a farra gratuita dos downloads romantiza as clássicas dificuldades que o colecionador de discos da velha estirpe dos analógicos tinha que passar, até que um dos bons pousasse em seu "aparelho de som".
Os que restaram desse tipo colecionador, virtualmente extinto, seguem a perscrutar o globo terrestre, entre sebos de & ultramegastores, no encalço do Grande Álbum Perdido.
Sua memória deve ser preservada para as novas gerações, já que seus dias estão mesmo contados. Logo essa busca de fé ficará sob o domínio especializado das confrarias.
Grupos que não vou ajudar a fundar, mas para os quais dou minha total simpatia. É bonito, mas o compartilhamento de arquivos sonoros pela internet é mais lindo ainda. O maior milagre realizado no século passado.
O que o obcecado colecionador fazia outrora não era tão-somente comprar um disco numa loja. Ele, na verdade, empreendia sua destemida caça ao tesouro, com direito a transporte naval ou aéreo até a porta de casa. Encomenda que variava da mais fina pirataria a mais rebuscada edição oficial catalogada - epopéia grega, se comparada às sedutoras facilidades oferecidas por zilhões de enclaves que, de lambuja, entregam o mapa da mina musical nos vastos e navegados mares da rede de computadores.
Há uma década, nem tanto assim (mas um século na senda do progresso tecnológico), conseguir aquele disco raro daquela sua banda favorita que nunca-foi-lançado-no-Brasil-e-nunca-o-seria significava a eternidade. Eternidade com elevado custo para bolsos juvenis vazios, só compensada pelo inigualável deleite místico que vinha como garantia total do produto. Afinal, o fetiche acalentado por meses se materializava com a chegada da sonhada encomenda.
Entregue a mercadoria, o ritual fetichista. Primeiro, a fase da excitação: o desembalar do disco, despido do seu invólucro como a calcinha que, gentilmente, liberta-se das pernas da fêmea pelo controle ávido de suas mãos. A seguir, o aguardado momento de abrir a delicada caixinha: olhos fechados para sentir a flagrância evolada pela sedutora química erótico-serigráfica. Que somente as delicadas circunferências têm – que os discos rígidos nunca terão.
O mínimo a fazer era o amor com a música, como se a mulher amada. Você esperou aquela música cruzar oceanos revoltos de tempo, imensidões e profundezas abissais, para finalmente estar com você, na intimidade, sussurrando melodias ao pé da cama. Entregue-se. Se fuma, siga em frente, acenda um cigarro. Se eu ainda fumasse, acenderia um Marlboro. Deve ser apenas pra isso, sexo & música, que inventaram os cigarros.
Veneno de luxo - O colecionador que se criou chafurdando nas lojinhas de discos do bairro ou do centro da cidade - e de todos os lugares onde botasse os pés -, ainda demorará pra ser extinto. Nas colônias de férias dos colecionadores das antigas nunca faltará uma nova reedição do In-a-Gadda-da-Vida ou uma versão mono remasterizada do The Piper at the Gates of Dawn. Já os colecionadores modernos, terão acesso à praticamente tudo o produzido na música mundial. A lógica, no entanto, é que sem mais ter o que colecionar, a raça dos analógicos finalmente seria consumada.
Os downloaders convictos nunca vão sentir o prazer inigualável que é pagar do próprio bolso por uma obra, seus direitos autorais e impostos embutidos - isto é: prazer livre de culpas. Por outro lado, também nunca saberão o que é ter o bolso ardendo em cerca de R$ 100 a menos por um disco importado. Com tanta dor, o prazer da compra é facilmente sublimável.
Jamais vou esquecer as inúmeras fases de encomenda & esperas pelos discos da minha vida. Em Porto Alegre, entre outras lojinhas, os comprava na acolhedora Toca dos Discos, que até hoje resiste na Rua Garibaldi. Numa ensolarada manhã que brilhava sobre o bairo BonFim, lembro direitinho, arrebatei uma edição poderosa do Slade, a coletânea Sladest!, que ouço muito até hoje.
Na Toca comprei Too Much Too Soon, dos New York Dolls, que ouvi umas duzentas mil vezes para ver se percebia qualquer detalhe novo de alguma guitarra do Johnny Thunders que ainda não havia notado. Mesmo sabendo que grandes detalhes não eram o que se podia esperar daquele disco. O que se podia esperar era uma dose de energia sonora capaz de te fazer levantar, se estivesse sentado, e pular, se estivesse de pé.
Too Much Too Soon era uma encomenda dos festejados tempos em que o dólar valia um por um com o real, por volta de 1992, quando muitos colecionadores obstinados aproveitaram para completar suas intermináveis coleções. Foi a época do regozijo, da maior e mais efêmera glória dos antigos colecionadores de discos de rock, fenômeno que jamais se repetiu no Brasil. Quando a moeda americana voltou a estabilizar-se, foi como se o Crack da Bolsa de Valores tivesse naufragado o negócio dos colecionadores.
Outra loja que ainda está no ramo dos "venenos" - nem sempre baratos -, em Porto Alegre, é a Boca do Disco. A loja pertence ao lendário Getúlio, cuja irmã é casada com Cid Moreira (de onde, vejam só, saiu o capital inicial para o negócio). Até hoje Getúlio vende o seu peixe, ou melhor, o seu churrasco de "raridades", sem abandonar o famoso bordão pelo qual é conhecido: "Leva que esse é costela gorda, magrão!", dispara sempre que fareja uma possível venda.
