Toda vez que um gigante do rock manda recado que vai despertar de uma sonolenta temporada de hibernação, não é a emoção que fala mais alto – é o pé-atrás. Depois do ostracismo, a volta dos dinossauros aos palcos e aos estúdios cheira a golpe ou recende à naftalina. A reação alérgica de abrir o guarda-roupa da casa de praia que ficou fechado por uns verões.
Muita gente vibrou com a volta dos Stooges, mas nem os mais fanáticos sabem o nome de uma música do novo The Weirdness. Eu sei: “My Idea for Fun”, que tem jeito de "No Fun” recauchutada. Os New York Dolls lançaram One Day it Will Please Us to Remember Even This, mas não tem muita graça sem Johnny Thunders e Arthur Kane Killer.
A imortal empolgação com as músicas do The Who não justifica desembolsar algumas pratas pra ver Pete Townshend e Roger Daltrey se aturando pra dar uma última carga de energia em “My Generation” e “Can’t Explain”. São os velhos álbuns que vão preservar a perenidade da banda para as futuras gerações de roqueiros que vão se suceder no inexorável hype de amanhã. É difícil imaginar onde e como Townshend arrumaria forças pra novamente sacrificar uma guitarra como nos áureos tempos. No Who, outra parte do mojo perdeu-se há bastante tempo, quando Keith Moon, a força motriz da banda, se foi entre boletas e baquetas.
A mesma expectativa em relação ao retorno do Led Zeppelin previsto pra esse ano. Sabe-se que Robert Plant detonou sua voz abusando de tantos agudos e que Jimmy Page e sua cabeleira branca, revelada em fotos recentes, é o retorno da múmia em pessoa. Pelo menos no imaginário dos fãs, o gogó de Plant ainda conserva a forma dos anos 70, assim como Page nunca deixou de ser o guitarrista incendiário de “Black Dog”. Mas que ele deve estar tocando melhor do que nunca, isso sim. A verdade é que sempre tem uma multidão saudosista disposta a financiar a volta de todos os mortos-vivos do rock – então, who cares? Viva a necrologia do pop!
Na volta de um sobrevivente como o MC5 – show que vi com os próprio olhos em 2005 – a expectativa latente era de se reviver a emoção genuína que se tem ao ouvir o disco Kick out The Jams: virulência punk em alta octanagem, duelos sônicos de guitarra e deleite noise. A banda, ainda que desfalcada de Fred Sonic Smith e Robin Tyner, claro, fez de tudo para concretizar o sonho coletivo presenteando a todos com um simulacro quase perfeito dessas nossas expectativas. Saí de lá enganado e feliz. Se faz uma ressalva pro MC5: a banda não fazia apresentações desde que se separou, há 35 anos atrás.
Se você não concorda com nada escrito até aqui, tudo bem – foi só um nariz de cera pra justificar que também tenho defuntos que gostaria de ressuscitar enquanto a morte não ceifa as almas que restaram no panteão de heróis clássicos do rock. Se eu tivesse chancela divina (ou financeira) pra isso, não resta dúvida de que a primeira banda pra qual daria o meu "sopro de vida" seria The Kinks. Eles estão no topo da minha lista além-túmulo.
Something Else By The Kinks – Fãs como eu, que passaram a adolescência – e ainda na idade adulta – sonhando ver os Kinks tocando “Waterloo Sunset”, “Till the End of the Day”, “All Day All Night”, “Set me Free”, “Picture Book”, “Lola”, podem soluçar à vontade. Ray Davies, o homem a frente dos Kinks, anunciou que a banda vai se reunir em 2008. Davies é um dos maiores cronistas do Império Britânico e, antes de assumir esse papel, foi o grande hitmaker da Britsh Invasion. Ele é o cara.
