a semana antes de matá-lo. E todas as noites, por volta de meia-noite, eu girava o trinco da sua porta e a abria, ah, com tanta delicadeza!

E então, quando tinha conseguido uma abertura suficiente para minha cabeça, punha lá dentro uma lanterna furta-fogo bem fechada, fechada para que nenhuma luz brilhasse, e então eu passava a cabeça. Ah! o senhor teria rido se visse com que habilidade eu a passava.

Eu a movia devagar, muito, muito devagar, para não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para passar a cabeça toda pela abertura, o mais à frente possível, para que pudesse vê-lo deitado em sua cama. Aha! Teria um louco sido assim tão esperto?

E então, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a lanterna com cuidado — ah!, com tanto cuidado! —, com cuidado (porque a dobradiça rangia), eu a abria só o suficiente para que um raiozinho fino de luz caísse sobre o olho do abutre.

E fiz isso por sete longas noites, todas as noites à meia-noite em ponto, mas eu sempre encontrava o olho fechado, e então era impossível fazer o trabalho, porque não era o velho que me exasperava, e sim seu Olho Maligno.

E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu entrava corajosamente no quarto e falava Com ele cheio de coragem, chamando-o pelo nome em tom cordial e perguntando como tinha passado a noite.

Então, o senhor vê que ele teria que ter sido, na verdade, um velho muito astuto, para suspeitar que todas as noites, à meia-noite em ponto, eu o observava enquanto dormia.

Na oitava noite, eu tomei um cuidado ainda maior ao abrir a porta. O ponteiro de minutos de um relógio se move mais depressa do que então a minha mão. Nunca antes daquela noite eu sentira a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade.

Eu mal conseguia conter meu sentimento de triunfo. Pensar que lá estava eu, abrindo pouco a pouco a porta, e ele sequer suspeitava de meus atos ou pensamentos secretos.

Cheguei a rir com essa idéia, e ele talvez tenha ouvido, porque de repente se mexeu na cama como num sobressalto. Agora o senhor pode pensar que eu recuei — mas não.

Seu quarto estava preto como breu com aquela escuridão espessa (porque as venezianas estavam bem fechadas, de medo de ladrões) e então eu soube que ele não poderia ver a porta sendo aberta e continuei a empurrá-la mais, e mais.

Minha cabeça estava dentro e eu quase abrindo a lanterna quando meu polegar deslizou sobre a lingüeta de metal e o velho deu um pulo na cama, gritando:

— Quem está aí?

Fiquei imóvel e em silêncio. Por uma hora inteira não movi um músculo, e durante esse tempo não o ouvi se deitar. Ele continuava sentado na cama, ouvindo bem como eu havia feito noite após noite prestando atenção aos relógios fúnebres na parede.

Nesse instante, ouvi um leve gemido, e eu soube que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de tristeza — ah, não! era o som fraco e abafado que sobe do fundo da alma quando sobrecarregada de terror. Eu conhecia bem aquele som.

Muitas noites, à meia-noite em ponto, ele brotara de meu próprio peito, aprofundando, com seu eco pavoroso, os terrores que me perturbavam. Digo que os conhecia bem. Eu sabia o que sentia o velho e me apiedava dele embora risse por dentro.

Eu sabia que ele estivera desperto, desde o primeiro barulhinho, quando se virara na cama. Seus medos foram desde então crescendo dentro dele. Ele estivera tentando fazer de conta que eram infundados, mas não conseguira.

Dissera consigo mesmo: "Isto não passa do vento na chaminé; é apenas um camundongo andando pelo chão", ou "É só um grilo cricrilando um pouco". É, ele estivera tentando confortar-se com tais suposições; mas descobrira ser tudo em vão.

Tudo em vão, porque a Morte ao se aproximar o atacara de frente com sua sombra negra e com ela envolvera a vítima. E a fúnebre influência da despercebida sombra fizera com que sentisse, ainda que não visse ou ouvisse, sentisse a presença da minha cabeça dentro do quarto.

Quando já havia esperado por muito tempo e com muita paciência sem ouvi-lo se deitar, decidi abrir uma fenda — uma fenda muito, muito pequena na lanterna. Então eu a abri — o senhor não pode imaginar com que gestos furtivos, tão furtivos — até que afinal um único raio pálido como o fio da aranha brotou da fenda e caiu sobre o olho do abutre.

Ele estava aberto, muito, muito aberto, e fui ficando furioso enquanto o fitava. Eu o vi com perfeita clareza - todo de um azul fosco e coberto por um véu medonho que enregelou até a medula dos meus ossos, mas era tudo o que eu podia ver do rosto ou do corpo do velho, pois dirigira o raio, como por instinto, exatamente para o ponto maldito.

E agora, eu não lhe disse que aquilo que o senhor tomou por loucura não passava de hiperagudeza dos sentidos? Agora, repito, chegou a meus ouvidos um ruído baixo, surdo e rápido, algo como faz um relógio quando envolto em algodão.

Eu também conhecia bem aquele som. Eram as batidas do coração do velho. Aquilo aumentou a minha fúria, como o bater do tambor instiga a coragem do soldado.

Mas mesmo então eu me contive e continuei imóvel. Quase não respirava. Segurava imóvel a lanterna. Tentei ao máximo possível manter o raio sobre o olho. Enquanto isso, aumentava o diabólico tamborilar do coração. Ficava a cada instante mais e mais rápido, mais e mais alto.

