segunda-feira, 23 de novembro de 2009

bAÚ mUITO bEM tRANCADO*

Disputas judiciais entre familiares de Raul Seixas barram novos lançamentos do músico baiano

POR CRISTIANO BASTOS

Nos anos 60, o "vidente" da comunicação Marshall McLuhan profetizou: "O meio é a mensagem". E a mensagem é, justamente, a herança mais valiosa transmitida pelo missivista do rock brasileiro - Raul Seixas (1945-1989).

A música foi o "meio" escolhido, veículo através do qual, por toda a vida e obra, insultou o "monstro sist". Hoje, contudo, refém de várias contendas judiciais pelo imaterial espólio, tem seu libelo asfixiado pelo mais complexo e surpreendente dos sistemas: a família.

Dos milhares de fãs de Raulzito, morto aos 44 anos, poucos sabem que ele deixou três herdeiras: as filhas Simone Vannoy (38) e Scarlet Vaquer (33), que vivem nos Estados Unidos desde crianças, e Vivian Seixas (27), no Brasil.

As duas primeiras, frutos da união conjugal de Raul com as norte-americanas Edith Wisner e Gloria Vaquer Seixas (hoje Sky Keys), respectivamente; a terceira, fruto do relacionamento amoroso com Angela Affonso Costa, autointitulada Kika Seixas.

Além da abastada fortuna musical, Raul Seixas não deixou patrimônio significativo, sequer existe espólio aberto. Nesses 20 anos, tudo o que suas filhas herdaram consiste em direitos autorais - de execução e imagem - pagos ao longo dos anos.

O astro baiano é o que se pode chamar de "long-seller": verdadeiro fenômeno, absolutamente espontâneo. Antiga, a briga (que nada tem a ver com música) desenrola-se em um cenário "internacional".

Nos Estados Unidos, as sucessoras de Raulzito defendem o lançamento de vários projetos envolvendo a obra do pai - muitos dos quais vetados na Justiça por Kika Seixas, que hoje atua como procuradora legal da filha, Vivian Seixas.

A procuradora de Simone Vannoy, a advogada Flávia Vasconcelos, ressalta que as três herdeiras detêm todos os direitos de autor e conexos relativos à obra de Raul Seixas, assim como os direitos de uso de sua imagem e nome.

Na prática, pontua, significa que somente elas podem autorizar ou desautorizar qualquer projeto:

"O equívoco ocorre porque muitos consideram Kika como 'viúva de Raul Seixas' e, em consequência, detentora de tais direitos. No entanto, como não se casaram oficialmente, ela não é viúva dele". Apenas Simone, Scarlet e Vivian são as legítimas herdeiras.

Primogênita de Raul, Simone conta que, na medida do possível, procura não envolver-se nesses conflitos judiciais, mas, regularmente, diz cultivar a memória do pai.

"Tenho todas as músicas dele em meu iPod e as escuto com frequência. Escutar sua música, assistir seus vídeos, ouvir suas entrevistas e ler artigos sobre ele me ajudam a entender o homem e pai que não cheguei a conhecer".
A polêmica inflamou de vez quando Kika, em agosto, vetou a biografia que o jornalista Edmundo Leite escreve há cinco anos sobre Raul. Embora lhe tenha concedido duas entrevistas, Kika voltou atrás radicalmente.
Agora não quer mais saber do livro. Edmundo foi advertido por telegrama: “Caso o senhor insista na realização irregular de tal biografia, serão tomadas medidas judiciais cabíveis”.

