quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

pAÊBIRÚ, uN pILIER dU pSYCHÉDÉLISM

PAR CRISTIANO BASTOS
Le double album Paêbirú - Caminho da Montanha do Sol(1974), enregistré par le duo Lula Côrtes & Zé Ramalho à Recife, Pernambuco, est un petit joyau onirique perdu dans un vieux bouquin psychédélique.
Selon Nemo Bidstrup, le directeur du label américain Time-Lag qui a réalisé la première édition originale de l'album en dehors du Brésil, ce disque est très lié au psychédélisme américain, anglais et européen.
Cependant, la teneur de la musicalité est bien «verte et jaune». «C’est une sonorité vraiment très brésilienne» observe-t-il. Il faut souligner que, depuis son lancement, il y a 35 ans Paêbirú semble avoir été touché par une malédiction.
Tout commence avec les aléas qui ont marqué son enregistrement et la perte de la plus grande partie du pressage original, emporté par les pluies diluviennes qui se sont abattues sur la capitale de l’état de Pernambouco en 1975.
En effet, 1000 des 1300 copies initiales ont été immergées, et le master a lui aussi disparu. Quelques exemplaires seulement ont survécu au désastre. Un original est maintenant évalué à plus de 4 milles reais (1200 euros).
C'est l'album le plus cher de toute la musique brésilienne. Tout comme le meilleur art lysergique de la planète, celui de Paêbirú est calqué sur le tellurisme.
Ce regard porté sur le traditionalisme indigène et le mythe de Sumé - une entité des Indiens Tupiniquins - est présent dans des titres comme Trilha de Sumé et Pedra Templo Animal. Mais l'album possède aussi son côté rocker que l'on retrouve dans des chansons comme Nas Paredes da Pedra Encantada et Raga dos Raios.
Guitare à 12 cordes, flûtes, rebecs, pianos, ukulélé, chocalhos et voix, créent un climat autour de ces chansons, réparties sur les 4 faces des deux vinyles:
«Terra», «Água», «Fogo» et «Ar» (terre, eau, feu et air).
Pour l'éditeur des disques du magazine Rolling Stone brésilien, Paulo Cavalcanti, Paêbirú prouve qu’il se passait des choses très étranges dans le nordeste brésilien, dans les années 70:
«L'acidité semblait démodée dans le reste du monde, mais elle a encore des échos dans la musique de làbas».

Paêbirú, um marco da psicodelia
O álbum duplo Paêbirú - Caminho da Montanha do Sol (1974), gravado pela dupla Lula Côrtes & Zé Ramalho em Recife, Pernambuco, é dessas jóias oníricas perdidas nos alfarrábios da psicodelia mundial.
Segundo o dono do selo norte-americano Time-Lag (que fez a primeira edição digital do álbum fora do Brasil), Nemo Bidstrup, o álbum guarda fortes conexões com a psicodelia norte-americana, inglesa e europeia.
Porém, o teor da musicalidade é "verde-amarelo"."É uma sonoridade decididamente brasileira", observa.
Todavia, Paêbirú segue maldito 35 anos após seu lançamento. Muito por causa das histórias que marcaram sua concepção, gravação e, por fim, a perda da maior parte da prensagem original, levada pelo dilúvio que em 1975 varreu a capital pernambucana.
Das 1.300 cópias inciais, 1.000 foram literalmente por água abaixo. E a calamidade ainda levou junto a fita master. Bem conservado, um original está avaliado em mais de 4 mil reais (1.200 euros). É o mais caro álbum da música brasileira.
Como a melhor arte lisérgica planetária, a produzida em Paêbirú também é calcada no telurismo. No caso, na ótica sobre o tradicionalismo indígena. O mito de Sumé, entidade dos índios tupiniquins, faz-se presente em títulos como Trilha de Sumé e Pedra Templo Animal.
Mas o álbum também possui sua faceta roqueira, manifesta em músicas como Nas Paredes da Pedra Encantada e Raga dos Raios.
Violas de 12 cordas, flautas, rabecas, pianos, okulelê, chocalhos e vocais climatizam as demais canções, repartidas nos quatro lados dos dois vinis: Terra, Água, Fogo e Ar.
Para o editor de discos da Rolling Stone brasileira, Paulo Cavalcanti, Paêbirú prova que coisas muito estranhas aconteciam no nordeste brasileiro, no anos 70: "A lisergia parecia démodé no resto do mundo, mas ainda ecoava na música de lá".
*Cristiano Bastos est journaliste, il est en train de terminer Nas Paredes da Pedra Encantada, un documentaire sur l’album Paêbirú, réalisé en collaboration avec Leonardo Bomfim et dont la sortie est prévue en 2010.pp
Publicado no magazine Brazuca, editado mensalmente na França (leia no original). Leia, também, a matéria da Rolling Stone "Qual é a música, cineasta", sobre os documentários musicais previstos para 2010.
Veja o teaser do doc Nas Paredes da Pedra Encantada:

domingo, 27 de dezembro de 2009

qUANDO a aRTE iMITA a vIDA*

Drama arquitetado para tocar as massas, Lula: O Filho do Brasil sonha com bilheteria histórica e é criticado por possível influência nas eleições de 2010
POR CRISTIANO BASTOS
O antropólogo norte-americano Joseph Campbell, autor da obra O Herói de Mil Faces, a vida inteira empertigou- se em decifrar personagens identificados à mitologia universal, um fenômeno que batizou de "a jornada do herói".

"Oculto por trás de um milhar de faces, emerge o herói por excelência, arquétipo de todos os mitos", ele escreveu a respeito, no livro publicado originalmente em 1949.

As hipóteses norteadas por Campbell elucidam muitas das razões pelas quais a cinebiografia Lula, O Filho do Brasil, sobre a vida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, vem causando rebuliço no terreiro da política nacional meses antes de entrar em cartaz.

Indiferente de época ou local, conforme ensina Campbell, o enredo dessa jornada sempre é o mesmo: o herói parte de seu mundo, aventura-se em terras distantes, enfrenta inimigos e provações. Depois, regressa transcendido para casa, munido das informações que o levam a sublimar a existência ordinária.

Secularmente, a humanidade vem contando e recontando as mesmas histórias. Não à toa, O Herói de Mil Faces está à cabeceira dos cineastas George Lucas, Francis Ford Coppola e Steven Spielberg.

O livro também fez a cabeça de Fábio Barreto, diretor de Lula, O Filho do Brasil, que já planeja uma minissérie mais abrangente sobre o presidente-personagem:
"Lula provocou uma revolução no Brasil, porque libertou o povo de seu complexo de inferioridade".

É esse o aspecto mais importante, defende Barreto, e não o fato de ele ser "'o cara' do Obama, das Olimpíadas ou da Copa do Mundo".

Para o antropólogo Roberto Da Matta, O Filho do Brasil é uma tentativa de santificação que "ultrapassa os limites de bom-senso do liberalismo": "Por que Lula transformou-se num herói exclusivo? O PT é avesso ao rodízio de heróis. Só podem ser os deles."

Na apreciação de Da Matta, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso igualmente cumpriu a trajetória do herói; todavia, o estadista teria sido severamente "demonizado" pelo Partido dos Trabalhadores.

Ignoraram, segundo ele, a histórica estabilidade fiscal-monetária cimentada nos anos de governo FHC: "Uma forma de demonizar é esquecer", alude o antropólogo, que não tem dúvidas: a força do filme será imensa no pleito de 2010.

