Por um tempinho (mas só por um tempinho, viu?), esqueça "os discos mais importantes da história do rock": Sgt. Peppers, Pet Sounds, Os Mutantes, Are You Experienced – essas maravilhas canônicas.
Largue de mão, por uns dias, daqueles que já passaram, inclusive, de recém-redescobertos: London Calling & Pet Sounds. Ou os clássicos cult: VU, The Slider, All the Young Dudes, Unknown Pleasures.
Relaxa, as obras-primas vão existir pra sempre. Nenhum advogado vai dar sumiço nelas, a liga Wasp não tá nem aí e a Igreja Católica não vai medir forças e esconjuros com o poder imbatível & satânico do rrrock.
Do umbral, novas levas de discos extraordinários e esquecidos, quase alienígenas, de autores fantasmagóricos - sim, mortos! - clamam em maximum volume para reencarnar novamente em ouvidos esquecidos de roqueiros que andam meio desligados e muito indulgentes com o passado.
É possível que se façam de surdos, mas não de loucos (ou será o contrário?) ao apelo renovador dos grandes discos. Em troca de resgate, oferecem alento em meio ao excesso de repetição & mimetização desses dias inomináveis.
Entes vivos, esses álbuns são missionários de antigas boas novas que tão valendo. Nós é que perdemos a noção, preferindo adorar hypes insuportáveis como óleo de rícino ou mais passageiros que o Iggy naquela música - não a versão do Capital Inicial, por favor!
Neles, ainda há fôlego para superar a pasmaceira travestida de novidade, com excessões aqui e ali, que tomou conta do rock "atual". Como as pedras, o rock ainda rola nos shows, nos discos, nas plataformas de sempre - só que, faz algum tempo, agora o rock é das pistas (!) - e todo mundo concorda que isso é moderrrnidade (com três erres mesmo): o rock "das pistas".
Estamos todos roubados. Na década de 70, o rock das pistas era a Disco. Se for assim, vão deixar só pro Radiohead fazer os verdadeiros álbuns e, daí, putz, que saco vai ser. Grandes álbuns de rock carecem ser deprês em alguns momentos, mas também precisam ser alegres e anarquistas.
Além disso, existe a suspeita de que a tecnologia, antes proclamada como a grande revolução televisionada, tem tolhido a criatividade nos estúdios. Tomara que não.
Álbuns que ficaram perdidos no passado agora são fonte de sonoridades futuristas. O tempo é implacável com o bom e não perdoa o ruim. Esses discos ficaram décadas esquecidos, agüentaram modas fugazes e mofaram nos compartimentos empoeirados das discotecas.
A alquimia foi feita: converteram-se em elixires sonoros. Saboreá-los agora é uma honra e, sobretudo, deleite. A new generation de bandas precisa, urgentemente, ouvir outros fabulosos discos que os arquivos do rock têm guardados em milhares de gavetas - e não só aqueles clássicos citados no início do texto.
Simples assim: se as bandas não ouvirem tudo que, como lição de casa devem ouvir (e não é pouco!), para terem alguma noção sobre estética do rock, tão fodidas. Vão ser uns comuns. Vão usar t-shirt do David Bowie sem nunca ter ouvido The Man Who Sold The World.
E a imprensa, que não perdoa, sempre vai falar mal. É óbvio. Por mais que os crossoveres regionais e as boas intenções imperem, não há "mistura" que segure a onda. Depois, não adianta chorar, se descabelar, achar que é o fim.
Os Ramones, para chegar na sua genial simplicidade de três acordes, antes, tietaram todas as melhores bandas: Joe Ramone era fanático por rock, amava Marc Bolan, Slade, Johnny Thunders; enlouquecia com o wall of sound do Phill Spector e delirava com os timbres de guitarra que Tony Visconty conseguia com Ronson/Bolan.
Joe era um apaixonado por canções e produções. Por isso deixou o legado que deixou. O Renato Russo, para engajar legiões, parou para ouvir todos os fantasmas que dialogavam com a sua sofrida alma - de Nick Drake a Tim Buckley, de Maddona a Edith Piaf. Uma genialidade que não é exclusivamente dele, portanto. Hoje, sua coleção de discos é uma pinacoteca em Brasília, famosa por catalogar os discos que ele escutou para compor seu famoso hinário.