Em outra declaração, escudada por Vivian, Kika justificou sua decisão baseando-se pelo "teor do livro". Segundo disse a caçula de Raulzito à reportagem da Rolling Stone, o jornalista insistiu em bater na tecla da relação do cantor com as drogas.
O biógrafo se defende dizendo que não abordou apenas este temário. Segundo ele, esse capítulo foi explorado, sim, em momentos da entrevista. Todavia, sem a insistência e obsessão alegadas pela ex-fonte:
"Drogas e álcool fizeram parte da vida de Raul, como várias vezes a própria Kika relatou em entrevistas e livros por ela editados".
No juízo de Sky Keys – para a qual os "dias de controle ilegal" de Kika aproximam-se do fim –, o fato de Raul ter consumido álcool e drogas nunca foi segredo. "E daí?", interroga:
"Vincent van Gogh estava totalmente bêbado de absinto quando cortou sua orelha e Sigmund Freud cheirava cocaína. Scarlet e eu faremos tudo o que pudermos para revelar a verdadeira história de Raul, que pertence ao Brasil".
A terceira companheira de Raul Seixas, Tânia Menna Barreto, também alinha-se a favor de Edmundo Leite. Ela revela que ao retornar dos Estados Unidos foi entrevistada pelo jornalista num fim de semana em Paquetá, Rio de Janeiro.
Sequer, garante Tânia, o biógrafo focou a seara das drogas: "Foi abrangente em suas perguntas e soube conduzir a entrevista de forma leve e profissional".
"Existe uma seita secreta querendo destruir o legado de Raul Seixas". Após acusar Edmundo de valer-se, na biografia, de abordagem tendenciosa, Kika Seixas, novamente, apareceu na imprensa.
Dessa vez, apelando para justificativas "além-túmulo" para impedir a edição do livro. Segundo ela, seu "guia espiritual" lhe teria dito que o momento "não era oportuno para lançamento de livros a respeito de Raul Seixas".
Ao ser procurada, Vivian endossou as declarações maternas:
"Tenho certeza de que as famílias de Elis Regina, Renato Russo ou Cazuza teriam a mesma cautela. Além do mais, meu guia espiritual me avisou que o momento astral não é propício para o lançamento de mais uma biografia".
Para Vivian, no entanto, a temporada é propícia. Ela, que é DJ, recém lançou o álbum de remixes Geração da Luz, no qual manufaturou clássicos paternos como "Metamorfose Ambulante", "Como Vovó Já Dizia" e "Rock das Aranhas" nos domínios da eletrônica.
Na Bienal do Livro do Rio, o escritor Ruy Castro disse que no Brasil "o biografado ideal tem que ser órfão, solteirão, filho único, estéril e brocha". O escritor penou para ver publicado o livro Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha, sobre o lendário jogador das pernas tortas.

Proibido pelas filhas de Garrincha, que diziam defender a "integridade moral" do pai, o livro, posteriormente, foi liberado. Castro é curto e grosso: "Biografia autorizada não é biografia; é press-release".
Os vivos, completa Ruy, não são confiáveis: "Mentem muito e obrigam os amigos a mentir sobre eles".
A solução para tanta censura pode estar no Projeto de Lei 3378/08, do deputado federal Antonio Palocci (PT-SP). Postula o projeto, com parágrafo único:
"É livre a divulgação da imagem e de informações biográficas sobre pessoas de notoriedade pública ou cuja trajetória pessoal ou profissional tenha dimensão pública".
"É um direito da sociedade ter acesso às informações que dizem respeito às figuras públicas", afirma Pallocci. Personalidades públicas, observa, normalmente, interferem na história politica, economica ou cultural de uma sociedade:
"Não se pode tirar o direito da sociedade de conhecer esses processos".
Anos após enfrentar a proibição de Deixa Eu Cantar (trilogia de álbuns com produções de Raul na gravadora CBS, no período de 1970 a 1972, embargado na justiça), o pesquisador Marcelo Froes encontrou novo tape de Raul Seixas, onde cantava, além de músicas dos Beatles, inéditas canções.
Froes confessa que, apesar de traumatizado, resolveu arriscar uma edição. Desistiu, contudo, quando teve como resposta sonoro questionamento: "Onde está a fita?!" Marcelo prefere não falar sobre seu novo achado – "Para os espertalhões não irem atrás".
Mas adianta: há uma maravilhosa jam session onde Raul e banda tocam por quase dez minutos enquanto Paulo Coelho disserta sobre "o exercício de entrar num caixão e fechar a tampa".

AS PROIBIÇÕES
Em cinco anos de apuração para escrever a biografia sobre Raul Seixas, Edmundo caçou todos os rastros que se deparou pelo caminho.
O jornalista conta que trabalhou com inúmeros acervos e arquivos, o que resultou, de acordo com ele, em vastíssimo material - praticamente inédito - sobre Raulzito.
Leite, inclusive, encontrou pessoas nunca antes ouvidas. A grande surpresa foi a participação da primeira esposa de Raul, Edith Wisner, a qual Edmundo entrevistou nos EUA: "
Não foram poucos os que, além de abrirem seus arquivos, dividiram comigo grandes histórias", avalia o jornalista.
Entre 1971 e 1972, Raul Seixas registrou no estúdio montado no apartamento do guitarrista norte-americano (e ex-cunhado) Jay Varquer, no Rio de Janeiro, várias músicas que seguem inéditas até hoje - muitas das quais foram editadas em seu primeiro LP Krig-há, bandolo!.
Há alguns anos, o produtor Rick Bonadio, sabendo da existência dessas gravações propôs ao guitarrista que fizessem um álbum. Nos Estados Unidos, Jay gravaria as bases e depois as enviaria a Bonadio, em São Paulo, para que inserisse a voz de Raul nas novas bases.
No início da mixagem da voz de Raulzito, Kika Seixas ficou sabendo do projeto e, a fim de barrá-lo, ameaçou Rick com processo judicial.
"Ele não teve escolha ao na ser largar o projeto", afirma o guitarrista. Jay ainda tentou as aproveitar as novas bases feitas no tributo Relembrando Raulzito, porém, Kika vetou o lançamento do disco no Brasil.
Edição 38 da Rolling Stone, novembro/2009