"Achei a história superinteligente: Lula não chega à presidência. Essas coisas amedrontam-me. É assim que se constroem seres humanos intocáveis."

Carlos Gerbase, professor de cinema da PUC-RS, alega que a imagética popularidade de Lula (que subiu para 78,9%, de acordo com a última pesquisa CNT/ Sensus), a qual enseja o debate sobre a recém-lançada cinebiografia, não deriva de sua obra política, tampouco dos erros ou acertos de sua administração.

A explicação "semiótica", na visão dele, não é racional.

"Inconsciente coletivo, irracionalidade e 'forças subterrâneas' são acionadas sempre que o ser humano vai tomar uma decisão, o que inclui escolher seu presidente. Lula é 'quase invencível' porque está prestes a cumprir uma jornada inteira como herói", Gerbase explica.

Sem focar-se exatamente na vida partidária do presidente da República, Lula, O Filho do Brasil – filmado em dois estados (Pernambuco e São Paulo), sete cidades e 70 locações ao custo de R$ 16 milhões – viaja pelos itinerários da trajetória humana de Lula: o longa enquadra as profundas transformações pessoais sofridas pelo ex-metalúrgico, do ingrato sertão pernambucano, onde nasceu, à periferia de Santos, onde cresceu, aos tempos do sindicalismo no ABC paulista.

Além disso, outras tantas situações arquetípicas da vida de Lula, como o simbolismo do recebimento do diploma de torneiro mecânico no Serviço Nacional da Indústria (Senai), em 1961; a eleição para a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista, no final dos anos 70; o célebre discurso (sem sistema de som) em São Bernardo do Campo, quando os 80 mil operários reunidos no estádio lotado da Vila Euclides repetiram em uníssono suas palavras, a fim de que todos ouvissem sua mensagem.
Na trilha-sonora, canções de Tim Maia e Roberto Carlos são romântico contraponto ao chumbo militar e, além de tudo, ajudam a suavizar passagens traumáticas da biografia do presidente. Uma dessas passagens, contida no filme, é morte de sua primeira mulher, Lurdes (interpretada por Cléo Pires), e do bebê que ela gestava.
Apesar do quorum oposicionista ainda não ter visto a película, a possível influência que Lula, O Filho do Brasil terá sobre a sucessão presidencial, em 2010, já divide a opinião de analistas políticos, oposição e governo.
Posicionado ao centro dessa querela, o deputado federal Raul Jungmann (PPS-PE), conterrâneo do presidente, presume que o filme terá dois efeitos nas eleições:
"Será neutro ou, quem sabe, até negativo para a candidatura de Dilma Rousseff. É mais provável que seja negativo. Mitificando Lula, o filme distância a ministra do presidente", teoriza. Sem o carisma e sem a história de vida do presidente, demarca Jungmann, Dilma não encontra-se à altura de receber a transferência de devoção, isto é, de votos do 'mito' Lula".
Opiniões não faltam - e o meios para propagá-las também não. A senadora Marisa Serrano (PSDB-MS) declarou, por meio do Twitter, que o longa-metragem sobre o presidente "confunde ficção com realidade":
"Se no tempo de FHC ousassem fazer um filme sobre a sua história, o PT iria fazer passeatas na frente dos cinemas. A exibição de Lula, O Filho do Brasil, neste momento, pode ser legal, mas não é moral", escreveu.
Demóstenes Torres, senador pelo DEM de Goiás, preferiu não comentar o teor da fita antes de assisti-la. Entrementes, sugeriu o senador, o filme poderia ser exibido após o término do governo Lula: "A Justiça deve atuar para coibir a antecipação de campanha".
A idéia para a produção do longa surgiu em 2007, quando a possibilidade do tereceiro mandato mantinha-se de pé.
A centelha do projeto foi o livro Lula, O Filho do Brasil, da jornalista paulista Denise Paraná – originalmente uma tese de doutorado que resultou no homônimo roteiro –, 100% financiado pela Fundação Perseu Abramo, instituição pertencente ao PT.

Para David Fleischer, cientista político norte-americano e professor da Universidade de Brasília (UnB), caso o novo mandato fosse possível, Lula seria reeleito em 2010 impulsionado por seus 80% de popularidade.
O filme, portanto, tornaria-se dispensável "artífice" eleitoral: "O longa açoda mais ainda o culto à personalidade de Lula, entretanto não surtirá impacto sobre a candidatura de Dilma Roussef", prevê.
Desde 2002, quando o volume Lula, O Filho do Brasil (resultado de mais de 100 horas de entrevistas que Denise fez com Lula) foi publicado pela primeira vez, a obra ganhou três reedições patrocinadas pela editora Perseu Abramo.
Recentemente, a editora Objetiva transpôs o estudo para uma versão light, sem academicismos e mais fidedigna ao roteiro de cinema.
Nilmário Miranda, presidente da Fundação Perseu Abramo e ex-Secretário Especial de Direitos Humanos, rende elogios à "maturidade" de Lula ao rejeitar a opção do terceiro mandato, cuja manobra política implicaria numa mudança drástica na Constituição.
Portanto, como Lula não é candidato, o filme não serviria para somar votos: "Dilma nem é personagem do filme", realça Miranda.
O presidente do PT, Ricardo Berzoini, acredita ser pouco provável que o eleitor associe política a um filme que sequer retrata a vida partidária de seu famoso protagonista. "Óbvio que é sobre a vida de um homem que os brasileiros conhecem bem, hoje com alto grau de popularidade", ele reconhece.
Berzoine afirma que Lula não carece mais aprovação ("é muito difícil ultrapassar 80% de popularidade") e que são "normais" as investidas da oposição contra a película. "Tudo vira motivo quando faltam argumentos", dispara o político, que, aos adversários, sugeriu que realizassem um filme sobre FHC.
No exame do presidente do instituto de pesquisa Vox Populi, João Francisco Meira, a premissa de que o filme irá influenciar o vindouro pleito, além de exagerada, é ingênua. Mesmo que atinja média de cinco milhões de espectadores, como ambicionam seus produtores, Meira destaca que o eleitorado brasileiro é composto por mais de mais de 130 milhões de pessoas.
No máximo, calcula, o filme tocaria 2% ou 3% desse eleitorado. "Nem todos vão sair do cinema com sua posição política alterada: na prática isso não existe", diz.
Na interpretação de José Ferreira da Silva, o "Ziza", irmão de Luiz Inácio (também apelidado de Frei Chico), sempre será dado caráter eleitoreiro a tudo o que o irmão fizer: "Se ele erra, toma porrada. Se faz coisa boa, idem".
Tal consciência, em seu julgamento, faz parte do processo cultural da classe política nacional: "Tudo é político", sintetiza Ziza, que é retratado no filme.

