sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

pANETONE e cIRCO

Da gestão de recursos públicos por parte da federação local até a organização da Copa de 2014, passando por amistoso da seleção e um caçula do campeonato brasileiro, o esquema de corrupção no governo do distrito federal chegas às entranhas do futebol brasiliense
POR CRISTIANO BASTOS
ILUSTRAÇÃO: SAMUEL CASAL
EM 30 DE AGOSTO DE 1883, Dom Bosco revelou um de seus proféticos sonhos: "Entre os paralelos de 15° e 20°, numa depressão de terra larga e comprida, partindo de um ponto onde se formava um lago". No devaneio, uma voz ecoou:
"Quando vierem escavar as minas ocultas surgirá aqui a terra prometida, vertendo leite e mel. Será uma riqueza inconcebível...". Para alguns, ele previra a construção de Brasília, motivo pelo qual o santo italiano se tornou padroeiro da cidade.
Ele não pressagiou, porém, as rasantes de rapinagem que, mais de um século depois, explodiriam na capital brasileira, instalada há 50 anos no Planalto Central.
Em novembro último, a Polícia Federal (PF) defl agrou a operação "Caixa de Pandora", que investiga o esquema de distribuição de propia à base aliada e deputados distritais comandado pelo governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (ex-Democratas) – líder da patota que sovou "leite e mel" numa corrupta fornada de "panetones".
A gangue, inclusive, queimou ainda mais o filme do desprestigiado futebol candango, em uma série de negócios suspeitos que têm sempre um personagem em comum.
Fábio Simão é tido como um dos baluartes do "Mensalão do DEM" (veja box) e preside a Federação Brasiliense de Futebol (FBF). Ele tem antecedentes de peso no poder. Na gestão passada, era o homem forte do então governador Joaquim Roriz, hoje maior inimigo político de Arruda.
Desavenças a parte, logrou prestígio com o atual governador a ponto de entronar o disputado (e estratégico) posto de dirigente das ações da cidade na Copa do Mundo de 2014, o que deixava sob sua responsabilidade a licitação para construir o novo estádio Nacional de Brasília, obra estimada em R$ 520 milhões.
O dirigente deixou as operações do Mundial após ter o nome envolvido no escândalo de corrupção que tomou conta do Governo do Distrito Federal (GDF). Mas seu prestígio cruzava os contornos arquitetônicos da capital: foi bater às portas da CBF.
Ricardo Teixeira, amigo íntimo de Arruda, reconheceu a gravidade da crise política atravessada por Brasília, mas argumentou que "nada muda" até o Mundial: "Não se escolhe sedes pelos governadores. Até lá, provavelmente, será outro governo. Vamos aguardar, nada foi provado", ponderou.
Talvez não mude mesmo. Como Simão não foi exonerado, nada impede que volte à ativa quando a poeira baixar. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o governador não descarta o regresso do "parceiro".
"Se não tiver nada contra ele, pode. Por que não?", indagou. Por enquanto, Simão é "carta fora do baralho" para o corregedor do Distrito Federal, Roberto Giffoni: "O afastamento alcança todas as suas atividades administrativas".
Em 2009, a Federação Brasiliense de Futebol foi a maior benefi ciada pelo Programa de Recuperação de Créditos Tributários e Não Tributários, o "Refaz", aprovado pela câmara distrital. O artigo 13 foi apelidado de "Emenda Fábio Simão".
Seu texto propõe a remissão de dívidas tributárias – em qualquer estágio – a "entidades de administração desportiva de esportes olímpicos (federação ou similar) no Distrito Federal".
Para a deputada distrital Érika Kokay (PT), vice-presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, Cidadania, Ética e Decoro Parlamentar da Câmara Legislativa do Distrito Federal, não há incerteza: Simão foi o maior beneficiado pela emenda. "Na época, ele era subsecretário da Casa Civil, onde mediou transações financeiras com parlamentares".
O escândalo do Democratas respingou até no futebol de outros estados. Desde 2006, uma das empresas citadas na Operação Caixa de Pandora, a Linknet Tecnologia (cuja dívida com o GDF ultrapassaria R$ 213 milhões) patrocina o Atlético Goianiense, clube dirigido pelo neotucano Valdivino José de Oliveira, ex-vice-prefeito de Goiânia e ex-secretário de Fazenda de Arruda. Marcos Egídio, assessor jurídico do Dragão, afi rma que a empresa não patrocina mais o time.
Ainda assim, a marca da Linknet continua decalcada até hoje na manga da camisa rubro-negra. De acordo com o dirigente, deve-se a um "sentimento de gratidão por parte do clube". O Atlético Goianiense é desses fenômenos de repentina ascensão no futebol brasileiro.
Há nove anos, quase teve seu estádio demolido para a construção de um shopping e, em 2005, estava na segunda divisão estadual. Mas, desde a chegada de Valdivino – e de parceiros com passado polêmico –, ressurgiu. Fez um convênio com o Brasiliense de Luiz Estevão para reforçar o time e escalou degraus.