Na obra dos Kinks estão os melhores álbuns de rock já gravados nos anos 60 e 70. A banda nunca alcançou dimensões gigantescas de público, de estrutura ou de fama e sempre foi mais cultuada do que popular, então, nunca se desgastaram em espetáculos megalomaníacos. Quem já ouviu sabe que a maioria das canções dos Kinks são à prova de envelhecimento. Se você é neófito e se interessou, fácil, vá na internet e ache um the best of da banda. Depois deixe por conta da sensibilidade. Catequizado, siga para o resto, atacando nas principais fases da banda.
A fase guitar band (The Kinks, Kinda Kinks, The Kinks Kontroversy, Face to Face); psicodélica (Something Else By The Kinks, The Kinks Are the Village Green Preservation Society, Arthur – Or the Decline and Fall of the British Empire); hard caipira (Lola versus Powerman and the Moneygoround Part One, Muswell Hillbillies); conceitual (Preservation Act 1, Preservation Act 2, Soap Opera); e até glitter (Sleepwalker).
Agora, o melhor de tudo nos Kinks: eles não gozam da importância e da seriedade canônica dos contemporâneos Beatles. Essa coisa de insuperabilidade que é imperativa e chega a ser irritante. Estabelecer o posto de “Melhores de Todos os Tempos” para o Fab Four é adimitir importância menor para todo o que surgiu antes e depois deles. Ser mais mortal preservou nos Kinks boa parte da mística que, nos Beatles, perdeu-se por causa da massificação. O quarteto de Liverpool já teve o DNA inteiramente desvendado, graças a exegese exagerada da sua obra e aos lançamentos oportunistas que chegam no mercado todos os anos.
Ray Davies fez o anúncio da volta durante o lançamento do box set Retrospective e aproveitou pra desabafar sobre a sua carreira solo. Davies disse que gostaria de voltar a tocar com os Kinks: “Você sente falta da interação. Com outros músicos é diferente, não tem a mesma paixão”. Vejo essa sanha de tocar como “a” diferença no vôo de regresso de qualquer desses pterodátilos do rock. Imagine (mas não faça trocadilhos) Lennon e McCartney se reunindo pra reativar os Beatles. Se já naquela época eles não tocavam...
Como as letras de Davies, os Kinks tiveram uma trajetória peculiar. Colocaram inteligência e literatura no psicodelismo, foram venerados pelos punks no final dos anos 70, presenciaram e usufruíram do nascimento da MTV nos anos 80 e terminaram sem gravadora e com discos de baixa vendagem no começo dos 90, convivendo lado a lado com bandas que influenciava, como The Fall, Blur e Pretenders (Chrissie Hynde foi a ex-senhora Davies). Deixaram um legado de mais de 30 discos, entre álbuns, coletâneas, trilhas sonoras e dezenas de singles que ainda inspiram o rock alternativo mundo afora.
♪ Girl, you really got me goin ♪ - Em 2007, o hit “You Really Got Me” (número 1 em todo o Reino Unido) completou 42 anos. Pra sacar a importância dessa música, é bom lembrar que Ozzy Osbourn disse mais de uma vez que, se não fosse ela, provavelmente, o Black Sabbath não teria existido. É fácil imaginar Ozzy e Ritchie Blackmore dando cabeçadas no balanço contagiante de “You Really Got Me”. Depois dela, os riffs powerchord, ou seja, baseados em acordes fortes e poderosos, foram a base de clássicos do hard rock pesado como “Smoke On The Water”, do Deep Purple, "Heartbreaker", do Led Zeppelin e "Paranoid", do Black Sabbath.
O som inflamado de guitarra de “You Really Got Me” é mérito do irmão de Ray, o guitarrista Dave Davies, um dos membros originais dos Kinks. Dave conseguiu o timbre único dessa música com uma Harmony Meteor de segunda mão ligada a um amplificador Vox AC-30. O guitarrista furou o alto-falante com um lápis e espetou algumas agulhas de costura. Assim, fez com que o som da guitarra soasse especialmente rachado e distorcido. Resultado: nenhum guitarrista da época (1964) jamais conseguiu reproduzir o efeito de Dave e do seu destruidor experimento. Em termos de barulho, os Kinks foram a vanguarda. O páreo continua duro até hoje.