POR CRISTIANO BASTOS
"A criação é misteriosa". Assim, Athos Bulcão tenta definir sua arte. Mas não há mistério em se dizer que Bulcão é um dos grandes expoentes da cultura brasileira. Sua extensa produção, reconhecida internacionamente, pode ser vista em aproximadamente cem monumentos públicos de Brasília, em locais como Teatro Nacional, o Panteão da Pátria, o Palácio do Itamaraty e o Congresso Nacional.
Aos 88 anos, com dificuldades para falar por causa do Mal de Parkinson, ele recebeu a revista Bien'Art, no Hospital Sarah Kubistchek, em Brasília, onde estava internado desde fevereiro. Ironicamente, ali mesmo, o artista pôde ver sua obra, criada quando esbanjava saúde: painéis feitos nos anos 1960 para o projeto de João de Filgueiras Lima, o Lelé, arquiteto conhecido pelos inovadores projetos da Rede Sarah. A doença, que hoje impede Bulcão de andar e trabalhar integralmente, não esconde sua veia poética: "A vida, para mim, foi e continua a ser uma constante indagação. Com alegria pelo cerrado, à espera de alma e de beleza".
Juntamente com a mudança da capital do Rio de Janeiro para Brasília, o artista carioca adotou o cerrado para o resto da vida quando recebeu o convite de Oscar Niemeyer para realizar uma série de obras de arte em prédios da cidade. Já havia sido colaborador do arquiteto na Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte.
Em 1958, travando verdadeira corrida contra o tempo, Bulcão desembarcou na futura capital - até então um enorme canteiro de obras no meio do planalto central - para integrar artes às concepções de Oscar Niemeyer. O arquiteto e artista trabalharam juntos nas ações de revestimentos, painéis, murais, divisórias e outros ofícios de integração de artes plásticas à arquitetura da cidade.
Atos costuma dizer que seu encontro com Niemeyer foi uma sorte. "Ele me ensinou a correr riscos. Com ele, aprendi a pensar arte e arquitetura, visualidade, espaços e distâncias". Outro privilégio na sua vida, afirma o artista, foi ter visto Brasília nascer praticamente do nada. E ter colaborado no custoso parto. "Artista eu era. Pioneiro eu fiz-me. Realmente um privilégio: ser um pioneiro".
O arquiteto oscar Niemeyer recorda com afeto os tempos de trabalho e camaradagem ao lado do colega. "Lembro como, atento, Athos tentava supor o que eu tinha em mente, para poucos dias depois surgir com o projeto realizado. O meu amigo decifrava como ninguém a nossa arquitetura e nela se inseria com sensibilidade invariável", conta destacando as pinturas que Bulcão fez para a Catedral de Brasília, a partir de composições equilibradas e muito coloridas. "Às vezes eu o procurava sem nenhum propósito profissional. Queria apenas vê-lo, saber se ia bem de saúde, se a vida lhe corria feliz, e lá ficávamos, a conversar, solidários. Ele, falando baixinho, como é seu hábito", relembra Niemeyer.
Obras de Bulcão dão cor ao concreto de Brasília - Para a professora do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UNB), Grace Maria Machado de Freitas, a porção mais conhecida da vasta obra do artista é a que está integrada à arquitetura. Mas Grace, também presidente da Fundação Athos Bulcão (que desenvolve programas voltados para a difusão de arte e ações sócio-educativas para jovens), destaca outros tipos de trabalho, como a série de relevos policromados, intitulada Máscaras, em que o artista adota a figuração e textura variadas. Grace também destaca as fotomontagens, que expressam um fino humor a partir de uma linguagem surrealista. "Mais adiante, a fase pictórica apresenta soluções de tonalidades cromáticas que traduzem o espaço e a luminosidade da paisagem", acrescenta.