Glória Pires, cuja dramaticidade conferida ao papel da mãe de Lula, Dona Lindu, garante momentos de excelência artística da produção, enxerga na "mensagem" do filme muito mais humanidade do que política.
Na pele de Dona Lindu, a atriz acha que as especulações em torno do longa criam muita confusão. Em especial para famílias dos retirantes, ela entende o filme como uma "injeção de auto-estima": "A história comprova que é possível agir contra circunstâncias desfavoráveis", ela defende.
Luiz Carlos Barreto, o Barretão, produtor e pai de Fábio Barreto enxerga na aventura uma "obra de arte", cujo enredo estaria mais para a clássica história do pobre menino que alcança a majestade. "As pessoas interpretam. Lula não é candidato a nada. Sua história não quer dizer que o credencie como um ser onisciente e onipotente".
Barretão ainda afirma que o filme vem sendo contestado até por certas alas do PT, por não tratar de política e, tampouco, da fundação do PT. "Estamos levando fogo dos dois lados", afirma.
Para Denise Paraná, que trabalhou como assessora de Lula em 1990, o impacto do filme sobre as eleições será nulo. Ela conta que a idéia para seu livro (cujo enfoque foi personalidade de Luiz Inácio da Silva de 1945 a 1980) surgiu quando escrevia sua tese de doutorado sobre outro assunto.
"Um dia ele botou água no copo e, espantado, falou: 'É água mineral'. Respondi: 'É, água da torneira é muito ruim'. Ele disse: 'É porque tu não sabe o que é tomar água do chão junto com o gado'".
Denise então pediu a Lula que, se ele concordasse em ser entrevistado, ela abandonaria a tese na qual vinha trabalhando: "Só se você me ajudar entender como eu nasci e surgi", ele respondeu. "Ao contrário do que a imprensa vem afirmando, ele nunca pediu nada, seja para fazer a tese ou para realizar o filme", garante.
Falando de Pernambuco, terra natal do presidente, o ator Ruy Ricardo, que encarou a missão de encarnar Lula nas telas, ainda fala, anda e gesticula como o personagem. "É uma história necessária", ele diz, rechaçando a suposta da influência nas eleições presidenciais:
"Se o filme tivesse sido lançado há dois anos, diriam a mesma coisa. Que opção temos: não contar a história? É uma história mais brasileira do que política".
O pleito presidencial de 2010, provavelmente, não privará o diretor Fabio Barreto de suas noites de sono. Por enquanto, o que pode ameaçar a tranquilidade do cineasta é a superlativa quantidade de negativas avaliações de Lula, O Filho do colhidas na imprensa.
Desde a conturbada pré-estréia, que abriu o 42° Festival de Cinema de Brasília, as críticas choveram de todas as partes. Barreto, contudo, não se importa. "Não tenho muito o que responder à crítica", diz. "É meu melhor filme, o mais maduro até agora. Em Recife, foi ovacionado de pé por duas mil pessoas. Essa informação não saiu em lugar algum".
Na capital federal, o diretor mede – mesmo a despeito dos mornos aplausos recebidos pelo filme, ao término da sessão –, a receptividade foi muito boa: "Estou muito feliz porque, para o bem ou para o mal, o filme foi assunto no país. Não tenho medo da crítica, sou gato e escaldado".
No entanto, para garantir leveza ao filme, Barreto fez concessões a alguns episódios constroversos da biografia do presidente: como o fato de, aos 29 anos, ele ter abandonado a então companheira Miriam Cordeiro quando ela completava seis meses de gravidez.
A passagem, descrita no livro de Denise Paraná, foi cortada do filme. Outros fatos, por sua vez, foram amenizados. Um deles é aquela no qual Lula reage com frieza diante à morte de um gerente de fábrica que, tendo baleado e matado um operário durante um piquete, foi arremessado por grevistas do alto de um sobrado.
Na dissertação original, Lula confessa que chegou a pensar ser aquela uma "reação por justiça". Apesar da violência com que é apresentada no filme, a cena mostra Lula questionando aos brados o irmão Ziza:
"Aquele desgraçado tava melhor do que nós? Precisava jogar ele lá de cima?".
A verossimilhança histórica de certas passagens do filme, como aquelas que se desdobram no campo minado da ditadura militar, quando Lula liderava o movimento sindical, também não foram poupadas pela crítica.
Barreto defende-se: "Discordo que o filme abrande esse capítulo da história. E, ainda assim, não é um filme sobre a ditadura. É a respeito Lula e sua mãe, embora fale-se dos milicos o tempo inteiro".
Ainda na questão das "inverossimilhanças", há quem ache que o roteiro valha-se de ingredientes para chamar atenção do espectador. "A narrativa é uma coisa; o filme é outra", arrazoa Ziza.
A história contada na película, na ótica da personagem que "esteve lá", é realista. Nem todas as passagens, porém, observa o imão de Lula, são totalmente verazes.
"Não se pode voltar ao passado. Mas nada foi inventado. Aliás, os arrochos que nossa família enfrentou na vida real foram muito piores".
Mas a crítica não é a principal inimiga do filme. Para o diretor, os políticos "falam mais besteira ainda". "Tasso Jereissati, por exemplo, disse que o filme entrará em dois mil cinemas quando, na verdade, são 500 salas".
O senador Álvaro Dias (PSDB/PR) também andou dizendo que a produção gastou dinheiro público, porém, contesta o cineasta, o orçamento do filme não conta com tostão algum dessa fonte.
"A grana vem toda de empresas privadas; elas põem seu dinheiro onde bem entenderem".
Barretão pai completa conta que, em 2003, sua empresa, a LC Barreto, começou a imaginar o longa-metragem ao adquirir direitos do livro Lula, O Filho do Brasil. Foi ele, aliás, quem fez a primeira leitura do estudo de Denise Paraná.
A captação de recursos Lula, O Filho do Brasil, que abriu mão de leis de incentivo de renúncia fiscal, explica Barretão, ocorreu pouco a pouco. Pelo menos 50% do dinheiro gasto no filme teria sido oriundo da economia do cinema.
A Europa Filmes, maior investidora, entrou com R$ 2,5 milhões. O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) – instituição na qual Lula formou-se torneiro mecânico em 1963, engordou o orçamento com mais R$ 2 milhões.
Prevendo o sucesso da película, a Rede Globo comprou os direitos de para exibíção na TV aberta; o Canal Brasil adquiriu os direitos para exibição no circuito fechado. Por conta das eleições, o filme só irá ganhar as telinhas a partir de 2011.
A engenharia financeira que alavancou o filme, assegura Barretão, não dependeu só de investidores "extra-cinema". Muitos investimentos vieram de linhas de financiamento contraídas pela LC Barreto.
Nenhum banco, segundo o cineasta, pôs dinheiro no longa. "Nossos investidores são empresas que têm noção de marketing", diz. Rebatendo acusações de que – para os padrões nacionais – o orçamento total do filme (R$ 16 milhões) é perdulário, Barretão cita o cinemão hollywoodiano.
Ele lembra que Velocidade Máxima, por exemplo, captou US$ 60 milhões só em merchandsing: "No Brasil isso vira crime!", ele protesta, afirmando que, no país, ocorre um natural deslocamento de verbas publicitárias que migram indiretamente para o "mercado dramaturgico":
"São mais de R$ 7 bilhões de dólares que estão sendo aplicados na TV e no cinema!".
Até agora, o orçamento de Lula, O Filho do Brasil é o maior que um filme brasileiro reunir em todos os tempos. Desde a realização do roteiro, filmagem e finalização, custou R$ 12 milhões; os demais R$ 4 milhões custearão as etapas do lançamento comercial.
A produtora-executiva Paula Barreto relaciona os altos custos à utilização de mais de 120 atores à contextualização das diferentes épocas retratadas.
"As cenas de multidões, no estádio e na igreja, e da cena inundação, na qual pusemos uma favela dentro de um lago regado à chuva artificial, foram muito onerosas", ela cita.
Paula recorda ainda que uma cena de desabamento – que, num só dia, consumiu R$ 100 mil – acabou ficando de fora da versão final porque os produtores julgaram-na "surreal demais" - apesar da veracidade dos fatos.
Dos R$ 12 milhões iniciais, R$ 3 milhões ficaram na pós-finalização do filme (imagens, trilha, edição sonora); o restante dos R$ 9 milhões foi dividido entre desenvolvimento de roteiro, preparação e filmagem.
O dinheiro, ainda assim, faltou.
"Estamos saldando dívidas de produção", explica a produtora, que acredita que as obrigações acumuladas serão pagas com o retorno financeiro do longa a partir de 1 de janeiro, data marcada para estreia no circuito comercial.
"Até agora, e apesar de todas as polêmicas", ela confessa, rindo, "Lula, O Filho do Brasil está no devedor".
*Na foto: adolescente Luiz Inácio da Silva (segundo da esquerda para a direita), na época em que estudou para torneiro mecânico no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

i'M a dUDE!

