sábado, 23 de outubro de 2010

tUDO É pREZA


POR CRISTIANO BASTOS/URBANAQUE

A Bidê ou Balde voltou!

Depois de seis longos anos de exílio do noticiário pop e marrom a intrépida trupe comandada pelo mais novo pai de família da praça, Carlinhos Carneiro, deu uma rasteira no hiato e lançou dois singles de uma vez só, que irão figurar no EP a ser lançado no fim do ano:

A grudenta "Me Deixa Desafinar" e a falsa melosinha "Tudo É Preza". (ouça abaixo)

Nosso destemido colaborador Cristiano Bastos (o mano Cristiano) entrevistou o vocalista que teve de ser auxiliado por uma médium que o guiou para incorporar três entidades indígenas das etnias Xavante, Kraho e Guarani.

Carlinhos & Os Índios (isso já é nome de banda…) falaram sobre as atividades paralelas da Bidê – quando não está com o microfone na mão o vocalista mantém uma rotina campeira – e contaram as boas novas da banda, como Rivers Cuomo liberou a versão de "Buddy Holly" do primeiro disco.

E, por fim, a indiada enfileirou todos os seus ídolos do rock gaúcho. Mantenham a calma e fiquem atentos, que "eles" exigem respeito!

Vamos lá?

Sim, vamos!

Você está sozinho na sala ou tem mais alguém com você aí?

Sim, eu estou acompanhado. Sinto a presença de três índios que vieram tentar rever o mundo através de mim e fizeram da minha fala uma ponte para suas intenções e delírios. Pois os mortos deliram.

Do quarto ao lado escuto a presença de minha senhora e nossa filhinha (primeiro um resmungo chorado, depois um 'pega a teta, Sofia' e então os estalos semelhantes aos de beijos, sinalizando que ela se atracou no papá).

E eu estava agora há pouco falando pra um antigo colega de faculdade no MSN, a quem prezo carinhosamente, sobre o quanto é maravilhoso procriar e estar envolto em amor incondicional.

Como você se sente nunca estando solitário?

Como um canguru, ainda.

Você está pronto para falar sobre a banda, A Bidê ou Balde?

Sim, acho que sim. Os índios gostam da Bidê. E a minha filha, Sofia, mais ainda! Ás vezes só dorme quando colocamos o Outubro ou Nada! para embalá-la no sono. E seguido pego a Bruna, minha mulher, musa e personal stylist, cantando 'Me Deixa Desafinar' pra ela nanar!

Depois de toda a sensação que a banda causou quando surgiu, qual o momento da Bidê hoje?

Estamos, finalmente, lançando material novo na bocada! Semana passada, no dia do meu aniversário, 6/10, rolou a estreia da primeira música inédita nossa em 5 anos, 'Me Deixa Desafinar', na rádio Atlântida – principal rede de rádio pop da região sul do Brasil.

Lançamos com exclusividade lá, antes mesmo da internet, de blogs e de rádios de caráter mais indie e ansiosas por novidades, na tentativa (bem sucedida!) de reestabelecer a parceria que sempre tivemos com eles.

É também uma reafirmação de um lance que sempre temos que reafirmar: somos uma banda pop – uma banda pop que se alimenta até de coisas nada pop, mas que enxerga viabilidade pop em tudo que gosta, e com isso ainda pretende salvar o pop das garras do iogurte desnatado estragado.

Desde que a música entrou na programação os caras receberam uma enxurrada de pedidos de execução dela, de gente curiosa em ouvi-la (até gente de outros estados, onde não pega a rádio, pediu para ouvi-la online, no site da Atlântida), os saudosos de novidades da Bidê e gente nova, que curtiu a música de cara!

