domingo, 20 de abril de 2008

a lEI dA vIDA

O velho Koskoosh ouvia ansioso. Enfraquecida a visão, aguçara-se o sentido da audição e o menor ruído penetravaa luminosa inteligência oculta sob a testa encanecida, jádesiludida das coisas do mundo.
Ah! Sit-cum-to-ha, esbravejava com os cachorros, metendo-os nas rédeas. Sitcum-to-ha, sua neta, estava ocupada demais para perdertempo pensando no velho avô abandonado na neve, solitário, sem esperanças.
Tinham que desmontar o acampamento. Esperava-a a longa trilha e o dia curto recusava-se a durar um pouco mais que fosse. Chamavam-na a vida e os seus misteres, não a morte. E ele estava agora às portas da morte.
Por um momento, esta idéia encheu o velho de pânico e fêlo esticar a mão trêmula e paralítica sobre o pequeno feixede lenha seca ao seu lado. Certificado de que em verdade láestava, recolheu a mão ao calor das peliças e pôs-se à escuta.
O rangido dos couros semi-congelados contava-lheque o abrigo de pele de veado do chefe estava a serdesmontado e enrolado num pacote portátil. Era o seu filho,o chefe, forte e valente, cabeça da tribo e poderoso caçador.
Enquanto as mulheres ocupavam-se com a bagagem doacampamento, ele elevava a sua voz, ralhando com elas pela sua vagarosidade. O velho Koskoosh aguçou os ouvidos.
Era a última vez que ouviria aquela voz! Lá ia agora o abrigo de Geehow! E o de Tusken! Sete, oito, nove; restava somente o do sacerdote. Pronto! começavam adesmontá-lo! podia ouvi-lo gemer, enquanto o acomodava no trenó.
Uma criança chorou e a mãe embalou-se com sons guturais. O pequeno Koo-tee, pensou o ancião, uma criança irritadiça e fraca. Morreria logo, talvez e, sobre a cova na tundra gelada, empilhariam pedras para afugentar os lobos.
No fim, que importava? Mais uns anos, no máximo, e abarriga ora cheia ora vazia. A morte esperava, semprefaminta. Que seria aquele som?
Os homens amarrando as correias dos trenós, apertando-as! Ouvia-os agora, logo não mais osouviria. Os chicotes zuniram entre a cachorrada. Comolatiam! Que raiva lhes inspirava a estrada e o trabalho!Largaram! Um após outro, foram os trenós mergulhando no silêncio.
Partiram. Tinham desaparecido da sua vida e ele enfrentaria a sua última hora de amargura. Não. A neve esboroou-se ao peso dum mocassin. Um homem estava ao seu lado. Sobre a sua cabeça desceu uma carinhosa mão. O seu filho era bondoso a este ponto.
Lembrou-se de outros anciãos, cujos filhos não tinham tido a coragem de deixar partir a tribo. Mas o seu filho tivera. Divagou, então, pelo passado, até que a voz do moço o fez voltar."Está tudo bem?" - perguntou. O velho respondeu: "Sim, tudo está bem.""Há madeira a seu lado", continuou o jovem, "e o fogo está forte.
A manhã está cinzenta e começou o frio. Vai nevar, jáestá a começar.""Sim, percebo que já está a nevar."
"O pessoal da tribo vai depressa. As suas cargas são pesadas e os estômagos estão murchos de falta de comida. O caminho é longo. Eles apressam-se. Agora, eu vou. Está tudo bem?"
"Sim, está bem". Eu sou como uma folha do ano passado, presa de leve ao galho. Ao primeiro vento que der eu cairei. A minha voz ficou igual à de uma mulher velha. Os olhos não mostram mais o caminho aos meus pés; eles sãopesados e eu sinto-me cansado. Está tudo certo.
Inclinou a cabeça em sinal de aprovação até que o último ruído da neve pisada desapareceu e certificou-se de que o seu filho ia longe. Então a sua mão estirou-se depressa paraa madeira. Era tudo o que restava entre ele e a eternidadeque o reclamava.