Dois queridos álbuns da minha coleção de rock foram descaradamente roubados há alguns anos. Nunca mais os achei: seja fuçando nas lojas que não mais frequento (por causa dos preços de primeiro mundo) ou nos labirínticos Jardins dos Downloads.
Na maior cara de pau, me surrupiaram Another View (Verve, 1967-1969), do Velvet Underground. Na festa do meu aniversário... O ladrãozinho está numa das "grandes bandas" do rock brasileiro - é o que dizem por aí.
O malandro, inclusive, havia "roubado" as namoradas de uns conhecidos, em Porto Alegre. Os corações partidos rogaram-lhe tanta praga que a criatividade do grupo, de fato, é só ladeira abaixo.
Mais de uma vez o flagrei com o álbum na mão. Comentava com os outros capangas (que nunca tinham ouvido falar):

- Esse é o disco que falei pra vocês! É esse é o disco...
Esse nem para download achei mais. Toricamente, no dia do meu aniversário eu deveria estar ganhando alguma coisa; não perdendo. Mas, o que Another View tem de tão bom, afinal, a ponto de alguém querer roubá-lo?
Velvet Underground, ora. E quer mais?
Nesse álbum estão as melhores versões de "We're Gonna Have a Real Good Time Together", "Coney Island Steeplechase" e "Hey Mr. Rain". Músicas que dão vontade de comer, na maior larica. São "trufas de chocolate" assadas nos porões da Factory de Andy Warhol.
All The Young Dudes (1972), do Mott the Hoople, foi outro álbum que algum esperto gatuno "levantou" de minha discoteca. Nem desconfio quem tenha sido. Talvez esteja lendo esse texto agora. Se estiver, por favor: devolva-o.
O mais foda é que, nos idos de 1993, além da espera comprar álbuns importados era sacrifício econômico dos mais heróicos para qualquer jovem. Até para o com grana.
A situação daqueles miseráveis tempos era simples. Resumia-se entre "ou comer ou beber": com o capital de um disco saía-se para beber umas cervas (e tentava-se jantar uma fêmea) ou, então, comprava-o para ouvir em casa de cara - e, pior, solito.
Há uns 15 anos, quando o rock ainda não estava na moda (fora o grunge e o hard rock pouser), era mais fácil achar uma virgem do que conhecer uma companhia feminina para ouvir Mott The Hopple juntinho de você. Hoje dá.
Outra opção era curtir o novo som com os camaradas roqueiros: invariavelmente durangos, porém, sempre comparecedores com aquele "salvador da pátria". Essa sociedade eu mantinha com o legendário Willian Caveman, vulgo "Pancadão".
Jairo comercializava seus fanzines punk por R$ 1 para comprar ganja e ouvir rock. Saudoso amigo, Caveman morreu no ano retrasado.
A gente ouvia All The Young Dudes, que ele curtia pacas, sempre a tarde. Fumávamos inúmeros fanzines movidos pela combinação coff'and'cigarrets.
Pensando bem, esperar por um disco importado obrigava o fissurado roqueiro a investir sua grana num disco o qual - comprovadamente - deveria ser muito bom. Senão, a roubada poderia ser daquelas.
Esse, atualmente, é um dos pontos que, diante das facilidades para se conseguir música grátis, "velha ou nova" (anacronia que esvaziou seu sentido, hoje) chamam atenção.
No passado ou no presente, é tanta coisa disponível que nem tudo, nem mesmo menos da metade de um terço, pode ser ouvido de maneira acurada: impossível. Deve ser por causa disso que o ruim é superestimado e o bom substimado, muitas vezes.
Quase quatro décadas de paradigmas estético-tecnológicos sofridos pelo rock'n'roll, tem um predicado que, eternamente, abrilhantará All The Young Dudes: a produção de David Bowie.
A história é conhecida. No começo dos anos 1970, o Mott the Hopple (banda inglesa com antecedentes no r&b e no hard rock) estava na pior. Porém, pegaram carona na onda glitter e deram-se muito bem.
Fã do Mott, Bowie os resgatou do limbo com seu "toque de Midas". De presente, compôs o hit maior do Mott, "All the Young Dudes".
Se Bowie, hoje, não dita mais tendência cabe lembrar, no entanto, que, de Hunky Dory à Let's Dance, deu só ele. Uma supremacia pop que reinou sobre a face do planeta.
David Bowie não produzia seus artistas, e só; ele imprimia sua rubrica sofisticada às obras de outrens. The Idiot e Transformer, discos de Iggy Pop e Lou Reed, respectivamente, são quase impossíveis de serem concebidas como não sendo, também, um pouco de sua autoria.
Com o Mott não foi diferente. Bowie emprestou sua genialidade a All The Young Dudes sem, todavia, descacterizar o som alheio com a resplandescência de seu brilho pessoal.
Vamos concordar que seria mui fácil roubar a cena, caso Bowie assim desejasse. O iguana Iggy, cansado de suas intromissões, porém, colou um aviso na porta do estúdio de gravação: "Expressamente proibida a entrada de David Bowie!".
Reza a biografia do Mott que Bowie escreveu "Sufragett City" (petardo protopunk-feminista de Ziggy Stardust) para eles; só que teriam recusado a faixa. Também teriam refugado "Drive in Saturday", balada fifith-glam que Bowie viria registrar - soberbamente - em Aladin Sane (1973).
Laborioso/generoso, Bowie tirou da cartola o potencial hit e deu-o para o Mott: "All The Young Dudes" foi escrita no flat do vocalista Ian Hunter, em Londres, numa tarde. Na mosca: a canção galgou o Top of the Pops.
A letra cita Beatles, Stones e T-Rex, e pode ser definida como a "'All You Need Is Love' do glam rock":
"My brother's back at home with his Beatles and his Stones/We never got it off on that revolution stuff/ What a drag, too many snags".