Isso é muito massa e inspirador, principalmente por causa do sistema que escolhemos para lançá-la (e consequentemente para lançar todo o nosso novo álbum), aos poucos, em pílulas… primeiro essas músicas ["Tudo é Preza!" foi lançada na internet também] e mais rádios, e ambas estarão em um EP que deve chegar da fábrica em novembro, com 5 faixas…

Daí seguiremos gravando singles e/ou EPs até ter o equivalente a um disco ou algo do gênero, como um box de EPs (que é a origem da ideia)… então ter uma estreia boa, com ótima recepção, é muito inspirador para as coisas que vamos continuar gravando e produzindo!

(um dos índios fala através de Carlinhos, com carregado sotaque de índio): acho preza dizer que a Bidê é a única banda brasileira que tem um vocalista que não assistiu Avatar, nem Nosso Lar – ainda.

Antes de decidir um nome para os discos, a Bidê sempre nomeia os discos como projetos. No novo que estão gravando qual é o projeto?

Chamamos esses projetos de nome provisório do disco, nesse é "Projeto: contar patranhas", no primeiro, no segundo e no terceiro eram, respectivamente, "Projeto: ganância", "Projeto: alienação" e "Projeto: simples".

Não é pura e simplesmente verdade que se possa comparar a crença em deuses com a amizade ou o amor que se sente por pessoas com as quais convivemos realmente todos os dias, e que ao longo da vida nos dão provas de reciprocidade (ou de falta dela).

Ninguém toma o pequeno-almoço com deuses, nem vai ao supermercado com deuses nem os leva à escola de manhã. Chamávamos, lá pelas tantas, esse amontoado de coisas passíveis de se tornar um disco de "Projeto: mistério", pois o mistério é um tema ou elemento que liga muitas das canções, sem querer.

Qual a tua opinião sobre a cena de Porto Alegre. O que tu destaca de legal?

Não sou muito de ir ao teatro, mas (em 2007) gostei muito da versão de “Sonho de uma Noite de Verão” que tem o meu amigo Léo Machado no elenco. É num estilo cabaret, cheio de cantorias, muito bem dirigido e com ótimas atuações (na minha modesta opinião).

Vocês fizeram parte de um momento de explosão das bandas independentes. Passados tantos anos, o que mudou no cenário?

Agora o Internacional é bi-campeão da Libertadores, do mundo e da Recopa. Tríplice coroa. Acho preza esse termo/título, que deve ter sido inventado pelos marqueteiros do colorado mesmo. É também campeão da Sul-Americana, e dia desses ganhou com seu time sub-20, acho, a taça cidade de Santa Maria. Uma tremenda mudança no cenário!

O que você anda ouvindo, Carlinhos?

Janelle Monáe! O EP dela e o The ArchAndroid, que estou considerando um dos melhores discos de 2010!

Vocês ainda são filiados ao anti-movimento Vive Le Flesh Nouveau? Quem está por trás de VLFN?

Só eu continuo no Vive Le Flesh Nouveau! O resto do pessoal da banda saiu por desentender-se com convenções religiosas do coletivo. Ninguém está por trás do Vive Le Flesh Nouveau! A Carne Não Tem Raízes!

VLFN! tem a ver com “terrorismo new wave” e “empirismo pop”, conceitos pop-arrrtivistas formulados em Outubro ou Nada?

nÃO COMPRE aRRRTE, gASTE EM cARRRNE! (um dos índios é mudo).

Quem são seus ídolos do rock do Rio Grande do Sul, Carlinhos?

Plato, Flu, Edu K, Júpiter, Frank Jorge, Wander, Mini, Julio Porto, Zé do Bêlo, Tony da Gatorra, Jorjão, André Arieta, Cristiano Zanella, Lee Martinez, Jesus Buceta, Os Panarotto, Carlo, Birck, Petraquinho, Os Felinos, Pedrão Motora, Luiz Wagner, Rangel de Jaguarão, Campo & Lavoura, Vini Tonello, Liverpool, Pancho da Cara, Diego Medina, Rangel de Verdade, Fernando Rosa, o Agromod, Miranda, Flavinho Carneiro, Biba Meira, King Jim, Dr Love, Patrick, Glauco Caruso, Marcos, Cidade, Claudinho Transportes, Padeiro, Six, 4nazzo, Jimi Joe, Guri Assis Brasil, Jairo William Caveman, Kamika, João Carteiro, Moskito, Sting, Vitória Cuervo, Bolada, Pedrão Hahn, o Franco da Blazz, a dona Ivone Pacheco, Serginho Moah, Nando Endres, Cláudio Cunha, Ferla, Nik, Peninha, Katsy Carmichael, Menchen, Benvenutti, Ildo, Cicuta, Rogério da Toca, Getúlio da Boca, Salim, Rossatto, Liege, Deborah Blank, Suzy Doll, Dani hyde, Terréks, Dani Bolan, Chicão e o coral dos Irmãos Guatemala. (…)