O terror do velho deve ter sido extremo. Ficava mais alto, estou dizendo, mais alto a cada instante! — está me entendendo? Eu lhe disse que estou nervoso: estou mesmo.

E agora, altas horas da noite, em meio ao silêncio pavoroso dessa casa velha, um ruído tão estranho quanto esse me levou ao terror incontrolável. Ainda assim por mais alguns minutos me contive e continuei imóvel.

Mas as batidas ficaram mais altas, mais altas! Achei que o coração iria explodir.

E agora uma nova ansiedade tomava conta de mim — o som seria ouvido por um vizinho! Chegara a hora do velho! Com um berro, abri por completo a lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele deu um grito agudo — um só.

Num instante, arrastei-o para o chão e derrubei sobre ele a cama pesada. Então sorri contente, ao ver meu ato tão adiantado. Mas por muitos minutos o coração bateu com um som amortecido. Aquilo, entretanto, não me exasperou; não seria ouvido através da parede. Por fim, cessou.

O velho estava morto. Afastei a cama e examinei o cadáver. É, estava morto, bem morto. Pus a mão sobre seu coração e a mantive ali por muitos minutos. Não havia pulsação. Ele estava bem morto. Seu olho não me perturbaria mais.

Se ainda me acha louco, não mais pensará assim quando eu descrever as sensatas precauções que tomei para ocultar o corpo. A noite avançava, e trabalhei depressa, mas em silêncio. Antes de tudo desmembrei o cadáver. Separei a cabeça, os braços e as pernas.

Arranquei três tábuas do assoalho do quarto e depositei tudo entre as vigas. Recoloquei então as pranchas com tanta habilidade e astúcia que nenhum olho humano — nem mesmo o dele — poderia detectar algo de errado. Nada havia a ser lavado — nenhuma mancha de qualquer tipo — nenhuma marca de sangue.

Eu fora muito cauteloso. Uma tina absorvera tudo - ha! ha!

Quando terminei todo aquele trabalho, eram quatro horas — ainda tão escuro quanto à meia-noite.

Quando o sino deu as horas, houve uma batida à porta da rua. Desci para abrir com o coração leve — pois o que tinha agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita suavidade, como oficiais de polícia.

Um grito fora ouvido por um vizinho durante a noite; suspeitas de traição haviam sido levantadas; uma queixa fora apresentada à delegacia e eles (os policiais) haviam sido encarregados de examinar o local.

Sorri — pois o que tinha a temer? Dei as boas-vindas aos senhores. O grito, disse, fora meu, num sonho. O velho, mencionei, estava fora, no campo. Acompanhei minhas visitas por toda a casa. Incentivei-os a procurar — procurar bem. Levei-os, por fim, ao quarto dele.

Mostrei-lhes seus tesouros, seguro, imperturbável.

No entusiasmo de minha confiança, levei cadeiras para o quarto e convidei-os para ali descansarem de seus afazeres, enquanto eu mesmo, na louca audácia de um triunfo perfeito, instalei minha própria cadeira exatamente no ponto sob o qual repousava o cadáver da vítima.

Os oficiais estavam satisfeitos. Meus modos os haviam convencido. Eu estava bastante à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia animado, falaram de coisas familiares. Mas, pouco depois, senti que empalidecia e desejei que se fossem.

Minha cabeça doía e me parecia sentir um zumbido nos ouvidos; mas eles continuavam sentados e continuavam a falar. O zumbido ficou mais claro — continuava e ficava mais claro: falei com mais vivacidade para me livrar da sensação: mas ela continuou e se instalou — até que, afinal, descobri que o barulho não estava dentro de meus ouvidos.

Sem dúvida agora fiquei muito pálido; mas falei com mais fluência, e em voz mais alta. Mas o som crescia - e o que eu podia fazer? Era um som baixo, surdo, rápido — muito parecido com o som que faz um relógio quando envolto em algodão.

Arfei em busca de ar, e os policiais ainda não o ouviam. Falei mais depressa, com mais intensidade, mas o barulho continuava a crescer. Levantei-me e discuti sobre ninharias, num tom alto e gesticulando com ênfase; mas o barulho continuava a crescer.

Por que eles não podiam ir embora? Andei de um lado para outro a passos largos e pesados, como se me enfurecessem as observações dos homens, mas o barulho continuava a crescer. Ai meu Deus! O que eu poderia fazer? Espumei — vociferei — xinguei!

Sacudi a cadeira na qual estivera sentado e arrastei-a pelas tábuas, mas o barulho abafava tudo e continuava a crescer. Ficou mais alto — mais alto — mais alto! E os homens ainda conversavam animadamente, e sorriam.

Seria possível que não ouvissem? Deus Todo-Poderoso! — não, não? Eles ouviam! — eles suspeitavam! — eles sabiam! - Eles estavam zombando do meu horror! — Assim pensei e assim penso. Mas qualquer coisa seria melhor do que essa agonia!

Qualquer coisa seria mais tolerável do que esse escárnio. Eu não poderia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Senti que precisava gritar ou morrer! — e agora — de novo — ouça! mais alto! mais alto! mais alto! mais alto!

— Miseráveis! — berrei — Não disfarcem mais! Admito o que fiz! levantem as pranchas! — aqui, aqui! — são as batidas do horrendo coração!

*Mestre.

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