No palco do Hammersmith Odeon, David Bowie encerrou sua mais grandiosa fase - das inúmeras assumidas por ele nas décadas de 70 e 80.
Atmosfera gótica, teatralidade e adolescência em pânico: cenário perfeito para Bowie assassinar Ziggy Stardust.
Ziggy foi seu alterego de rokstar alienígena, o qual levou à ascensão e queda no showbisness.
O filme-concerto Ziggy Stardust & the Spiders from Mars – The Motion Pictures, em cartaz nos cinemas em 1973, registra a última aparição do alien no star-system terrestre.
Nos seus anos como extraterrestre, Bowie, em alguns momentos deve ter se sentido "extraplanetário" - nada que a cocaína não venha a multiplicar numa mente fértil.
Em 2003, numa jogada de marketing comemorativa dos 30 anos de lançamento do filme, a EMI trouxe, remasterizado, o personagem de volta do Vale da Morte. O esquálido Ziggy ressuscitou restaurado nas versões Cd/Lp (edição limitada) e Dvd.
Mais um trabalho de Tony Visconti, produtor dos discos essenciais de Bowie, que remixou as matrizes do espetáculo. Mick Ronson (guitarra, piano e vocais), Woody Woodmansey (bateria) e Trevor Bolder (baixo) – a banda Spiders from Mars – também foram redivivos.
O filme é marco da jurássica era pré-pré-MTV, quando a indústria fonográfica nem sonhava com manufatura videocliptica para promover artistas em larga escala. Arte e estratégia de marketing conseguiam ocupar o mesmo pacote.
Filmes como The Songs Remains the Same (1976), do Led Zeppellin (no Brasil lançado como Rock é Rock Mesmo), e Born to Boogie (1972), de Marc Bolan & T-Rex, dirigido por Ringo Starr, ambos e ao seu modo são conceituais - não desprezam, no entanto, o mote promocional de venda da imagem da banda.
Filmado pela lente 16 milímetros do diretor D. A. Pennebaker – no currículo Monterey Pop Festival (1969) e Don't Look Back (1967), sobre Dylan –, Ziggy Stardust é o espetáculo grandiloqüente da estridência.
O auge dos excessos de Bowie: anúncio do fim das plumas & dos paetês, mas sem suspender o champagne & a coca.
David Bowie chegou ao codinome Ziggy Stardust picoteando e depois juntando os diminutivos Twiggy (a beleza esquelética dos 60's), Iggy Pop, Jimi Hendrix (canhoto, como o alienígena) e Alvin Stardust, o cantor de western & country.
O filme comprova que a grande "sacada genial" de Bowie foi a apropriação. Reproduzindo idéias de Bolan, Pop e Reed, revestiu bases alheias com uma visão estética pessoal - e especial.
O aperfeiçoamento feito por Bowie gerou sonoridades completamente novas pros próprios imitados. Os principais discos-solo de Iggy & Lou, na ordem, The Idiot e Transformer tiveram mão, cabeça e espírito do camaleão.
Atualmente ele anda por aí, totalmente orfão de modelos - o que talvez explique a andropausa criativa. Mas é outro que cumpriu sua missão, com eficiência maior que o astronauta viciado Major Tom na sua odisséia pelo espaço.
No trabalho de recuperação das imagens originais de Motion Picture, foi preservado o clima gótico e abusou-se de fotogramas estourados. Propositalmente, a produção parece de terceira.
Tudo é proposital, a propósito, até as "falhas". A fotografia escura, em constraste com o brilho e toda escuridão que oprime o espetáculo numa claustrofobia dark, introduziu o rock nas terras sombrias que Ian Curtis explorou no Joy Division.
Antes do espetáculo começar, a turma jovem espera o ídolo em frente ao Odeon, a maioria "querendo ser Bowie". Ansiosos, aguardam o glamouroso messias do rock: querem, ao menos, vê-lo pisar com os saltos de plataforma para fora da limousine.
A figura do astro intimida. Andrógino, cigarro pendendo da boca, um anoréxico de cabelos vermelhos e o desleixo típico do astro publicamente "viciado em drogas". Marketing e verdade nunca caberam tão bem na vida de uma pessoa.
Dentro do Hammersmith Odeon, o insuportável frisson. Jovens acotovelam-se por um milímitro cúbico nas primeiras fileiras do teatro. Luzes apagadas, tudo, enfim, conspira para a catarse anunciada.
A introdução da "Nona Sinfonia de Bethoveen" e "March from a Clocwo", do compositor transexual Wendy Carlos - que um dia foi Walter Carlos - preludia o fervoroso psychobilly de "Hang to Yourself". O rock é executado com possessão pelo assustador Mick Ronson.
Logo de cara, Bowie descarta "Ziggy Stardust", tratada com certa indolência pela banda. "Watch the Man", de Aladin Sane, é tocada com malevolência.
"Wild Eyed Boy from Freecould" retoma os early hippies de "Space Odditty" e vem moldada à "All The Young Dudes" - aquela mesma, de Juno. Bowie compôs o sucesso pra ajudar o Mott a sair do buraco e a canção escalou as paradas até o primeiro lugar.
"Oh! You Pretty Things"' é de Hunky Dory. Em "Moonage Daydream", Bowie avisa que é um invasor do espaço - uma "puta do rock'n'roll": luzes para Mick Ronson exibir fabulosas habilidades à guitarra. Em "Space Oddity, as saturações são trocadas por arranjos espaciais/intimistas.
A primeira parte do espetáculo encerra com melancolia de "My Death", pérola depressiva escavada na obra do francês Jacques Brel.
Ao violão, Bowie verte emocionantes lágrimas cenográficas. O recurso dramático é fake, mas não chega a constranger - só um pouquinho.
A introdução de "William Tell Overture", de Rossini, inicia a parte seguinte do espetáculo emendado o clássico às microfonias de "Cracked Actor".
Ziggy Stardust tem a cena considerada como uma das mais famosas da história do rock, na épica "Time", na qual Bowie simula a cena do felatio na guitarra de Ronson.
Na época, só fez aumentar as fofocas a respeito da comentada "possível bissexualidade" de Bowie - hoje, tipo de discussão já superada na sociedade, prova de quanto a militância deu duro nas últimas décadas pra se livrar do preconceito.
"Width of a Circle" é a hora do medo: o jogo de luzes estroboscópicas conspiram a favor da performance satânica de Mick Ronson. Distorções sonoras e visuais talham nos jovens rostos expressões contorcidas, que vão do beatificante ao mortificador.
Ronson é um algoz com a sua guitarra. Seu açoite é uma Gibson em volume desumano.
As Aranhas de Martem aliviam a sofreguidão com um pouco de pop, a versão tutti-frutti de "Let’s Spend the Night Together" e o feminismo incendiário de "Suffragette City".
Perto do final, mais uma homenagem, "White Light/White Heat", ao Velvet Underground.
Nenhum otimismo na despedida, "Rock'n'Roll Suicide".
Time takes a cigarette, puts it in your mouth
You pull on your finger, then another finger, then your cigarette
The wall-to-wall is calling, it lingers, then you forget
Ohhh how how how, youre a rock n roll suicide
You pull on your finger, then another finger, then your cigarette
The wall-to-wall is calling, it lingers, then you forget
Ohhh how how how, youre a rock n roll suicide
O panteão do rock não foi mais ocupado por um personagem como Ziggy Stardust - e nem será, não com os mesmos trejeitos. O maior dos imitadores não aceita imitações.