Rivers Cuomo aprovou pessoalmente a versão de Buddy Holly, do primeiro disco? Como foi? Ele curtiu? Conta aí.

Pergunta pro Will, da Wonkavision, porque foi ele que conseguiu a liberação. Ele morava em Los Angeles, disse que ia tentar chegar pra ele na cara dura, mostrar a música e perguntar se ele liberava e dar esse start para liberação junto a editora e tal. Deu certo, o Rivers disse que liberava e deu o caminho das pedras para a liberação.

Na época, ele disse que o cara tinha achado estranho/engraçado ouvir sua própria música em português. Isso é o que mais me marcou. Às vezes me pego pensando na versão islandesa de "Gerson", na turca pra "Mesmo que Mude”, “Me Envergonha” em mandarim…

Na vinda deles ao Brasil, no show em Curitiba, houve um segundo contato massa entre nós e eles: o Sá alugou o seu mini-moog pro Brian Bell tocar, e foi – com a Vivi – no show, acompanhando o sintetizador (viu passagem de som, conheceu os caras, os ensinou seu extraordinário passo de dança "o manobrista Pete Townshend", salvou a Terra e ligou pro Al Gore. Tudo num dia!).

Depois do show eles colocaram no site deles um agradecimento ao Sá, pelo instrumento e por ter salvo o mundo, e falaram da gente. Achei massa.

(o índio com jeito de bicha diz): no Rock in Rio 3 o jorrrnalishta José Flávio Júniorrrr, que era inclusive da Bizz, deu uma cópia do primeiro dishco da Bidê pro Dave Grohl, que comia – ou come ainda, sei lá – aquela mina que tocava no Hole e no Smashing Pumpkinsh que tinha como primeiro nome o mesmo Melissa da música dosh Bidê. Ele mostrou isso pro cara e viu que tinha “Buddy Holly” também. O jorrrnalishta José Flávio Júniorrrr explicou que era a música do Weezer, e o Dave Grohl reshpondeu 'that fuckin' Weezer song???".

Eu achei muito preza que esses dias me disseram o boato que os fãs do Weezer estavam oferecendo 10 milhões de dólares pra eles não mais tocarem e os decepcionarem. Hahaha!]

Rock Sukita é coisa do passado?

Ainda se samba e se sambará. Ainda se beija e se beijará. Ainda se casa e se casará. Ainda se reza e se rezará. Ainda se deita e se deitará, um dia pra sempre. E assim pra sempre será.

Conta como surgiu a história da música "A-Há!"

A letra de 'A-há!' é inspirada num conto do Marcelo Benvenutti, que estava em uma revista que a gente fazia na época da faculdade, no comecinho da banda, a RevistaZE. O texto era sobre uma festa em uma boate portoalegrense, onde do nada faltava luz e havia a aparição de uma entidade/homem com um pau incandescente gritando "eu sou Mickey Rourke".

Além disso, tem muitas passagens do texto na música, além de um tanto de outras coisas que eu mesmo inventei e coloquei na “história”. A título de curiosidade: entre essas coisas incluídas por mim está o nome que cito na primeira estrofe, Renan, que na época veio à música influenciado pela sonoridade do nome do mesmo (por enquanto) senador Renan Calheiros, que tem estado tão em voga nos noticiosos.

E as abelhas?