Por fim, a medida da sua vida era umpunhado de gravetos. Um a um, alimentariam o fogo, eassim, passo a passo, a morte acercar-se-ia. Quando oúltimo graveto tivesse esgotado o seu calor, o gelocomeçaria a ganhar forças. Primeiro sofreriam os pés, depois as mãos.
O entorpecimento, vagarosamente, iria subindo das extremidades do corpo. A cabeça cairia nos joelhos e ele repousaria. Era fácil. Todo homem tem que morrer. Não se queixava. Era o modo de ser da vida e estava certo. Nascera perto da terra, perto da terra vivera e aquela lei nãoera para ele nenhuma novidade.
A lei da carne. A natureza não é bondosa para com a carne. Não tinha a menor consideração por aquela coisa concreta chamada o indivíduo. O seu único interesse eram as espécies, a raça. Esta era amais profunda abstração de que a bárbara imaginação deKoskoosh se sentia capaz e a ela se agarrou firmemente.
Os exemplos abundavam na própria vida. O aparecimento da seiva, a verdura do broto, a queda da folha amarela, nisto continha toda a história. A natureza preparava o homem para um determinado fim. Cumprindo-o ou não, morreria do mesmo jeito. A natureza não se importava, pois havia muitos obedientes, obediência exclusivamente neste assunto, que viviam para sempre.
A tribo de Koskoosh era muito velha. Os anciãos que conhecera ao nascer lembravam-se de ter visto outros na sua meninice. Em verdade a tribo vivia e mantinha-se pela obediência de todos os seus membros, desde o passado remoto, de origens desconhecidas. Eles não entravam em linha de conta; merosepisódios.
Passavam como nuvens no véu de verão.Também ele era um episódio e logo se teria acabado. Anatureza não se importava. Estabelecia uma tarefa para avida e impunha-lhe uma lei. A tarefa era a perpetuação da espécie, a lei a morte.
Uma donzela era criatura bonita de sever, peito largo e forte, primavera na alma e luz no olhar. Ainda não cumprira a sua tarefa. Depois, aumentava o brilho dos olhos, o passo apressava-se, tornava-se confiada comos rapazes até então tímidos e trazia-lhes inquietação.
Cada vez mais crescia a sua beleza e melhor era o seu aspecto, até que algum caçador, incapaz de se conter por mais tempo, levava-a para a sua casa, a trabalhar e cozinhar paraele, para se tornar a mãe dos seus filhos. Com a chegadados descendentes, a beleza ia murchando.
Os membros arrastavam-se e atrapalhavam, os olhos enfraqueciam e escureciam e somente os netos se compraziam perto das faces murchas da velha, ao lado do fogo. Terminara a tarefa.
Dentro de pouco, ao primeiro sinal da fome ou a iniciar-sequalquer viajem mais longa, seria abandonada, como elepróprio, na neve, com um pequeno feixe de lenha.
Era a lei. Colocou cuidadosamente mais um graveto ao fogo e resumiuas suas meditações. Era o mesmo sempre, com todas as coisas. Os mosquitos desapareciam com as primeiras neves. O pequeno esquilo arrastava-se para morrer.
Quando a idade avançava, o coelho tornava-se pesado e vagaroso e não mais podia escapulir dos seus inimigos. Até os grandescara-pelada ficavam desmazelados, cegos e briguentos, para no fim serem sobrepujados por um punhado de filhotes barulhentos.
Lembrava-se de como abandonara o seu próprio pai, num lugar distante do Klondike, num inverno, exatamente no inverno anterior à chegada do missionáriocom os seus livros e a sua caixa de remédios.
Muitas vezes lambera os lábios à lembrança daquela caixa, embora agora eles não mais se umedecessem. O "tira-dor" fora muito bom. Mas, no fim de contas, o missionário era uma amolação, pois não trazia alimento ao acampamento e comia desesperadamente. Os caçadores começaram a murmurar.
