Comissão liderada por ex-presidentes da República tem como missão tornar realidade a prometida reforma do sistema político brasileiro
POR CRISTIANO BASTOS -
ROLLING STONE ILUSTRAÇÃO: LÉZIO JÚNIOR
O ano em que a tão aspirada reforma política deverá descer do púlpito para, enfim, ganhar vida prática no dia-a-dia dos eleitores também celebra uma efeméride que revela o quão sonolenta vem sendo sua realização.
De acordo com estudo feito pela Câmara dos Deputados, desde 1991, foram recebidas 283 propostas de alteração do sistema político, entre projetos de lei e tentativas de emenda à Constituição.
A análise de tais propostas arrasta-se, portanto, em legislaturas que somam 20 anos.
Atraso que, sobretudo, se deve à "falta de consenso" nos debates do Congresso Nacional. Para o eleitor, o processo deverá trazer maior correspondência entre duas pontas: sua vontade na hora de votar e o resultado final nas urnas.
Apesar de tardia, a reforma política é festejada como "mãe de todas as reformas". Reformaria, antes de tudo, os próprios reformadores. Razão que, por outro lado, explica sua lentidão em acontecer de fato.
Todavia, prósperos ventos sopram a favor da reforma política com o fôlego de um Congresso renovado e o apoio dos chefes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
A presidenta da República, Dilma Rousseff, e o presidente do Senado Federal, José Sarney, elegeram a reforma como prioridade em seus mandatos.
A "vassourada" inaugural foi dada pelo Senado, que, em fevereiro, instalou a Comissão de Reforma Política, que nasce com o desafio de cimentar um consenso até hoje não encontrado sobre as propostas em debate.
A "comissão de frente" da reforma, escolhida a dedo pelo próprio Sarney, conta com a vivência política de oito ex-governadores e dois ex-presidentes - os atuais senadores Fernando Collor de Mello (PTB/ AL) e Itamar Franco (PPS/MG).
Presidido por Francisco Dornelles (PP/RJ), o colegiado também é integrado por senadores como Aécio Neves (PSDB-MG), Demóstenes Torres (DEM-GO) e Roberto Requião (PMDB-PR).
Na escalação do "time feminino", estão as senadoras Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), Lúcia Vânia (PSDB-GO) e Ana Rita Esgário (PT-ES).
Sarney justificou que seu critério de escolha fundou-se puramente em "experiência política".
"É primordial que todos os membros da comissão deixem de fazer as contas sobre o que é melhor para seu partido e para seu projeto pessoal e pensem no que é melhor para o Brasil", define Aécio Neves, que também defende o fim das coligações partidárias.
De acordo com o senador tucano, esse parece ser um ponto comum entre os parlamentares.
"Até porque esse é um sistema que desfigura o processo representativo. Ou seja, quando um eleitor vota num determinado candidato e elege um candidato de um partido que atuará de forma absolutamente distinta daquele no qual ele votou."
Na primeira reunião da comissão, 11 temas receberam o selo "prioritário" - entre eles, sistema eleitoral, financiamento de campanha, regras para coligações entre partidos, fidelidade partidária, voto facultativo e reeleição.
O mais fundamental dos desafios, ponderou Sarney, no entanto, será encontrar um modelo alternativo à atual forma de eleição de deputados e vereadores.
Ele sugere a adoção de uma fórmula mista. Ou seja, que combine votação majoritária (na qual o mais votado é eleito) com a proporcional (votos obtidos pelo partido ou coligação, os quais determinariam o resultado).
"A mudança no sistema proporcional resolveria cerca de 60% do problema", contabiliza Sarney.
Agora, a missão do colegiado, no prazo de 45 dias, é apresentar à sociedade um anteprojeto de reforma política.
O ex-presidente Fernando Collor de Mello deixou a presidência da Comissão de Infraestrutura – e na qual, curiosamente, deu lugar ao seu algoz nos tempos de "Fora Collor!", o senador Lindberg Farias (PT-RJ) –, para encabeçar a atual comissão.
Collor pretende reavivar no Brasil o debate sobre a instituição do sistema parlamentarista de governo - de sua autoria, inclusive, há uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 31/07). O senador também se declara favorável a questões como financiamento público e redução dos custos de campanha e fidelidade partidária: "São todas medidas parlamentaristas", diz Collor.
O senador Itamar Franco, por sua vez, defende o fim da reeleição para cargos majoritários, a exemplo do cargo de Presidente da República.
De acordo com Franco, presidente da República de 1992 a 1994, o pressuposto da reeleição atenta contra a ordem constitucional brasileira. Ele também critica os partidos políticos, os quais chama de "estrutura viciada" onde "quatro ou cinco dirigentes mandam".
"Uma hora alguém não gosta mais de sua cara ou de sua atuação e você perde totalmente o espaço. É um absurdo", diz, com indisfarçável sinceridade.
Essa não é a primeira vez (nem deverá ser a última) que ocorrerá uma reforma política no sistema político brasileiro. Nessas duas décadas, desde que a ideia começou ser debatida, alguns avanços surtiram efeito.
Até agora, a maior conquista foi a moralizadora "Lei da Ficha Limpa", cuja aprovação contou com as redes sociais da internet como grande aliada. Os cientistas políticos, contudo, mostram-se descrentes quanto à prioridade que a reforma terá na agenda dos dirigentes da Nação.