Safe As Milk (1967, RCA), do Captain Beefheart & his Magic Band, é base sonora perfeita para perceber que as roupagens do rock atual já tão todas megaover, belvedere certo para dar um breakzinho na redundância - sempre em cima das mesmas referências e clichês. Os mesmos cabelos, o jeito de tocar guitarra. Até isso.
Ninguém, com bom senso & tímpanos com tolerância limitada, suporta mais os simulacros mal ajambrados de estética novaiorquina e britânica da década de 70 e início dos 80 que sobrelotam o cenário. O cenário de hoje tem muito das pistas de dança: o cara enjoa e ninguém quer mais saber da banda. É ela que dança no esvaziar do salão.
Será que todo mundo pensa que vai formar uma banda, fazer os trejeitos do Tom Yorke ou, pela quadribilésima vez, emular The Who e Beatles e, ainda assim, pensar que está fazendo algo legal e "fresco"?
Música ficou no segundo plano. Uma explosão inevitável de imagens, modelitos descolados, videoclipes frenéticos, clipes mais legais que a música - a música, que está a frente da imagem, quando o lance é a própria música. E o fashionismo? Franjinhas emo, terninhos mod, sei lá mais o que e, agora, as munhecas, além da balaca. Gostaria que alguém me explicasse pra que servem as munhequeiras...Rock wear?
E o som?! O som...Bom, o som, deixa pra lá. Seja no Brasil, fora do Brasil, na Antártida ou na Islândia: Deu, cansou. Como o novo não passa de quimera, poderia ter dito Cortázar - Máquina do Tempo, por favor: Ativar!
ROCK AS SAFE - Safe As Milk é uma experiência psicodélica maravilhosa - e por excelência. É o disco mais acessível do louco, músico & pintor Don Van Vliet, o Captain Beefheart. O sujeito era comparsa de infância de Frank Zappa e depois virou seu parceiro musical. Daí já viu.
Segundo o arqueologista do rock Bento Araújo, editor da revista Poeira Zine, a idéia original de Beefheart (como se fosse possível prever o que se passava na cabeça desse maníaco) era fundir blues do Delta do Mississipi com free jazz e música concreta de Stockhausen & John Cage: "Beefheart queria soar como se Howlin Wolf tivesse tomado ácido e passasse a recitar peças de poesia surrealista, nunca mais tendo uma chance de recuperar sua sanidade novamente", define o jornalista.
Para se ter uma idéia, Beefheart fazia esculturas e pinturas aos quatro anos de idade, quando a família foi morar no deserto de Mojave. No meio do deserto, desenvolveu sua musicalidade aprendendo sozinho a tocar sax e gaita. As habilidades lhe deram amizade (na escola da região) com outro músico inovador, Frank Zappa. Não demorou muito e estava tocando com as bandas locais The Omens e The Blackouts.
Bento lembra que a peculiar voz de quatro oitavas de Beefheart era quase impossível de ser gravada. Não é a toa que, durante as sessões de Safe As Milk, vários microfones foram avariados assim que ele abriu a boca, dada a violência vocal: "Busco o som de uma serra-elétrica cortando uma chapa de metal", disse Beefheart.
Em 1969 saiu o duplo Trout Mask Replica, produzido por Zappa com nada menos que 28 atentados musicais. Não é digerível nas primeiras audições e gerou muito mais influência do que $$$. Do prog ao punk, em colisão à new wave, ninguém saiu ileso.
A música de Beefheart tinha o acompanhamento de um grupo rotativo de músicos chamado Magic Band, que esteve ativo do meio dos 60 ao início dos 80. Van Vliet, famoso pela fama de ditador com os músicos, também tocava saxofone de uma forma barulhenta e sem didática, o estilo free jazz. As composições têm a estranha mistura de marcações de tempo inusitadas e letras surrealistas.