Terminara por gelar os pulmões numa divisa perto do Mayoe os cachorros tinham derrubado as pedras com o focinho para brigarem pelos seus ossos. Koskoosh pôs mais lenha ao lume e mergulhou de novo no passado.
Recordou-se da grande fome, quando os velhos se amontoavam de barriga vazia perto do fogo e relatavam histórias antigas, de quando o Yukon correra livremente portrês invernos e depois se congelara por três verões.
Naquela ocasião perdera a sua mãe. A pesca do salmão, no verão, fracassara e a tribo esperava o inverno e a chegada dos caribus. Mas veio a estação e nada da caça. Nunca se ouviracontar de algo semelhante, nem mesmo os anciãos.
Os caribus não apareceram e era o sétimo ano; os coelhos nãotinham dado crias, os cachorros não passavam de feixes de ossos. Através da longa escuridão as crianças choravam epereciam, assim como as mulheres e os velhos.
Nem ao menos um em cada dez dos componentes da tribos obrevivera para enxergar o sol na primavera. Aquilo tinha sido fome!Felizmente vira também épocas de fartura, quando a carnes e entregava nas mãos, os cachorros engordavam e ficavam imprestáveis de obesos; deixava-se a caça fugir sem tentar matá-la, as mulheres eram fecundas, nas cabanas meninos e meninas agitavam-se.
Os homens, bem nutridos,começaram a relembrar antigas querelas e cruzaram a divisa ao sul para matar os Pellys e ao oeste para poderem sentar ao lado das fogueiras de Tananas.
Lembrou-se de que, quando menino, numa época de fartura, ter visto um veado agarrado pelos lobos. Zing-ha - observara-a junto a ele, na neve - Zing-ha que mais tarde se tornaria o mais hábil dos caçadores e terminaria por cair num buraco no Yukon.
Encontraram-no um mês depois, exatamente da maneira que caíra, metade para fora e congelado.Mas quanto ao veado, naquele dia, ele e Zing-ha tinham saído para caçar à maneira dos seus pais.
No leito de um regato, divisaram as pegadas frescas dum veado, junto comos rastros de lobos. Zing-ha, hábil na leitura de vestígios debichos, disse: "É um veado velho, que não pode acompanharo passo do rebanho.
Os lobos cortaram-lhe o caminho e não o deixarão em paz." Era certo. Assim era o que faziam. Noitee dia, sem cessar, rosnando aos seus pés, avançando sobreo seu focinho, perseguí-lo até o fim. Como ele e Zing-hatinham ficado inquietos!
O final seria coisa digna de servista!De pés ligeiros, seguiram a trilha; e até ele, Koskoosh, devista curta, perseguidor de caça, teria, seguido perfeitamente, tão larga era. Estavam quase ao pé da caça, lendo a tragédia recém escrita em cada passada.
Chegaram ao lugar onde o veado fizera alto. A neve fora revolvida e pisada, num espaço três vezes a altura dum corpo de homem. No meio havia as profundas impressões da caça perseguida, e em volta, por todos os lados, as leves pegadas dos lobos.
Enquanto uns atacavam a presa, outros se tinham deitado de lado, para descansar. A impressão dos seus corpos na neve era nítida, como se deixada um momento antes. Um lobo fora apanhado num bote da vítima enfurecida e pisoteado até morrer.
Ossos esparsos otestemunhavam. Outra vez cessaram as pisadas de seus sapatos de neve numa segunda parada. Neste lugar, o grande animal lutara desesperadamente. Como atestava a neve, por duas vezes fora derrubado e por duas vezes sacudira longe os seus atacantes e ganhara de novo a estrada.
Embora a sua tarefa já tivesse sido cumprida, a vida continuava para ele um bem muito caro. Zing-ha disse que era estranho um veado, umavez derrubado, levantar-se de novo; mas aquele de certo oconseguira. Quando contassem ao sacerdote, ele de certo descobriria nisto presságios e milagres.