Na avaliação de especialistas, desde 1988 (quando a Assembléia Nacional Constituinte consolidou a recém implantada democracia brasileira), o Brasil inegavelmente progrediu em muitos campos – em especial, no social e no econômico.
Politicamente, porém, o País estancou.
O vigente sistema eleitoral é, inclusive, condenado pelos eleitores, que fazem suas escolhas pessoais, mas, de maneira geral, ficam surpresos com o resultado final das votações.
A despeito dessa desconfiança, a turma de senadores que engrossa a Comissão da Reforma Política jura que não costurará apenas "remendos normativos": eles prometem a inteira renovação do sistema político brasileiro.
Porém, no entendimento de Octaviano Nogueira, cientista político da Universidade de Brasília (UnB), os políticos farão somente o que sempre fizeram: proselitismo em causa própria. "Vão fazer um remendo aqui e outro ali, para atender a interesses particulares. Mas não vão mudar o sistema".
Como essencial pilar da reforma, Nogueira cita o voto facultativo – o qual, assim como nas grandes democracias – deveria deixar de ser obrigatório: "Isso, sim, seria 'reforma política', pois diria respeito aos interesses do cidadão", ilustra.
Em sua estreia no Congresso Nacional, Dilma Rousseff voltou a reforçar que a reforma política, que não caminhou nos oito anos do governo Lula, é uma de suas prioridades. Em plenário, entretanto, a presidenta arrancou risos da plateia quando anunciou que trabalhará "em conjunto com a agenda do Congresso" para garantir o andamento do processo.
Dilma se diz, por exemplo, contra as doações ocultas em campanhas eleitorais (quando empresas privadas doam recursos sem identificarem-se na prestação de contas). "Sou a favor de doações explícitas e transparentes", ela diz.
"Os eleitores têm direito de saber quem doou para quem."
Já José Serra, adversário de Dilma em 2010, defende que os candidatos "apresentem-se como são".
Uma das bandeiras hasteadas pelo candidato derrotado à presidência trata do fim daqueles que ele apelida de "candidatos-sabonete", ou, em suas próprias palavras, "políticos vendidos como se fossem novos produtos de consumo".
Conforme dados da ONG Reforma Política Já, cada pleito eleitoral custa aos cofres públicos por volta de R$ 900 milhões. Segundo estudo de 2008 da mesma instituição, 20% dos deputados (estaduais e federais) abandonou suas atividades para dedicar-se exclusivamente a campanhas para prefeituras (aqueles que não se elegeram, posteriormente retornaram ao conforto dos antigos cargos).
Diante da explícita "balbúrdia pública", o efeito mais desejado da reforma política é, sem dúvida, o moralizador. O anseio por mudanças é grande e extravasa as cercanias da Esplanada dos Ministérios. Engajados no "Movimento Reforma Política Já", enfileiram-se artistas como o ator Milton Gonçalves, a atriz Débora Falabella, a banda Jota Quest e o cartunista Ziraldo.
Gonçalves, um dos mais engajados, defende que reformar seria uma das maneiras mais eficientes para reverter a corrupção que assola o Brasil. "Ninguém deve ficar de fora. Precisamos da participação de toda a sociedade", decreta o ator.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), igualmente, é uma das maiores apoiadoras da necessidade da reforma. Dom Geraldo Lyrio Rocha, presidente da CNBB, opina que a mudança não pode ocorrer somente dentro gabinetes: "A vontade do povo, sobretudo, deve ser levada em consideração. A Reforma Política é uma 'dívida' que o Congresso tem para com o Brasil".
Um dos pontos mais polêmicos da reforma política é a adoção do sistema majoritário para a eleição de deputados, medida que findaria com os chamados "puxadores de votos".
Tanto que a proposta, irônica e apropriadamente, ganhou apelido de "Lei Tiririca": ela impediria a repetição do fenômeno provocado pela eleição do deputado federal que recebeu 1,35 milhão de votos e, tal qual um "milagre da multiplicação", ajudou a eleger candidatos bem menos votados.
A "Lei Tiririca" tornaria inúteis as coligações partidárias nas eleições proporcionais e, de quebra, geraria imediato efeito colateral.
Há quem não acredite, porém, na remissão do sistema. No livro Nervos de Aço, franco raio-x da política brasileira, o ex-deputado Roberto Jefferson (denunciante e confesso agente do "mensalão") escreveu:
"O sistema político brasileiro é um círculo vicioso sem fim. Rouba-se para financiar campanhas eleitorais e conservar-se no poder".
"O que fazer para viabilizar uma reforma que afeta tantos interesses, inclusive os dos próprios parlamentares?", questiona a ex-senadora e ex-candidata a presidente Marina Silva (PV/AC).
Ela pontua que o Brasil precisa de um "realinhamento histórico", pois "só assim a reforma política sairá do papel". Assim, a tão desejada reforma independeria de políticos e poderia ser iniciada pelas escolhas feitas pelos próprios eleitores.
Dentre as quais, Marina sugere eleger parlamentares minimamente comprometidos com outras reformas importantes, como a tributária e a da previdência.
"As pessoas não devem escolher um representante esperando que ele vá se transformar em 'príncipe encantado' da noite para o dia. Também não adianta ficar beijando o 'sapo' na boca para ver se vira príncipe. Não dá certo", ela metaforiza, citando em seguida qual seria a "única saída" para o eleitor:
"Escolher o candidato certo. E, sem preconceito com o sapo, que sou ambientalista."