Pois é, tenho andado muito preocupado com esse lance das abelhas saírem pra polinizar e não voltarem mais para as suas colmeias. Acho isso muito doido!

Carlinhos: quais são as suas 10 canções pop de todos os tempos, se tivesse que montar uma coletânea?

Não sou de listas. Muito menos as que se propõem definitivas. Prefiro imaginar uma coletânea:

"My Sharona" – The Knack
"Sexx laws" – Beck
"Lala love you" – Pixies
"Blinding Sun" – Mudhoney
"Besta é Tu" – Novos Baianos
"Got to Get Into My Life" – Beatles
"Você Não Serve Pra Mim" – Roberto Carlos
"Picture Book" – Kinks
"20th Century Boy" – T-Rex
"Race For the Prize" – Flaming Lips

Mas tinha que ter Clash, Sinatra, Elvis, Jorge Ben, Tim Maia, Erasmo, Lulu Santos, Paralamas, Butthole Surfers, Dinosaur Jr, B52′s, Gang of Four, Titãs, Mutantes, Happy Mondays, Beastie Boys, Beach Boys, Cypress Hill, Rolling Stones, Bob Dylan, Neil Young, Burt Bacharach, Blur, uma pá de coisa… não curto listas…

(a ligação cai e o entrevistador não consegue mais estabelecer contato com Carlinhos).

[ENTREVISTA: Cristiano Bastos/EDIÇÃO: Leonardo Dias Pereira]
Me Deixa Desafinar

Tudo é Preza

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

vIDEOoUbALDE





dESMONTANDO bIDÊ oU bALDE: oUTUBRO oU nADA!