Chegaram ao ponto em que o veado conseguira escalar amargem e fugir para a mata. Mas os inimigos caíram-lhe por detrás até que ele se voltou e deu-lhes em cima - comprimindo dois contra a neve.
Era evidente que a presa estava ao seu alcance, pois os outros lobos nem os tocaram.Mais duas pausas, breves em tempo, e muito perto uma da outra. Agora o rastro estava sangrento, e as largas passadas do grande animal tinham encurtado e ficado sujas.
Aí ouviram os primeiros sons da batalha - não a gritaria retumbante da caçada, mas latidos curtos que denotavam luta encarniçada e dentes mordendo a carne. Contendo arespiração, Zing-ha atirou-se na neve e arrastou consigoKoskoosh, que no futuro seria chefe da tribo.
Juntosa partaram os galhos inferiores dum pequeno pinheiro eespiaram. Viram então o fim. Aquele quadro como todas as impressões da mocidadeestava ainda nítido, e sem olhos enfraquecidos, observaramo final tão vivamente como naquele tempo longínquo.
Koskoosh maravilhava-se com isto, pois nos diassubseqüentes, quando era chefe dos homens e o principaldos conselheiros, praticava grandes atos e tornou o seunome uma maldição na boca dos Pellys, para não mencionaro homem branco que matara, faca contra faca, em luta aberta.
Ponderou tanto tempo sobre os dias da mocidade,que o fogo diminuiu e o frio começou a castigá-lo mais. Reacendeu-o com dois gravetos desta vez, e mediu o seu tempo de vida pelo que restava. Se Sit-cum-to-ha se tivesse lembrado do avô e colhido uma braçada maior, as suas horas teriam durado um pouco mais.
Teria sido tão fácil!Mas fora sempre criança descuidada e não honrava os seus ancestrais desde que Beaver, neto de Zing-ha, lançara os olhos nela. Bem, que importava? Ele próprio não fizera o mesmo na mocidade?
Por um momento, ouviu o silêncio.Talvez o coração do seu filho se abrandasse e voltasse com os cães para levar o seu velho pai com a tribo, onde o caribu abunda e a sua gordura é muita. Aguçou os ouvidos, o cérebro irrequieto por um momento e fez uma pausa. Nem um rumor, nada.
Somente ele respirava no meio daquele silêncio. Era muito solitário. Ora!O que seria aquilo? Um arrepio correu-lhe o corpo. O uivo familiar quebrou o vácuo e estava bem perto. Em seguida, nos seus olhos obscurecidos projetou-se a visão do veado -o velho veado macho - os flancos feridos e sangrentos, acrina perfurada, quebrada a galhada, cabisbaixo e nas últimas arremetidas.
Viu as reluzentes formas cinzentas, os olhos brilhantes, as línguas de fora, a baba escorrendo. O círculo inexorável ia-se fechando até se tornar um pontonegro no meio da neve pisada. Um frio focinho chegou-se à sua face e àquele contacto a sua alma imediatamente retornou ao presente.
A sua mão avançou para o fogo e pegou numa acha em brasa. Vencido pelo medo hereditário do homem, o bruto retirou-se, uivando em chamada dos seus Irmãos. Avidamente, eles responderam até que uma roda de animais agachados, bocas salivando, fizeram-lhe cerco.
O velho ouvia o círculo diminuindo sobre ele. Brandiu o tição desordenadamente e o resfolegar transformou-se em ganidos; mas os arquejantes brutos recusavam-se a se espalhar. Agora um adiantou ocorpo, arrastando a traseira, depois um segundo e um terceiro, mas nenhum se retraía.
Por que se apegaria ele á vida? Com esta pergunta, deixou cair a acha em brasa sobrea neve. Chiando, apagou-se o fogo. O círculo grunhiu, com inquietação, mas não desistiu.
De novo o viu e à última parada do velho veado. E, cansado, apoiou Koskoosh a cabeça nos joelhos. Que importava, no fim de contas? Não era esta a lei da vida?