Anos após o sumiço de All The Young Dudes, noite dessas eis que o desaparecido me ressurge numa versão expandida & remasterizada. Isto é, sumo e suprasumo. O suprasumo são os outakes de "Black Scorpio" e "Ride On The Sun", além das canções gravadas ao vivo.
O disco tem nove músicas. E mais, sinceramente, não precisa. All The Young Duds foi feito para se ouvir na ordem "conceitual" estabelecida (por Bowie?). Abre com a versão pop ultraclassuda de "Sweet Jane", do Velvet Underground, entoada em falsete "cool" por Ian Hunter.
Idéia de Bowie, claro, que, nos anos 70, andava a ressucitar os melhores mortos do período. O álbum atesta a alta envergadura técnica dos caras do Mott The Hoople. A começar por Mick Ralphs, cujas guitarras incendiárias sobressaem-se o disco inteiro.
Quando Ralphs desertou da banda, Ian Hunter teria oferecido mundos&fundos ao parceiro para que regressasse. Ralphs recusou, porém. As recusas são praxe no Mott... O espaço vago foi preenchido por Mick Ronson, outro guitarreiro do Olimpo dos Deuses.
Em sua visão de produção, Bowie uniu as três primeiras canções ("Sweet Jane", "Momma's Little Jewel" e "All The Young Dudes") numa célebre suíte. A música-título vem colada à "Momma's Little Jewel", que termina como se o LP estivesse arranhado. A travessura funcionou muito bem.
Além de bem gravado e bem tocado, todas as canções de All The Young Dudes são magníficas. Certa vez, Lou Reed comentou que adoraria muito que seus álbuns soassem como as gravações realizadas na Inglaterra.
No documentário Best Albuns (Transformer), Reed desconstrói "Satellit of Love" no estúdio e , em detalhes, explica como Bowie montou seus grandiloqüentes vocais na canção. Mais de 30 anos depois, o enrugado Reed só falta chorar de tão "emocionado" ao rememorar o resultado.
All The Young Dudes, ainda por cima, é pop. Quem disseminou que o glam rock é um subgênero está redondamente - para não dizer "quadradamente" - equivocado. Com certeza, é um dos filamentos mais divertidos na sexagenária árvore genealógica do rock.
Na grande carreira de Bowie, a produção de All the Young Dudes é algo a mais. Especialmente, por tratar-se da produção de uma banda que não era da vanguarda, o Mott the Hoople. Depois, porque é sua maior incursão ao hard rock.
"The Sucker": impossível não se envolver pelos movimentos da bateria de Dale 'Buffin' Griffin, que se alternam aos riffs da guitarra de Ralphs. Dale arranca passagens de arrepiar o couro nas viradas.
"Jerkin' Crocus", com seu balanço malvado a la "Get it On", do T-Rex, é como se os Rolling Stones ganhassem peso maior. "One of the Boys" é o ápice. Quem ouviu algum dia sabe do que eu estou falando. A "música do telefone".
O rockão parece que terminará num fade in... E ringe o telefone. É uma típica canção do Mott, forte como "Violence", do disco seguinte, Mott (1974), ou "All The Way fFom Memphis" e "Rock'n'Roll Queen". Substimei "Soft Ground" por muito tempo: achava-a "progressiva demais". Mas estava enganado.
"Ready For Love/After Lights", dueto vocal/guitarrístico entre Ian Hunter e Mick Ralphs, antecipa o som do Bad Company, grupo que Ralphs montou com Paul Rodgers, do Free, após ter deixado Hunter na mão.

Para fechar um grande álbum de glam rock, nada mais apropriado do que uma baladona. "Sea Diver" navega na melhor tradição (e pungência) de "Lady Stardust", "Life's a Gas" e "Rock'n'Roll Suicide".
No grande finale, o "Aranha de Marte" Mick Ronson teceu sutis arranjos de orquestra e piano. Do jeito que fez em "Walk on Wild Side", canção que, por milésimos, não fez Lou Reed lacrimejar.
Quase um milagre.

LINE UP
Verden Allen – orgão, backing vocals
David Bowie – saxofone
Dale 'Buffin' Griffin – bateria
Ian Hunter – guitarra, piano, teclado, vocal
Mick Ralphs – guitarra
Mick Ronson – cordas, arranjos
Pete "Overend" Watts – baixo

aLL tHE yOUNGERS

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

dOM nATURAL

Incansável e genial, aos 73 anos João Donato compõe a todo momento e transforma qualquer objeto em música - até mesmo uma inofensiva poltrona de massagens
POR CRISTIANO BASTOS
FOTOS: MAURÍCIO VALLADARES
Há um ano, o maestro Laércio de Freitas ancora à casa de João Donato – vista para a Baía da Guanabara, costas para o Morro da Urca, quase colada à cobertura de Roberto Carlos – e se acomoda na poltrona da sala de ensaios.
O móvel não é ordinário, nota-se pelo nome: Shiatsu Massaging Cushing. Donato, compositor de "A Paz", o trouxe de Denver (Colorado), em 2001, em seu colo, ao fi m da temporada de shows no Vartan’s Jazz Club.
Acionado por controle remoto e ligado à tomada, funciona por estímulo de vibrações eletromagnéticas. Produto fino e, pelo preço, uma bagatela. Por US$ 199 (por volta de R$ 350), as oscilações reproduzem técnicas da massagem japonesa surgida nos estertores da era Meijim, em 1800.
Sem o saber, os fabricantes da HoMedics Inc. não apenas adequaram medicina oriental à traquitana: a tecnologia passou ao estado de arte pela maestria de João Donato de Oliveira Neto – um dos maiores da música popular brasileira –, que fez samba brotar do aparelho e, por tanto, nem cobrou royalties.
Só para relaxar, Laércio senta-se na poltrona que – fora a musicalidade reinante – virou atração residencial à parte. Como gueixa eletrônica, massageia braços, pernas, cabeça, tronco, o corpo inteiro, até os dedos dos pés e mãos. Pode-se escolher a velocidade: lo, high ou speed.
Quem tem o privilégio de visitar Donato e passar um fim de semana conhecendo de perto de sua vida e trabalho, sempre ensaia um relax na shiatsu machine, o carinhoso apelido doméstico do aparelho.
Das incontáveis combinações de vibrações disponíveis, o maestro Laércio – respeitado arranjador e pai da atriz e cantora Thalma de Freitas – cismou com uma "vibração melódica" em especial. Freitas escuta música nas minúcias, "ouvido de tuberculoso", e selecionou sua opção de massagem: primeiramente, pelo som; a seguir, pela terapia.
O timbre da shiatsu machine é vagamente próximo ao das baterias eletrônicas setentistas – datado e bacana como as texturas de Giorgio Moroder, o mago italiano dos sintetizadores. Para Donato, o "som da poltrona" é o de menos – "O que importa é a sugestão rítmica", parodia.
A massoterapia de Laércio foi breve. Alarmado com o compasso musical da sessão que escolhera, ergue-se sobressaltado e anuncia: "Essa poltrona tem música!".
E, entusiasmado com a descoberta auditiva, passa a reproduzir, no meio da sala de estar, a "batida". Ao piano Goldmann, Donato e Laércio a repetiram e testaram. O resultado foi uma base instrumental primitiva.
A cantora Vini Kjaergaard Iuel, dinamarquesa arrebatada pelo universo musical de Donato, estava no Rio e foi visitá-lo. Exausta de um longo vôo, sentou no musical assento, enquanto o via ensaiar com o guitarrista Ricardo Silveira.
Medita, afundada em tranqüilidade: "Massagem ao som de Donato? Isso é perto do paraíso..."
Nesse dia, ela também foi agraciada com um insight shiástico: escolheu sua modalidade e saiu espontaneamente a cantarolar o ritmo da massagem. Ao piano, Donato – mais um "ouvido de tuberculoso" – pede que repita as notas.
A vocalização se encaixa na base instrumental criada meses antes por Laércio e Donato. Enquanto tornava a cantar, ela lembra, ele harmonizava a melodia ao piano: "Não adianta, se derem uma máquina de escrever para o Donato, alguma melodia vai sair dali".
A rapsódia donatiana tem raízes na Selva Amazônica. Em Rio Branco, no Acre, veio ao mundo em 17 de agosto de 1934, perto do meio dia. Seu pai, João Donato, era major da Aeronáutica e foi o primeiro piloto de aviação acreano.
Chegou a sofrer nove acidentes aéreos em sua carreira militar, mas teve morte natural em casa, ao lado da família.
Sem nunca ter freqüentado a escola, Donato desde 7 anos compunha. Nos anos 40, em Rio Branco, a irmã mais velha, Eneyda, acordava o menino ao som dos estudos do método de piano Hannon.
Rapazote, passou a praticar o Hannon sem encarar a regularidade e a disciplina cobrados pelo virtuoso método. Em estações esparsas da vida, a irmã vasculha na lembrança, Donato estudou com professores no Rio de Janeiro:
"Absolutamente dispensável. Ele era indisciplinado. Dezenas de cadernos mostram um autodidata no sentido exato – na sanfona ou no piano, no trombone e noutros instrumentos. O que mais se vê nas suas anotações são estudos de Debussy e Ravel", revela.
Certa vez, por volta de 1946, a família passava o dia na casa do brigadeiro carioca Thomas Gedwürd – "Papai disse que João tocava qualquer coisa", rememora a irmã.

