O paulista Glauco Mattoso, além de poeta, é ficcionista, ensaísta e articulista em diversas mídias. Glauco Mattoso é pseudônimo de Pedro José Ferreira da Silva.
O nome artístico, segundo o sonetista, trocadilha com"glaucomatoso" (portador de glaucoma, doença congênita que lhe acarretou perda progressiva da visão, até cegueira total em 1995).
O nome também alude a Gregório de Matos, de quem é herdeiro na sátira política e na crítica de costumes. Nos anos 70, Glauco participou, entre os chamados "poetas marginais", da resistência cultural à ditadura militar.
Nessa época, residindo temporariamente no Rio de Janeiro, editou o fanzine poético-panfletário Jornal Dobrabril (trocadilho com o Jornal do Brasil e com o formato dobrável do folheto satírico).
Na mesma época, começou a colaborar em diversos órgãos da imprensa alternativa, como Lampião (tablóide gay) e Pasquim (humorístico).
Na década de 80 e início dos 90, continuou militando no periodismo contracultural, desde a HQ (gibis Chiclete com Banana, Tralha, Mil Perigos) até a música (revista Som Três).
Glauco já foi fonte em algumas reportagens que fiz, como a especial - e polêmica - publicada na revista Aplauso em 2000 - Perversões e Arte. Nessa matéria, Glauco fala do seu maior fetiche, que lhe fez famoso até fora do Brasil: a podofilia - ou seja, sua predileção por pés.
No caso dele, masculinos e, de preferência, com chulé. Preferência que ele não esconde em livros como Manual do Pedólatra Amador - Aventuras e Leituras de um Tarado por Pés.
Em 2001, Glauco Mattoso lançou o cedê Melopéia pelo seu selo, o Rotten Records. A brilhante capa é assinada pelo quadrinista (hoje festejado romancista e ator) Lourenço Mutarelli. No clima dos sonetos e músicas, ele faz uma releitura antropofágica em cima de uma tiração de onda com a capa do Panis et Circensis, disco-manifesto dos tropicalistas.
Vale tudo. O que mais chama a atenção no disco, além da diversão poético-roqueira, é a face bocagiana dos sonetos de Glauco, como na sensacional "Flatulento", dos Billy Brothers.
Melopéia traz a participação de bandas e cantores/compositores dos mais variados estilos (do punk ao samba, passando pelo rockabilly, blues, jazz, funk, folk e techno), que musicaram e interpretam sonetos do poeta maldito. Participam bandas como Inocentes, 365, Devotos, Elefunk e Laranja Mecânica, além de Wander Wildner, Humberto Gessinger e Ayrton Mugnaini.
Caetano Veloso (ele, sempre) o homenageou na canção "Língua": "Adoro nomes/ Nomes em ã/ De coisas como rã e ímã/ Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã/ Nomes de nomes/ Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé e Maria da Fé.
Ao "pé do página", para usar um trocadilho ao gosto do poeta, a reprodução de dois sonetos punk-roqueiros enviados pelo autor.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Tudo beleza, Glauco? Tu gosta só de sapatos ou se amarra nuns cadarços também?
Glauco Mattoso - Beleza não posso dizer que tá tudo. Primeiro, porque fiquei cego. Segundo, porque só gosto de pé feio e pisante sujo.
[[DESORIENTAÇÃO]] - É por isso que deves adorar punk rock, né? Todas aquelas botas Doc Martens suadas de tanto pogar...
Glauco Mattoso - Claro! O punk é o rock mais podrão e podólatra, mais chulepento que existe, principalmente quando as letras vão no vão do dedão! Veja, por exemplo, aquele soneto que fiz pro Grievance Committee: é lambeção de bota na marra! Mas também curto rockabilly, que já falava no sapato de camurça azul...
[[DESORIENTAÇÃO]] - Você deve amar o disco "Kick out the Jams", do MC5. Vai dizer que você não queria ter o seu traseiro chutado pelo pezão do Fred Sonic Smith?