1. Hollywood #52
Junção de loucuras, cheia de referências ao que ouvíamos na época e ao que passava pela nossa cabeça, à casa e ao lugar onde morávamos em São Paulo.
A casa ficava no bairro Brooklin, que tem uma rua chamada Hollywood bem pertinho. Nossa casa era uma "mansão" com quarto nos fundos, onde improvisamos um estúdio que era habitado por cupins.
De minha parte, decreta a morte da "necessidade" de ficar rico e famoso propagandeada na primeira fase da banda.
2. Cores Bonitas
Uma das músicas mais antigas da Bidê, provavelmente das que nasceu no primeiro ensaio. Ela passou por diversas versões antes de chegarmos à versão Breeders.
É assim que à chamávamos antes de surgirem Leonardo Boff e seus arranjos de corda e sopro: aí tudo mudou.
Quando a galera ouvia os arranjos sendo executados pela primeira vez, no estúdio, na hora da gravação, as gurias choraram, nossos queixos caíram e finalmente fez sentido na minha cabeça o lance de adicionar cores à uma canção...
E não havia música mais apropriada para adicionar cores do que uma chamada "Cores Bonitas".
3. Microondas
A base da guitarra, das estrofes, foi a primeira coisa que inventei num violão, quando os guris tentavam me ensinar a tocar "Melissa". Era uma espécie de exercício meu para aprender a trocar direitinho de acordes.
Um dia eles ouviram eu tocando isso no ensaio e resolveram fazer uma música em cima...Eles transformaram aquela minha brincadeira numa das músicas mais preza da Bidê! Virou outra coisa. Tanto que eles nem tocam a música do jeito que eu tocava.
Já trocaram os acordes há tempos! (hahaha) No começo, na letra, só existia aquela parte falada, meio rap, do final da música. Depois, de uma piada interna minha e da Katia, de chamar o lance de reencontrar alguém que já tinha ficado ou namorado de microondas, veio a letra principal.
31/2. Ímpares Fantásticos
Intrumental embutida no final de "Microondas" que nasceu da batidinha do Casio SK-5 da Katia, provavelmente. Tem o barulhinho de um projetor de cinema no fundo, imitando a primeira faixa do "Clouds Taste Mettalic" dos Flaming Lips.
Foi umas das primeiras a ter participação afú do Pilla, que tinha recém entrado na banda quando começamos a ensaiar e gravar o disco.
Como todas as outras instrumentais, não foi mixada: seus volumes foram apenas levantados e mandados pra masterização - e isso foi umas das coisas loucas do disco e que eu acho mais massa!
4. Bromélias
Nasceu na sala da casa de São Paulo, com o Sá e o André tocando sonzinhos com violão e teclado sentados no chão. É sobre saudade, só podia ser - era o assunto que mais tínhamos condições de falar na época.
Inventamos um milhão de versos sobre saudade, partida e "casa", mas ficaram os da histórinha que está na música.
O papo "bromélias" do verso sobre a mãe que tem bromélias penduradas nela, veio de uma 'paródia' que tínhamos feito da música "Patê" da Graforréia, e resolvemos incluir (e, depois, dar título à canção).
É filha direta do surgimento da onda Strokes em 2001, logo após a Clarah Averbuck ter pintado lá em casa numa das nossas festas com umas demos deles e eu ter ido à galeria do rock atrás daquele mesmo Cd.
5. Adoro Quando Chove
Essa nasceu de uma frase que larguei num dia que uma mulher linda demais entrou na Lancheria do Parque: adoro quando as gostosas vêm ao bar!
Depois, foi só ouvir o riff que o Sá fez num ensaio e encaixá-la de alguma forma (e descambar pro romantismo total quase ingênuo que era o momento que eu estava vivendo).
Tem a estrutura que mais nos divertimos e suamos fazendo no estúdio improvisado de São Paulo.
51/2. Pobre Johnny Thunders
Essa também nasceu d'eu brincando de aprender a tocar um instrumento, dessa vez o baixo. Eu tava brincando com essa idéia de surf no baixo, os guris gostaram e resolveram trabalhar em cima dela.
Acho tri massa que a música mais minha da Bidê seja uma instrumental. Mas, claro, o arranjo que a banda fez, as notas certas que os guris incluíram e o baixo tocado direito que o André gravou foram o que fizeram a música ser "discável" e ter aquele som legal.
Tudo isso e, claro, a chuva gravada em estéreo por nós e pelo Thomas Dreher, no estúdio.
6. A-há!
Gravada na época do nosso primeiro disco, com o Caveira na batera, mas não conseguimos mixar a tempo de entrar no disco. Foi uma das últimas músicas a ser arranjada para o primeiro. Viajo que isso a aproxima mais do "Outubro ou Nada!".
A entendemos como espécie de música de abertura de um provável "lado b" do disco, onde estariam canções como ela e "Matelassê", mais antigas (que já tinham sido gravadas antes) e as "doidêras" do álbum.
7 . Matelassê
"Matelassê" foi criada por encomenda para a Revista da Atlântida. O então editor da revista, Eduardo Nasi, me ligou um dia e pediu que eu escrevesse uma letra sobre óculos escuros, para um editorial de moda da revista.
O fiz ao meu modo, fugindo e bastante do tema, e com uma melodia na cabeça. Daí um dia cantarolei essa melodia pro Sá, que tirou seus acordes e compôs a música comigo (nossa primeira parceria).