Surpreso, o brigadeiro quis saber se o filhote do aviador também era capaz de "pilotar um violino". O menino respondeu “sim” – no entanto, só o conhecia "por fotografia". Rogou cinco minutos a sós com o instrumento; na volta, anunciou, malandro: "Pode escolher a música".

"E tocou maravilhosamente o violino para o brigadeiro. João toca qualquer coisa – só precisa saber onde fica dó-ré-mi-fá-sol-lá-si", descreve a testemunha ocular.

Lysias Ênio é parceiro-irmão – o poeta de Donato. A consangüinidade artística verte fácil nas abundantes composições da dupla. São deles "Amazonas", "Até Quem Sabe", "Café com Pão". Donato entra com o som, Lysias traz a poesia.

Declara a irmandade, versejando:

"Volúvel, comparsa indissolúvel na harmonia do DNA e na parceria de vida. Somos águas do mesmo rio. Meu irmão, nas ondas da música; eu, no balanço da poesia. A musicalidade está em tudo".

Compor com Donato, conta Lysias com a franqueza de família, é bom. "Mas às vezes é chato. A afinidade é mais estética do que genética", diz. A memória musical mais antiga com o irmão, armazenada ad eternum, é a de uma sanfona de brinquedo:

"Uma, não, duas! Uma minha, outra dele. Na minha, meti a tesoura pra ver o que tinha dentro. Onde eu ouvi ruído, ele ouviu som".

Até o começo dos anos 50, João Donato e Eneyda (que debutaram artisticamente com o nome Irmãos Oliveira) freqüentaram o Sinatra-Farney Fan Clube, na Tijuca, Zona Norte do Rio. Por quase dois anos, o clube – das primeiras escolas da geração bossa-nova, fundado por Johny Alf – foi um dos poucos redutos cariocas consagrados às audições de jazz.

No rol dos associados ilustres, estavam o futuro parceiro de Donato, o clarinetista Paulo Moura, e as cantoras Nora Ney, Dolores Duran, Doris Monteiro e Silvia Telles.

E os novos compositores: Luís Bonfá, Billy Blanco e o imortal Tom Jobim.

"O pessoal se reunia para ouvir Frank Sinatra e Dick Farney, porque os discos ainda eram escassos no Brasil", recorda Eneyda.

Nos laureados anos 50, novidades fonográficas de jazz norte-americano aportavam no Brasil com meses de atraso, na cadência engatinhante da infância da bossa. O jovem Donato era inquieto.

Para se atualizar, não perdia os musicais da Metro Goldwyn-Mayer no cinema, sessões direto das 2 às 4 e das 4 às 6. Chegava em casa à tardinha e ia ao piano reproduzir as trilhas sonoras dos filmes, para não esquecê-las. "Um recorde!", orgulha-se Eneyda.

À meia-noite, o adolescente lançava os temas hollywoodianos, furando as gravadoras, no programa Ritmos da Panair no Ar, gravado na Boate Meia-Noite do Hotel Copacabana Palace. "João fazia isso tudo aos 15 anos de idade, escondido de papai", dedura, 50 anos depois, a irmã.

O crítico musical Tárik de Souza qualifica João Donato como peça-mestra na engrenagem da MPB. A regionalidade, pontua, é porto de partida para se abranger o colossal caminho percorrido pelo compositor. No caso, a música nordestina dominante na mídia do final dos anos 40 e início dos 50:

"A bordo de uma sanfona, Donato chegou a se apresentar no programa de Alfredo Ricardo do Nascimento, o Zé do Norte, autor de ‘Mulher Rendeira’ e das composições do filme O Cangaceiro", situa.

Rápido, se engajou nas transições estéticas que desaguariam na bossa nova. Em 1951, aos 17 anos, participou do histórico disco precursor de Luiz Bonfá. Toca acordeom e estréia como compositor em parceria com João Gilberto, com "Minha Saudade".

Pela primeira vez, a avançada percepção harmônica fazia-se perceber no acetato. No outro lado do Atlântico, o pianista tingiu-se da influência caribenha, atuando com os músicos Mongo Santamaria e Tito Puente. Grava com Bud Shank, saxofonista, e inicia-se na mestiçagem MPB & jazz em três discos, a partir de 1953.

Nos Estados Unidos, deixa a trinca formidável de álbuns: Piano of Joao Donato – The New Sound of Brazil, com o alemão Claus Ogerman (arranjador do álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim), em 1965; Donato/Deodato, em 1968; e o antecipador A Bad Donato – em que inaugura o instrumental eletrônico que começava a ser usado em 1970.

De volta ao Brasil, em 73, lança Quem É Quem, marco de sua carreira, no qual os instrumentais recebem letras. Dois anos depois, sai Lugar Comum, marcado pela parceria com Gilberto Gil, que assina a maioria das faixas. É a fase da expansão do repertório e das parcerias – de Gil e Caetano Veloso a Martinho da Vila e o irmão Lysias.

Caetano repartiu com o amigo Donato "A Rã", "Surpresa" e "O Fundo". O tem como beatífico:

"Donato é um santo da música. Nele, a precisão matemática é como se fosse um aroma. E a forma concisa da canção se mostra capaz de enfrentar a grande arte geral da composição. Tocando piano, vai fundo no terror da existência – densidade e amplitude na harmonia – e sobe à tona da delicadeza de um brinquedo – soltura nas melodias e ritmos. Sempre foi velho sábio e menino esperto. Sempre será".

Notória pela voz e laços de família (irmã de Chico Buarque, casada com João Gilberto, mãe de Bebel Gilberto), Heloísa Maria Buarque de Hollanda, a Miúcha – que compartilhou da música e amizade de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, também se derrete em elogios:

"Donato vai direto ao ponto. Sua leveza e humor são enormes, na música ou na personalidade. Sou muito fã".

Gilberto Gil, por sua vez, brinca com a poesia do nome: "João é dó natural, é dom natural", simplifica.

Voltando à magical mistery chair, preterindo a sagrada prática de Debussy, Donato passou a madrugada inteira montando a poltrona. "Seu Trono", caçoa a gaúcha Ivone Belém, 42, esposa, que em 2005 trocou o Planalto Central para viver com ele na Urca. Ela administra sua carreira dentro e fora dos palcos:

"O João tem mania de ir aos supermercados dos outros países. Compra biscoitos, pasta de dente, creme de barbear, leite condensado – só besteira. Experimentou a poltrona várias vezes antes de comprá-la", entrega.