Não era fácil montar uma coleção de respeito. Houve o tempo em que eu consultava, por telefone (!), catálogos de lojas paulistanas como a London Calling. Com a ressalva de ter que suportar o atendimento ultra-blasé do cara do outro lado da linha – um sujeitinho que, contrariando todos os preceitos universais da mais-valia, não dissimulava o ciúme pela perda de suas "mercadorias". Ressalte-se que a London Calling vendia as edições mais especializadas do ramo. Com preço & antipatia idem.
Os venenos eram trazidos diretamente de quebradas londrinas pra lá de confirmadas. O compartilhamento em massa de arquivos em MP3 deve ter melhorado a educação daquele comerciante com os seus clientes. Ou não - vai saber? Com o tempo, comportamentos ruins só tendem a piorar. De qualquer jeito, o preço por suportar sua soberba afetada foi conseguir um bootleg raro do T.Rex – Rock’n’Roll Satyricon. O som idem: afetado, mas divertidíssimo.
Esses ainda eram os tempos nos quais, se um amigo tivesse um disco e você o queria muito, ele gravava numa fita K7 e te dava. Se fosse gente boa, te emprestava o disco original; e você, por sua vez, sendo colecionador honrado, não se faria de louco, o devolveria. As K7 quebravam o puta dum galho, mas tinham o insuperável problema: eram muito espaçosas. Quando se possuía muitas viravam uma tralha empoeirada. Acho que não serão criadas confrarias para os cassete-maníacos. Desfiz-me de uma mala com umas cem fitinhas e nem senti pena - achava que o mojo um dia gravado nos sulcos magnéticos já havia sido inteiramente absorvido por meus ouvidos & cérebro.
Só em Alvorada - Nos tempos pré-download, só fui ouvir um disco dos Dead Boys por causa de um amigo que tinha uma banda punk, a Unidos pelo Ódio. O nome dele era Julinho. Um cara que morava em Alvorada, lugar tipo New Jersey, na região Metropolitana de Porto Alegre. Espaço perfeito para a proliferação de um status quo legitimamente punk.
O Julinho calçava sapatos que comprava no varejo popular do centro de Porto Alegre, modelagens que ficavam penduradas em fieiras entre jaquetas de plástico e calças de moletom. Pra fazer a cabeça do Julinho, trago de cachaça, cigarros Derby e a parceria com William Caveman pra arrebentar com Heartbreakers, Clash e Sham 69. Fanta Uva, só com pinga. Antes do Julinho aparecer com Young, Loud and Snotty, os Dead Boys eram pra mim apenas um mistério do rock. Podia-se ler tudo sobre eles em Please Kill Me, mas era praticamente impossível ouvir alguma coisa deles em qualquer lugar. Só em Alvorada.
Na faculdade de jornalismo da PUC teve um cara que quase ficou famoso. Tão quase famoso que até hoje é conhecido como "O Cara das Fitas". Nunca ninguém soube seu verdadeiro nome. Certa feita, sua fama lhe precedeu, e virou personagem de tira de história em quadrinhos criada pelo Nik Neves na revista ZE. Chegou a ser personagem do livro Gauleses Irredutíveis. Hoje, pra quem o conheceu, "O Cara das Fitas" representa um paradigma tecnológico.
Nos corredores da Famecos, o tipo fazia suas vítimas como um velociraptor, em grupos ou individualmente, com a persuasiva pergunta, jamais esquecida: "Querem dar uma olhada na minha lista de fitas?". Sua lista de fitas, dita seja a verdade, tinha um monte de coisas legais. O Carlinhos Carneiro comprou uma Basf 90 com os dois Kinks psicodélicos, um de cada lado, Village Green e Arthur. Ficou impressionado como o Blur lembrava os Kinks. Todos queriam piratear sua fitinha.
Por volta de 99, o "Cara das Fitas" foi obrigado a adaptar seu negócio aos novos tempos: "Querem dar uma olhada na minha lista de fitas? Agora também com CDs gravados", reformulava, sem mudar, é claro, o velho e famoso bordão-base.
Para os colecionadores de rock à antiga, convertidos em colecionadores adaptados aos novos tempos, e também para bolsos & ouvidos sensíveis, a internet é o Jardim do Éden. Um presente do Deus do Rock (Elvis?) para os seus súditos.
É bom aproveitar, pois a mamata dos downloads, como tudo o que é bom, não deve durar para sempre. Nunca se sabe, nunca se saberá. Muita grana está em jogo, pra variar. Contudo, levando em conta a lama na qual a indústria fonográfica está afundada até os ossos atualmente, só descendo nas pesquisas, o orgasmo promete ser ainda prolongado: ♪ Let's get it on ♪ Let's get it on!
Um dos álbuns que ficaram pra trás na minha coleção particular dos que "algum dia ainda tenho que ouvir" (coleção que todos devem ter), é Psychedelic Lollipop, dos The Blues Magoos. Apenas efemérides para tentar definir o disco, de 1966, perfeitamente pop e complexo desse quinteto de Nova Iorque - acid pop, rock & blues.
Dessa vez, sem preliminares, só dois pontos: Psychedelic Lollipop abre com a fenomenal "(We ain't got) Nothin' Yet", que entrou no top ten norte-americano e por lá permaneceu de dezembro de 66 a fevereiro de 67. O single da música vendeu um milhão de cópias. A tensão pop-experimental de "Tobacco Road" termina em ruídos sinuosos, enquanto a batida contagiante de "Gotta Get Away" e de "One by One" explica porque estouraram nas paradas de sucesso. "Love Seems Doomed" (a-t-e-n-ç-ã-o para as iniciais!) é uma viagem de amor em paragens lisérgicas.
Não se acanhe e baixe Psychedelic Lollipop. Não é como baixar as calcinhas da garota que você ama, mas a diversão é garantida. Vai por mim.