Nos últimos anos, voltou à primeira divisão g iana (e já conquistou um título e dois vices) e conseguiu duas promoções seguidas em competições nacionais. Disputará a Série A em 2010. A chegada à elite brasileira valorizou o Rubro-Negro.
Segundo Egídio, a Linknet deixará o time goiano em 2010 devido a uma proposta mais polpuda: o Banco BMG teria oferecido cerca de três vezes mais que os R$ 60 mil mensais que o patrocinador anterior pagava. O novo parceiro não tem currículo muito melhor que o antecessor.
O dono da instituição financeira é Ricardo Guimarães, ex-presidente do Atlético Mineiro e responsável pelas irregulares transações financeiras tramadas entre as tubulações do "Valerioduto".
NO MAR DE CORRUPÇÃO que varre o cerrado, nem toda marola morreu na praia. Em 2008, o Tribunal de Contas do Distrito Federal julgou irregulares as contas da Secretaria de Esportes, que não conseguiu comprovar a distribuição dos materiais adquiridos pela federação com recursos governamentais.
O tribunal determinou que Wagner Marques, ex-secretário de esportes e presidente de honra do Gama, seu adjunto Sérgio de Almeida, Márcia Patrício de Oliveira, chefe do Divisão de Administração Geral, e Weber Magalhães, ex-dirigente da Federação Metropolitana de Futebol (antigo nome da FBF), ex-presidente da CBF e chefe da delegação brasileira na Copa de 2002, restituíssem a quantia de R$ 663 mil aos cofres públicos.
Esse valor é irrisório se comparado com outro potencial escândalo envolvendo o governo distrital e o futebol. As investigações sobre os recursos gastos no amistoso entre Brasil e Portugal (vitória brasileira por 6 a 2 na reinauguração do estádio Bezerrão, na cidade-satélite do Gama, em novembro de 2008) jazem estacionadas no Ministério Público do Distrito Federal, que mantém velada qualquer informação sobre o caso.
O número que mais salta aos olhos foi o gasto na modernização de um estádio que atenderá um clube da Série C nacional: R$ 50 milhões, 20 milhões a mais que a previsão inicial. Na prática, a despesa foi maior, pois o custo na organização do evento foi de, pelo menos, R$ 8,5 milhões.
Esse foi o valor do contrato assinado pelo governador José Roberto Arruda e o secretário de Esportes, Agnaldo de Jesus, com a Ailanto Marketing Ltda, responsável pela organização da partida.
O MP-DF suspeita que se trata de uma empresa fantasma, registrada em nome de Vanessa Preste e Alexandre Rosell (na verdade, Sandro Rosell) pelo advogado Eduardo Duarte, o maior laranja de Daniel Dantas na Operação Satiagraha, que investigou o desvio de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro que resultou na prisão de vários banqueiros em 2008.
Citado pelo MP como dono da Ailanto e, igualmente, ligado a ISE (empresa com sede nas Ilhas Cayman que detém direitos exclusivos dos jogos da Seleção Brasileira), Rosell é mais conhecido como ex-presidente da Nike no Brasil, amigo íntimo de Ricardo Teixeira e ex-vice-presidente do Barcelona.
As parcelas dos R$ 8,5 milhões pagos pelo GDF estão discriminadas nas notas fi scais de número 001 e 002 do talonário da Ailanto, uma irrefutável prova de que fora esse o primeiro serviço prestado pela empresa.
Arruda teve seu nome incluído na ação por ter assinado o contrato, intermediado pela CBF, mesmo com parecer contrário da Procuradoria. Nebuloso, porém, é que o recurso tenha sido autorizado e pago – em apenas nove dias – pelo próprio governador.
Mais "estranho" ainda é que tudo isso foi contratado sem licitação. Na época das denúncias, Arruda preferiu não manifestar-se a respeito. A CBF afi rmou desconhecer qualquer intermediação para jogos da Seleção Brasileira.
O deputado distrital Paulo Tadeu (PT-DF) realça outro ponto nevrálgico do certame Brasil x Portugal: o valor cobrado pelos ingressos, entre R$ 180 e R$ 25. O GDF distribuiu 5 mil ingressos para políticos e autoridades e sorteou outros 2 mil para população de baixa renda das cidades satélites.
Tadeu acusa o governo ter se apropriado do dinheiro arrecadado com a venda das entradas. Até hoje, segundo ele, "nenhum tostão da bilheteria foi carreado aos cofres públicos". Na época, o secretário de esportes, Aguinaldo de Jesus, negou a existência de irregularidades.
Mas passou a bola para Fábio Simão: "Quem ficou com a renda foi o presidente da FBF. Cabe a ele mostrar as notas fi scais que comprovam onde foi aplicado o dinheiro".