Pelotense tresloucada de olhos azuis-orbitais, Ivone fala do relacionamento com o marido. Seu jeitão "meio maluca-para-quem-não-conhece" foi das coisas que, de cara, chamou a atenção do quieto observador Donato – que na rubrica amor não é marinheiro de primeira viagem.

Foi namorado de Dolores Duran. Ela costurava os seus pijamas e morreu no mesmo dia em que ele embarcou para os Estados Unidos. Lá, engraçou-se por Patrícia, mulherão de quase 2 metros, atriz e filha de latinos, com quem teve a filha Jodel. Ficaram juntos sete anos.

Casou-se depois com Ana Maria, uma das mulatas do Sargentelli. Nasceu Joana. O matrimônio com Leila, mulher presenteada com mais de 30 canções (entre as quais "A Paz" e Leilíades, álbum gravado em 1986), foi o mais conturbado. Ivone e Donato se conheceram em Brasília.

Ele foi lançar o songbook organizado pelo músico Almir Chediak (assassinado em 2003). Ela, acompanhar uma amiga que preparava reportagem sobre o "mito da bossa nova". Em pleno show no Carpe Diem, Donato mal a avistou e não se fez de rogado: abandonou o piano, foi à mesa e tascou-lhe um beijo na boca, relembra a mulher.

Foi amor à primeira vista. No primeiro encontro, em dezembro de 1999, o experiente coração não segurou a emoção do novo amor e teve um infarto. Passou dez dias no Hospital de Base de Brasília.

Em retribuição à atenção de médicos, enfermeiros e pacientes, após ganhar alta, deu um show no auditório do hospital. A casa de Donato esconde musicalidades sortidas em cada canto: o som do piano, o piar da natureza.

No quintal, o calopsita Elvis assovia a linha melódica de "Bananeira" para os passantes – ensinada por Donato. Há anos imemoriais não muda hábitos. Sempre disposto, as horas ao piano são à noite. Ao largo do dia, o descanso.

Na intimidade de um dos mais altos espíritos da MPB, decodifi cador da bossa nova, visionário da discoteca, “o homem que levou o Acre mais longe”, à noite a casa recolhia-se para dormir – menos Donato.

Madrugada adentro, ao piano, dedilhou amenamente seu Debussy.

Muitas dessas histórias a cineasta Tetê Moraes vai rodar no documentário Simplesmente João Donato, em fase de captação de recursos. "Será revelada a chave do pensamento musical donateano: as pinceladas sinfônicas, a imersão na salsa, a fusão do partido alto com a bossa, o flerte constante com o jazz", enquadra a diretora.

Ela conta que o projeto nasceu do desejo, expresso pelo artista, de assistir sua vida adaptada à linguagem cinematográfica. O filme parte de sua primeira composição, aos 6 anos, no Acre. Navega por sua explosão de genialidade criativa, no Rio de Janeiro, e deságua na consagração internacional.

Os parceiros Caetano, Chico Buarque, Gal Costa, Henri Salvador, Joyce, João Gilberto, Nana Caymmi e Paulo Moura dão seu testemunho. Nasci para Bailar: João Donato ao Vivo em Havana é outro projeto de Tetê Moraes – e realização de antigo sonho de João, que há tempos queria registrar um álbum ao vivo com músicos cubanos.

O material foi gravado no Festival Internacional de Jazz Plaza, em Havana. Em duas apresentações, Donato fez uma jam session com o pianista Chucho Valdés. Os shows em Cuba antecederam a renúncia de Fidel Castro, que retirava-se da presidência após 49 anos no comando.

O brasileiro estampou os jornais cubanos do dia 15 de fevereiro; e a carta de Fidel foi assinada no dia 18 – embora a notícia tenha saído na edição especial do dia seguinte. Por isso, antes mesmo de ser lançado, Nasci para Bailar já é gravação histórica.

Entre os parceiros musicais de Donato, Clifford Everett "Bud" Shank pode ser considerado um dos mais significantes. Recém-chegado nos Estados Unidos, o acreano fazia périplo pelas gravadoras tentando emplacar sua música pouco aceita no Brasil.

Acabou na Pacific Jazz, onde foi recebido pelo diretor musical Richard Bock, que dele gostava por tê-lo ouvido no álbum João Donato e Seu Trio Muito à Vontade (1962). Bock se encontraria com Bud Shank, artista contratado da Pacific Jazz, para tratar da gravação de novo disco e prometeu que mostraria a música de Donato ao saxofonista.

"Shank gostou tanto que marcou uma gravação inteira com as minhas composições", conta Donato. Bud Shank & His Brazilians Friends é o álbum resultante desse encontro: "Desde a escolha do repertório, tudo foi feito por Donato", escreve Shank na contracapa do disco.

Em seguida, fizeram uma série de apresentações por São Francisco – "Foi quando as portas dos Estados Unidos se abriram para Donato", contextualiza o músico norte-americano. O cantor Henri Salvador, francês nascido na Guiana Francesa, tinha forte ligação com o Brasil.

Sua canção "Dans Mon Île", de 1957, segundo catedráticos, teria influenciado Tom Jobim na gênese da bossa nova. Seu último álbum antes de morrer, Révérance (2006), foi arranjado por Jacques Morelenbaum e teve a participação de Donato.

"Quando Henri me procurou, querendo dar sabor brasileiro ao disco, imediatamente pensei no sotaque musical de Donato", ilustra Morelenbaum. "Concluí que seria a escolha perfeita para o disco, além de deliciosa oportunidade de conviver e aprender com ele".

Próximo dos 90 anos de idade, Salvador declinou de vir ao Brasil para fazer a gravação das bases de Révérance. Sabendo da maestria de Donato e confiando na reputação de Morelenbaum, o músico francês deixou a responsabilidade nas mãos dos dois – só apareceu no estúdio mais tarde, nas gravações das partes orquestradas com cordas e sopros.

"As sessões foram enormemente ricas, pois a cada passada das canções novas pérolas se criavam – e Donato, com o desprendimento dos verdadeiros gênios, estava sempre pronto e disposto a experimentar", lembra o regente.

Porém, de todos os músicos com quem tocou, Donato descreve Chet Baker como um dos mais afáveis. Os dois se conheceram nos nigthclubs de Los Angeles nos anos 60. Baker o tinha visto uma noite qualquer, conta Donato.

"Um bom menino", comprova. Na época, admite, seu conjunto era ruim, a ponto de o gerente do Clube Trident, em Salsalito, dizer-lhe: – "Puxa, esse trio está horrível!"

E sugeriu: – "Você não conhece nenhum jazzista para botar na banda?" – "Conheço, sim: Chet Baker", respondeu Donato.

O grupo foi reformado para apresentar Chet, convidado especial. "A gente tocava coisas dele e nossas, brasileiras", dedilha o pianista.

Anos antes, o trompetista conhecera fama e tornara-se mito com "My Funny Valentine" – que, recorda Donato, interpretaram nas poucas datas em que tocaram juntos. Não durou muito:

"Certo dia, Chet apareceu ensangüentado no hotel. Dentes quebrados, dizia ter sido agredido na Broadway Street. Introvertido, falava pouco e desaparecia. As pessoas me perguntavam: 'Cadê Chet?' Todos os dias, a mesma dúvida: apareceria ou não? Nunca mais apareceu e esse foi o fim da história".