Glauco Mattoso - Não só por ele: até dos skinheads levei bica! Eles têm fixação em bota, você sabe! Adoram dar nome de Boot Boys, Kicker Boys, às bandas. Por isso é que se ligaram tanto no filme "Laranja Mecânica": muito chute e lambeção de sola, do jeito que me acostumei a ser tratado.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Lembrei das suas "Dicas para tirar uma onda de um ceguinho": "Leva o cego numa danceteria e larga no meio da pista, ou num concerto de rock, com muita gente e empurra-empurra, ou atrás do trio elétrico no carnaval, ou num baile funk, bem no caminho dos chutes... Dançou, ceguinho!" Não tem medo de levar uma bengalada na cabeça, não?
Glauco Mattoso - Morro de medo! E até já estaria morto, se eu fosse pôr em prática tudo aquilo que a molecada sugeria que um cego fizesse, ou fosse obrigado a fazer... Mas muita coisa eu cheguei a praticar, principalmente coisas feitas com a boca...
[[DESORIENTAÇÃO]] - Dentre os gêneros rockeiros mais tribais, não é só o psychobilly que se faz notar como zona franca das taras e dos maníacos: também o punk rock, desde sua raiz setentista até as derivações do Oi! ou do Hard Core, às vezes faz uma pausa na pauta anarquista e no temário sociopolítico para tirar seu sarro em termos de perversões e tabus sexuais.
O sadomasoquismo é, de todas as modalidades de sexo bizarro, aquela que vai mais fundo no território da transgressão e do abuso, podendo chegar aos extremos da tortura e do homicídio. Sendo anárquico e subversivo, o punk teria que, mesmo de passagem, esbarrar nessa matéria.
Você falou isso. Ainda concorda, Mattoso?
Glauco Mattoso - Sim! Teorizei porque andei preparando textos virtuais sobre sadomasoquismo no rock. Mas na prática é isso mesmo: a molecada não perde chance de zoar com quem tá por baixo.
Eu senti isso na pele quando era moleque, por causa do defeito no olho, e o rock tá cheio de letras que falam como um "loser" é zoado pelo resto da turma. Tenho que encarar a realidade. Por isso acabei virando masoca. Se o estupro é inevitável, "relax and enjoy", como diria a Marta...
[[DESORIENTAÇÃO]] - Um dos mais remotos registros do temário Sado-Maso na música punk é a faixa "I need a slave" do primeiro LP da banda inglesa Vibrators, Pure Mania, de 1977. A letra sugere algo explícito:
Well I'm getting hung up,
With all this hangin' around.
I'm gettin' tied up,
When I wanna be tyin' it down.
It always goes wrong,
Can't seem to get it right.
Yeah come on girl,
I need a slave tonight.
I need a slave tonight
Já arrumou o seu escravo? Ou o seu lugar é ao pés do "mestre"?
Glauco Mattoso - Eu, arrumar escravo? Cego não tem escravo, cego na Índia vira felador, no Japão vira massagista! Aqui vira também chupador de dedão e lambedor de sola, como eu! Até já tive escravo e escrava, quando enxerguei.
Agora não tenho escolha: é obedecer ou obedecer. O mais irônico é que sempre fui mandão pra caralho, exigente, rigoroso com todo mundo que trabalhasse pra mim.
E agora qualquer cara folgado me põe pra chupar e ainda tira sarro porque não estou em condições de reclamar de porra nenhuma, principalmente da porra que desce pela garganta...
[[DESORIENTAÇÃO]] - Cita os 10 melhores discos de Punk.
Glauco Mattoso - Fora de ordem cronológica ou de preferência: "Never mind the bollocks", dos Sex Pistols, "London calling", do Clash, "Inflammable material", do Stiff Little Fingers, "Fat Bob's feet", dos Toy Dolls (aliás uma faixa-título bem podólatra), "The crack", dos Ruts, "Rocket to Russia" e "Road to ruin", dos Ramones, "Fresh fruit for rotting vegetables", dos Dead Kennedys, "Beer sex chips'n'gravy", dos Macc Lads e "Pure mania", dos Vibrators, incluindo as variações e derivações do punk.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Os coturnos de quem representam o seu sonho de consumo?