Tais evidências não foram sufi cientes para assegurar os oito votos que seriam necessários à instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigaria o caso. Somente cinco assinaturas foram conseguidas.
A deputada distrital Érika Kokay defende que as grandes prejudicadas, na verdade, foram as pequenas empresas que prestaram serviço ao GDF durante o amistoso. Elas teriam amargado mais de três meses sem ver a cor do pagamento, segundo a deputada.
"Só receberam depois que denunciamos o governo". E ainda sofreram ameaças da Secretaria de Obras: "Ou aceitavam o calote, e não denunciavam o GDF, ou nunca mais seriam contratadas". Ironicamente, o valor devido a esse conjunto de empresas era menor do que o pago integralmente à Ailanto.
POUCO ANTES DA ABERTURA da Caixa de Pandora, José Roberto Arruda expressou um desejo pes soal: que, além de receber a Copa das Confederações, Brasília sediasse a abertura do Mundial. Para realizar a vontade do governador, o GDF se dispõe a injetar, nos próximos seis anos, pelo menos R$ 3,5 bilhões em projetos.
Todavia, a realização do sonho só seria possível depois de derrotar concorrentes fortes e influentes: São Paulo e Belo Horizonte, cidades com muito mais tradição esportiva.
Mas o governo distrital já dá uma mãozinha para o futebol brasiliense: por meio do Banco Regional de Brasília, o GDF patrocina os oito times que disputam o Campeonato Brasiliense. O investimento total é de R$ 2 milhões.
Para edificar obras da Copa do Mundo de futebol, o GDF vai receber R$ 360 milhões da União. Os recursos serão empregados, por exemplo, na construção do Veículo Leve sobre Trilhos, metrô que vai ligar o aeroporto de Brasília às asas Sul e Norte.
O secretário de obras, Jaime Alarcão, afi rma que o cronograma de obras (que, segundo ele, têm 80% de aprovação da população) não será modificado em virtude da turbulência política. "Não existe qualquer motivação para cessar os trabalhos", afirma.
O GDF está investindo, ainda, R$ 1,6 bilhão na organização da festa de 50°- aniversário de Brasília. Almeja-se que maior parte delas sejam concluídas até 21 de abril, um dia antes da efeméride.
Do montante de recursos, cerca de R$ 200 milhões tem destinação para o esporte local. Quanto ao dinheiro gasto na transformação do estádio Mané Garrincha no Nacional de Brasília, Alarcão diz não haver risco de desvios: "Ministério Público, Tribunal de Contas e Corregedoria da União mantêm constante fiscalização".
O secretário de obras não está errado ao afirmar que há instituições responsáveis pela fiscalização do poder público. Mas elas não inibem o surgimento, de tempos em tempos, de novos casos de corrupção.
Do mesmo modo que órgãos distritais não impediram que o governo do Distrito Federal criasse uma rede de suborno e influência. Um esquema que usou – e muito – o esporte. E ainda faltam quatro anos para 2014...
O Mensalão de Arruda
Em 27 de novembro de 2008, a Polícia Federal deflagrou a operação Caixa de Pandora. De acordo com as autoridades, José Roberto Arruda, governador do Distrito Federal pelo Democratas, comandaria um esquema de cobrança de propina para empresas que pretendem obter contratos com o governo.
Também fariam parte o vice-governador Paulo Octávio, secretários e deputados distritais da base aliada. O caso foi delatado por Durval Barbosa, exsecretário de Relações Institucionais de Arruda que produziu cerca de 30 vídeos mostrando pessoas importantes no GDF (incluindo o próprio governador) recebendo grande quantidade de dinheiro em espécie de quatro empresas de informática que firmaram contratos com o governo distrital, Infoeducacional, Vertax, Linknet e Adler.
A PF apreendeu R$ 700 mil nas residências e gabinetes dos acusados.
Barbosa apontou Fábio Simão, ex-subchefe da Casa Civil do Distrito Federal e ex-chefe de gabinete de Arruda, como gerenciador dos contratos de terceirização de serviços no Governo do Distrito Federal (GDF).
Ele também estava intimamente ligado ao futebol: é presidente da Federação Brasiliense de Futebol e chefe do comitê brasiliense para a organização da Copa de 2014, além de ter sido assessor do ex-senador Luiz Estevão, presidente do Brasiliense. Segundo o delator, cabia a Simão "arrecadar dinheiro de propina da empresas e repassá-lo a quem o governador determinasse".
Após o estouro do escândalo, Arruda afirmou que recebeu o dinheiro em espécie para realizar ações sociais, como a compra de panetones para a população de baixa renda. Pela semelhança com o Mensalão, escândalo que atingiu o Governo Federal em 2005, o caso fi cou conhecido como "Mensalão do DEM".
O partido, temendo problemas com sua imagem, pressionou o governador, que se desfiliou – abrindo mão de uma possível reeleição em 2010. Arruda ainda corre o risco de sofrer impeachment.
*Revista da ESPN, fevereiro de 2010.