Anos antes de instalar-se em Brasília, Bulcão foi auxiliar do pintor Cândido Poirtinari no painel de São Francisco de Assis, da Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte. Terminou sendo chamado para fazer um estágio no ateliê do mestre, no Rio de Janeiro. "Conheci Portinari em 1945. Ele era muito importante, enquanto eu era sempre muito cerimonioso. Com ele aprendi a entender os quadros e a analisar como eram feitos. Compreendi que trabalho é disciplina e passei a valorizar a importância de se pensar a arte. Até hoje, antes de pintar, escolho as cores que vou usar. Pré-determino o quadro que vou pintar e muito raramente acrescento alguma coisa nova", revela o artista.
Na década de 1960, vivendo a plenitude da sua produção artística, Bulcão foi convidado pelo antropólogo Darcy Ribeiro, então reitor da Universidade de Brasília (UnB), para lecionar no Instituto Central de Artes. "Foram tempos complicados", relembra Maciej Babinsk, pintor polonês naturalizado brasileiro, que na época ocupava o cargo de professor-assistente de Bulcão. A atmosfera era de repressão, inclusive na área cultural. Em 1965, ambos acompanharam, a contragosto, a demissão coletiva de mais de duzentos colegas, conseqüência do golpe militar.
Babinski lembra que Bulcão, assim como outros intelectuais da sua geração, estava envolvido no projeto de tornar a UnB uma universidade nova - antes, durante e depois do regime militar. "A UnB era muito pressionada pela ditadura para levar adiante as demissões. A intenção era que os professores mais 'transgressores' fossem substituídos por outros, inofensivos", recorda o velho colega. Foi um momento de grande desespero.
Na tentativa de fazer com que os professores que estavam na lista fossem poupados, e como forma de protesto, o grupo de acadêmicos fez uma assembléia. A solução acordada entre todos foi a demissão coletiva. Mas o resultado da ação não ocorreu como esperado e as exonerações, assim mesmo, foram realizadas. Em 1985, os professores remanescentes, entre os quais Bulcão e Babinski, foram reintegrados à UnB graças à Lei da Anistia e se envolveram, com a mesma forma do passado, no projeto do novo Instituto de Artes.
A integração da arte à arquitetura - Durante e após a ditadura, a amizade entre Bulcão e Babinski progrediu além da docência. O polonês tem o artista como o precursor, no Brasil dos anos 1940, da técnica de colagem com motivos surrealistas, que ele viria a utilizar na sua arte com azulejos. Essas peças, que podem ser vistas nas paredes do Palácio do Itamaraty ou até mesmo no Memorial da América Latina, em São Paulo, primam pela combinação das cores azul e branco, padrões nos azulejos do Brasil colonial. "É de inteira responsabilidade dele ter reintroduzido a forma de arte oriunda dos azulejos do Brasil colonial na arquitetura moderna".
Na opinião de Babinski, a integração entre arte e arquitetura que se observava em Brasília era mais harmoniosa do que a dos projetos atuais. Segundo ele, em outros tempos, a relação não parecia "simplesmente decorativa". Hoje, falta bom senso e as intervenções são excessivas. "Antes víamos os edifícios em meios às àrvores. Parecia que morávamos em um parque. Agora a quantidade de outdoors é tão grande que em alguns lugares não vemos mais nada. Nem o que eles dizem", reclama. "Eu sempre trabalhei ao lado do arquiteto procurando entender seu projeto para, nele, associar a minha arte", justifica.
Lucio Costa, oscar Niemeyer, Athos Bulcão. De todas as combinações de nomes e obras em Brasília, conforme Grace Maria Machado de Freitas, esta é a mais emblemática para a capital. "O legado de Athos Bulcão para a cidade, em especial, é indissociável do seu projeto urbanístico e arquitetônico", define a professora.
O crítico de arte e professor da Faculdade de Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Agnaldo Farias, enfatiza o fato de Bulcão ter como mérito trabalhar em espaços coletivos numa cidade com inúmeras dificuldades para agregar a convivência social, mas apta a acolher obras de arte e, por meio delas, mediar possíveis encontros. "A obra de Athos tornou-se expressão de um povo".
*Perfil publicado na revista Bien'Art (Fundação Bienal de São Paulo), março de 2006.