Mais tarde, quando a mesma Revista da Atlântida nos convidou para sermos a matéria de capa de uma edição, e também o disco que vinha encartado, não titubeamos em nos pilharmos a gravar a música que tinha sido inventada pra eles e incluí-la no tal disco (o Ep Para Onde Voam os Ventiladores de Teto no Inverno?).
Mas, ao contrário de "A-há", foi regravada pra entrar em Outubro com pequenas diferenças, mas um som mais potente e a banda mais acostumada a tocá-la.
8. Dulci
Descaradamente, "Dulci" nasceu de uma espécie de versão Pavement pra "Lucy in the Sky With Diamonds", com letra totalmente baseada na fonética das palavras da letra beatle em cima da melodia torta que inventamos pra ela.
Praticamente todo mundo deu idéias pra letra, que acabou de ser escrita minutos antes de ser gravada, principalmente a Katia e o Pedro - mas teve até participação do Thomas Dreher (que sugeriu o "vermelho canalha", do rosto envergonhado da Dulci: referência aos jargões do nosso ídolo Plato Divorak).
A homenageada que dá nome à música era a Dulci Pereira, divulgadora da Antídoto (selo que lançou o disco) na época, mas as referências são mil e quinhentas, desde filmes adolescentes dos anos 80 às óbvias lisergias.
9. O Antipático
Letra e melodia, quase inteiras, nasceram numa ressaca duma festa do canal Multishow e são bem sobre o fim da nossa relação com o empresário Manoel Poladian e o ex-guitarrista Rafael Rossatto (por mais que a imagem d'o antipático' talvez seja uma coisa bem do Rossatto que, logo que havíamos nos mudado pra São Paulo cunhou a frase – que um dia ainda virou: "eu não vim a São Paulo pra fazer amigos!").
Eu viajava que ela era um encontro do Ozzy com o Roberto Carlos. A letra se encaixa com o tema de "Hollywood #52", pelo menos na minha cabeça – o que dá ao disco um teto de quase-unidade (o que se reforça com a emenda que foi dada entre ela e "Soninho").
10. Soninho
Outra das antigas, essa valsinha também passou por várias versões, umas mais guitarreiras que outras, e acabou encontrando nessa loucura Duprat do arranjo que o Boff fez sua versão tão definitiva. Essa nós tocamos ao vivo muito poucas vezes depois que o disco saiu.
Outra novidade é a Vivi e a Katia fazendo as vozes principais. O arranjo tem uma esquisitice que eu adoro (tanto os de cordas e sopros quanto o da banda e das vozes).
11. Aeroporto
Mistura de Weezer com "Cut your Hair" do Pavement, duas referências óbvias da primeira fase da banda. Essa foi uma das primeiras a ser composta após a fase do primeiro disco, quando ainda tinha o Rossatto na banda e antes de irmos pra São Paulo.
Sobre a letra, já pensei tantas coisas, que nem sei mais no que estava pensando quando a escrevi. Só sei que é sobre amor, amor em aeroporto, gostos diferentes.
11 ½. My Name is Going
Esse tetinho das faixas instrumentais, tem gravações de vários momentos colados na masterização.
Começa com uma gravação em K-7 direto da sala da nossa casa em São Paulo, com o André e o Sá pirando com os instrumentos. Daí entra todo mundo gritando "My Name is Going" - um dos tantos bordões do Pedro, que significa algo tipo "já tô indo".
Então entra o Thomas dando a ordem de "gravando" pra dar Rec na fita e a banda inteira tocando aquilo que havia sido criado pelo Sá e pelo André em São Paulo.
Por cima ainda foi incluído um irritante barulho de pedal wah-wah ligado invertido pelo Pilla, sem querer. O mais legal é o final: a fita de duas polegadas acabou no meio e foi gravado o barulho dela acabando: a música não termina e o teto é preto.
12. O Que Eu Não Vejo Não Existe
Manchesterismo sobre ciúme e infidelidade totalmente criado em São Paulo, falando sobre a insegurança de estarmos vivendo longe das nossas pessoas.
Apesar do título dar um tom de corno-mansismo pra música, a frase representa a atitude que mais repudiávamos na época: o lance de ignorar o desconhecido e reagir apenas com desconfiança, por mais que, talvez, infundada.
O mais legal da gravação, pra mim, foi o baixo com efeito dum pedal muito louco do André e o arranjo de vozes no final da música.
13. Não Adianta Chorar
Essa é pura emoção, né... Descarga dos nossos sentimentos e dúvidas na época - ctrl+alt+foda-se no que quer que estivesse nos afligindo.
Estávamos felizes de ter escolhido fazer a coisa certa: um disco, um disco bem do jeito que queríamos, do qual estávamos orgulhosos.
E tem o sax do Rodrigo Siervo solando com a galera naquele final emocionado. Tudo de massa!
14. Cores Bonitas
Era só uma versão acústica de "Cores Bonitas" e acabou virando outra coisa. Talvez seja a minha gravação preferida da Bidê, até por ter se transformado tanto no resultado final.
Palmas pro Leonardo Boff, um dos principais responsáveis pelo caráter especial que o disco ganhou em nossas vidas.
E vem um monte de efeitos, e acaba o disco - e entra uma versão ao vivo (gravada em estúdio) de "Hollywood #52", ali colocada especialmente praqueles aparelhos de som que, após o fim do álbum, o repetem (assim, o final e o início de Outubro ou Nada! se uniriam - sem fim).