Glauco Mattoso - Acho que o pé rockeiro nacional que mais me desperta o vício solitário é o do João Gordo, inclusive porque, segundo me contaram, é bem chato e tem o dedão mais curto, formato que me atrai por causa duma lembrança de infância, quando fui abusado por outros moleques que tinham pé de pato.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Qual é o pé mais sexy do Brasil?
Glauco Mattoso - Se for feminino, concordo com o falecido Henfil: teria que ser duma jogadora de basquete, quem sabe o da Magic Paula. Se for masculino, já falei: é o do João Gordo. Mas o Ayrton Senna e o Zico também teriam dedão mais curto, segundo me buchicharam.
Glauco Mattoso - Se for feminino, concordo com o falecido Henfil: teria que ser duma jogadora de basquete, quem sabe o da Magic Paula. Se for masculino, já falei: é o do João Gordo. Mas o Ayrton Senna e o Zico também teriam dedão mais curto, segundo me buchicharam.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Certa vez, você disse que tinham umas chulapas 44 gaúchas com as quais seguidamente você se "relacionava". Também disse que adora os pés dos gaúchos. Por quê? Será que por causa da indefectível bota? Conta sobre aquele evento no Gasômetro, em Porto Alegre, em que decoraram com botas por toda parte...
Glauco Mattoso - Tenho, sim, um amigo gaúcho cujos pezões já lavei com a língua, e posso garantir que me deram trabalho. Quanto às botas, me parece que o gaúcho as usa com mais gosto, não só as típicas, de montaria, mas aquelas pesadas, de montanhês ou lenhador, talvez porque o clima favoreça.
Quando estive em Porto Alegre, palestrando no Gasômetro, os organizadores do evento me destinaram uma sala sem outra decoração que não fossem sapatos e botas, até sobre a mesa que ocupei.
Por um triz não interrompi a palestra para lamber um borzeguim de sola gasta, tamanho 43. Disseram-me que fora emprestado dum funcionário da Usina.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Como os pés tornaram-se o centro da sua vida sexual?
Glauco Mattoso - Bom, tudo veio como uma lenda de Cinderela pelo avesso. Quando criança, já meio ceguinho e indefeso, fui abusado por outros moleques, que me fizeram lamber e chupar, inclusive pés descalços e fedidos.
Um deles tinha pé chato e com dedão mais curto, e até hoje guardo e persigo essa imagem de pé folgado. Depois descobri o sadomasoquismo, e tudo se explicou, mas não se resolveu.
[[DESORIENTAÇÃO]] - Qual sua opinião sobre o conteúdo podófilo na obra A Pata da Gazela, de José de Alencar?
Glauco Mattoso - Ele releu a saga da Cinderela com bastante argúcia, mostrando que o estereótipo do pezinho feminino, delicado e belo, nem sempre se justifica, pois no caso a musa tinha pé pequeno porque era atrofiado, coisa que o podólatra não suspeitava.
Em compensação, a outra personagem tinha pé grande e foi amada mesmo assim, o que põe uma azeitona na minha empada...
[[DESORIENTAÇÃO]] - O escritor gaúcho Donaldo Shueller, tradutor de Finnegans Wake, de James Joyce, falou algo sobre "velar e desvelar" - artifício do qual a literatura romântica vale-se para resguardar um sentido oculto na obra.
Esse princípio (que disse ser teorizado por Roland Barthes em O Prazer do Texto), pode ser aplicado na podofilia enquanto arte?
Glauco Mattoso - Tanto pode, que Alencar o emprega, quando faz a dona do pé pequeno usar vestido longo, de modo que o podólatra nunca consegue conferir se é mesmo dela a botina achada na rua.
Eu mesmo usei desse artifício em meu livro, quando deixo na dúvida se tudo aquilo que passei foi verídico ou exagerado. Faz parte do ofício de escritor alimentar a lenda do autor-personagem, não só fazendo suspense como sendo ambíguo.
Por exemplo: será que o Glauco não gosta mesmo é de pé de donzela e finge gostar de pé de marmanjo só pra avacalhar? Mistééério...