Safe As Milk é um precipício de boas surpresas do início ao fim. Abre com um típico e inofensivo blues, "Sure 'Nuff 'N Yes I Do", e pula para o embalo rock-garageiro-psicodélico de "Zig zag wanderer" - que pode funcionar nas pistas de dança mais criativas & ousadas, sem que todos fiquem te olhando com aquela cara atravessada de "que porra essa?!"...
Uma beleza da natureza. Safe as Milk não é só insanidade. Algumas vezes passeia de mãos-dadas por baladinhas singelas e delicadas, como "Call on me" e "I'm so glad", boas para dar apaixonados beijos na boca.
A voz de Don Van Vliet é instrumento poderoso, que ele usa & abusa em "Electricity", música de vocal sinuoso acompanhado de guitarras mais zombeteiras que vespeiro em dia de eleição. Assombroso!
"Dropout Boogie" entrega porque Mark Arm, o cara do Mudhoney, falou que Safe as Milk é um dos venenos prediletos na sua estante de discos em Seattle. Disco que ele não tira da vitrola.
Recitando divertidas onomatopéias, em determinado momento parece que ouvimos Beefheart clamar em "Dropout Boogie": "♪ Cebola, Cebola! - ♪ Cebola, Cebola!". Demais.
Mas o que Sr. Bigg Muff me confessou:
Qual álbum da primeira era piscodélica não sai nem a pau do seu player?
Arm - Escuto um monte de coisas diferentes e, uma hora ou outra, todas acabam deixando o meu toca-discos. Mas, Safe As Milk, do Captain Beefheart & the Magic Band é um grande álbum da primeira fase do piscodelismo. Assim como The Psychedelic Sounds, o primeiro do 13th Floor Elevators.
"Yellow Brick Road", a próxima faixa, um country rock salpicado de LSD e acid rock, antecipa todas as nuances do psicodelismo, como todo álbum, na verdade, faz - registre-se.
"Abba Zaba" é uma colagem pop de cacofonias e instrumentais inusitados. "Plastic Factory", blues com a harmônica selvagem de Beefheart, sua voz de bandido e base de guitarra fuzz lutando box com os instrumentos - mais ou menos isso, se possível. "Grown So Ugly", outro blues-rock adulterado - ninguém nunca fez blues-rock como Beefheart, nem Jon Spencer, que, esperto como é passa perto muitas vezes.
"Autumn's Child", o grand finale em soul rasgado. O início do segundo turno do pleito das vespas, um pouco mais tranqüilo e, até o fechamento das urnas, deliciosamente caótico, meio parecido com o Brasil.
O relançamento de Safe As Milk, de 1999, vem com sete bônus: "Safe As Milk (Take 5)", "On Tomorrow", "Big Black Baby Shoes", "Flower Pot", "Dirty Blue Gene", "Trust Us (Take 9)" e "Korn Ring Finger". Todas sobremesas deliciosas pós-refeição principal.
A formação que tocou em Safe As Milk é matadora.
Don Van Vliet: vocais
Ry Cooder: guitarra, baixo ("Abba Zaba" solo)
Doug Moon: guitarra
Alex Snouffer & St. Clair: guitarra
Jerry Handley: baixo
John French: bateria
Milt Holland: percussão, marimbas
Sam Hoffman: teremim
Taj Mahal: percussão
Ry Cooder: guitarra, baixo ("Abba Zaba" solo)
Doug Moon: guitarra
Alex Snouffer & St. Clair: guitarra
Jerry Handley: baixo
John French: bateria
Milt Holland: percussão, marimbas
Sam Hoffman: teremim
Taj Mahal: percussão
Também pudera! Agora tá tudo explicado. A história deveria ser reescrita – ao menos parafraseada: "Dos poucos seres humanos que ouviram Safe As Milk, quem ouviu, pirou".
Deus queira que as bandas descubram, no oásis de criatividade e de loucura armazenado em tipos como Captain Beefheart, onde e como nascem as grandes idéias e as belezas feitas para durar para sempre.
E vivam os novos roqueiros!