Donato encomendou sua biografia ao jornalista carioca Antonio Carlos Miguel. A idéia partiu do próprio biografado, com o desejo de contar sua vida em detalhes. A história de ambos, entretanto, inicia-se em 1974, quando Miguel o "descobriu" no disco Cantar, de Gal Costa – no qual toca piano e compõe:

"Fui atrás do LP que lançara pouco antes, Quem É Quem, e confirmei o quanto sua música era especial", afirma Miguel.

Donato ligou certa noite, em 1985, relembra o jornalista, e disse que teria um show em São Paulo na semana seguinte: precisava de um texto biográfico para a divulgação. Miguel disse que tudo bem, teria o maior prazer em redigi-lo – poderiam combinar um encontro no dia seguinte.

A proposta não foi aceita.

"Me disse que viajaria cedo para São Paulo e que só sobrara aquela noite. Era perto das 22h e não tive alternativa. Donato pegou um táxi, chegou em casa e, enquanto eu escrevia, sentou no piano e ficou conversando comigo e minha mulher, que esperava nosso primeiro filho. Depois, disse que não tinha como me pagar, mas escreveria uma música para Kati e o bebê. Até hoje a música não nasceu – Marlon tem 21 anos e também adora Donato e sua obra. Além do ídolo próximo, ganhei um amigo para toda a vida", homenageia o amigo.

Quando pára pra pensar em Donato, a história mais marcante que vem à cabeça do músico Marcos Valle é a dos tempos de Quem É Quem.

"O Donato me ligou um dia, de passagem pelo Rio. Estava em busca de um amor perdido e, como não o achou, disse estar de malas feitas para voltar aos Estados Unidos. Quis saber por que não ficava mais um pouco. Explicou nada mais ter a fazer no Brasil, a não ser que lhe conseguisse algo. Pedi um tempo – meu objetivo era gravar um disco dele pela Odeon, gravadora com a qual eu possuía contrato como intérprete".

Valle foi conversar com o amigo Milton Miranda, diretor artístico da gravadora, e lançou a idéia. Entretanto, por mais que Milton gostasse de Donato, recusou-se totalmente – pelo trabalho, sabia que o acreano daria. O músico, porém, não desistiu.

Conversou com o amigo por horas, até vencê-lo pelo cansaço: "Milton disse que, se produzisse o disco, se tomasse conta, liberava para gravação", conta.

O maestro Lindolf Gaya, integrante da diretoria, também precisava ser convencido. Sua reação foi idêntica à de Milton, ou seja, um "não" bem grande. "Mas insisti até convencê-lo. Pronto, gravaríamos Quem É Quem".

Imediatamente, Marcos Valle ligou para Donato, deu-lhe as boas-novas e ordenou que desfizesse as malas:

"Marcamos o primeiro encontro do álbum lá em casa. Nesse dia, por acaso, o cantor Agostinho dos Santos fazia uma visita. Ouvimos umas fitas do Donato com músicas inacabadas – todas sem letra – e comecei a organizar aquilo tudo".

Valle e Donato foram escolher letristas e arranjadores para o novo disco. Ao ouvir Donato cantarolar "umas coisas estranhas" nas fitas, Valle teve a idéia de anotar as frases. Depois, pediu para o músico as repetir no estúdio.

"Visava manter o clima das fi tas, e assim foi feito em Quem É Quem. Fico feliz em ter mantido o Donato no Brasil, vendo-o trabalhar, compor e gravar.” Ficar no país, de fato, só fez bem a Donato.

Não esconde seu entusiasmo com Quem É Quem na carta a João Gilberto, de 13 de setembro de 1973:

"É meu melhor trabalho em discos até o momento, tendo-se em conta o tempo que demorou, o que demonstra o máximo cuidado com o que tudo aconteceu. E o resultado é um disco que eu acho adorável".

Nos final dos anos 60, Sérgio Mendes levou Donato ao Japão pela primeira vez, acompanhando o grupo Bossa Rio. A viagem, revê Mendes, foi a semente que frutificaria na gravação do mitológico A Bad Donato.

Bob Krasnow, diretor do selo californiano Blue Thumb, foi junto na turnê, viu o "Goldfinger" do Acre em ação e saiu de lá alucinado. O resto é história. As afinidades musicais entre Mendes e João cruzaram o tempo.

Timeless e Encanto, os últimos blockbusters de Mendes, têm cinco canções de Donato. Foi o acreano quem o acolheu em Los Angeles, ainda na década de 50:

"Ele já morava lá e encontrou o meu primeiro apartamento", faz justiça. E complementa: "É um dos artistas mais incríveis que conheço. Como pianista, sou grande fã. É o 'piano econômico do bom gosto'", escolhe as palavras.

Antes de falar sobre seu disco mais psicodélico, o criador anuncia a novidade – a gravação de A Bad Donato 2, prevista para este ano. Ele explica como será produzida:

"A metodologia será a mesma de 38 anos atrás, mas com tecnologias e sonoridades atuais. A cabeça é a mesma de sempre", constata. – E a música de A Bad 2?

– "Só precisa ter suingue, balanço, ritmo, animação, sei lá como é. Senão fi co meio sem graça", descontrai.

– "A Good Donato", arrisco. Ivone rebate prontamente: "A God!".

E todos desabam em gargalhadas.

Lá pelos idos de 1970, Donato não desconfiava da atemporalidade do disco: "Nunca tenho idéia da importância das coisas. Nada é pretensioso ou ambicioso. Faço fazendo. Tudo é tão simples”, desmistifica.

– Como foi gravar A Bad Donato? – quero detalhes.

– "Entrei no estúdio e saí tocando com os camaradas. Busquei o estilo funk de James Brown, que me entusiasmava na época e ainda hoje", diz com a peculiar simplicidade.

- E a malvadeza do nome?

– "Partiu do pessoal da companhia. Deveria ser João Donato & sua Orquestra, mas era muito careta. Alguém pensou em A Bad Donato e ficou" – narra o protagonista.

Ano passado, Donato foi convidado para fazer o show inédito – no Brasil e no mundo – de seu disco mais experimental. Topou. Recrutou os músicos de sua banda – Robertinho Silva (bateria), Luiz Alves (contrabaixo), Jessé Sadoc (trompete) e Ricardo Pontes (sax e flauta) –, chamou o reforço de Bocato (trombone) e alistou o filho, Donatinho (23, tal qual o pai, autodidata do piano), para cuidar dos efeitos siderais do espetáculo A Bad Donato.

A experiência foi testada no projeto Virada Cultural. "Foi sensacional", diz Donatinho. "O público urrava quando meu pai adentrou o palco vestindo casaco com capuz, boné e óculos escuros". Donato pai aprova e quer repetir a dose: "Deu vontade de tocar mais".

Só para constar: Donato tem 198 gavetas abarrotadas de fitas cassete com gravações autorais, de todas as suas fases – ora organizadas pelo jornalista Marcelo Froes, proprietário do selo fluminense Discobertas. Talvez, um dia, essa preciosidade ganhe edições.

No apartamento na urca, diante da fiel Shiatsu Massaging Cushing, João Donato – homem cuja musicalidade fala no lugar das palavras – repete ao piano a harmonia composta a partir dos ruídos emitidos pelo assento musical.
Indago se a criação incidental tem nome. Me diz que não.

Ouso propor: "Que tal 'Samba da Poltrona Magnética'?".

Ri, quase aprova e, sorridente: "Samba da Cadeira de Massagem", refaz, satisfeito.

O jornalista Cristiano Bastos é co-autor do livro Gauleses Irredutíveis (Editora Sagra Luzzatto). Rolling Stone/Junho de 2008.

sHIATSU mACHINE


Who's Next?