terça-feira, 19 de outubro de 2010

o cORAÇÃO dELATOR*

EDGAR ALLAN POE

É verdade! Nervoso, muito, muito nervoso mesmo eu estive e estou; mas por que você vai dizer que estou louco? A doença exacerbou meus sentidos, não os destruiu, não os embotou. Mais que os outros estava aguçado o sentido da audição.

Ouvi todas as coisas no céu e na terra. Ouvi muitas coisas no inferno. Como então posso estar louco? Preste atenção! E observe com que sanidade, com que calma, posso lhe contar toda a história.

É impossível saber como a idéia penetrou pela primeira vez no meu cérebro, mas, uma vez concebida, ela me atormentou dia e noite. Objetivo não havia. Paixão não havia. Eu gostava do velho. Ele nunca me fez mal.

Ele nunca me insultou. Seu ouro eu não desejava. Acho que era seu olho! É, era isso!

Um de seus olhos parecia o de um abutre - um olho azul claro coberto por um véu. Sempre que caía sobre mim o meu sangue gelava, e então pouco a pouco, bem devagar, tomei a decisão de tirar a vida do velho, e com isso me livrar do olho, para sempre.

Agora esse é o ponto. O senhor acha que sou louco. Homens loucos de nada sabem. Mas deveria ter-me visto. Deveria ter visto com que sensatez eu agi — com que precaução —, com que prudência, com que dissimulação, pus mãos à obra!

Nunca fui tão gentil com o velho como durante toda a semana antes de matá-lo. E todas as noites, por volta de meia-noite, eu girava o trinco da sua porta e a abria, ah, com tanta delicadeza!

E então, quando tinha conseguido uma abertura suficiente para minha cabeça, punha lá dentro uma lanterna furta-fogo bem fechada, fechada para que nenhuma luz brilhasse, e então eu passava a cabeça. Ah! o senhor teria rido se visse com que habilidade eu a passava.

Eu a movia devagar, muito, muito devagar, para não perturbar o sono do velho. Levava uma hora para passar a cabeça toda pela abertura, o mais à frente possível, para que pudesse vê-lo deitado em sua cama. Aha! Teria um louco sido assim tão esperto?

E então, quando minha cabeça estava bem dentro do quarto, eu abria a lanterna com cuidado — ah!, com tanto cuidado! —, com cuidado (porque a dobradiça rangia), eu a abria só o suficiente para que um raiozinho fino de luz caísse sobre o olho do abutre.

E fiz isso por sete longas noites, todas as noites à meia-noite em ponto, mas eu sempre encontrava o olho fechado, e então era impossível fazer o trabalho, porque não era o velho que me exasperava, e sim seu Olho Maligno.

E todas as manhãs, quando o dia raiava, eu entrava corajosamente no quarto e falava Com ele cheio de coragem, chamando-o pelo nome em tom cordial e perguntando como tinha passado a noite.

Então, o senhor vê que ele teria que ter sido, na verdade, um velho muito astuto, para suspeitar que todas as noites, à meia-noite em ponto, eu o observava enquanto dormia.

Na oitava noite, eu tomei um cuidado ainda maior ao abrir a porta. O ponteiro de minutos de um relógio se move mais depressa do que então a minha mão. Nunca antes daquela noite eu sentira a extensão de meus próprios poderes, de minha sagacidade.

Eu mal conseguia conter meu sentimento de triunfo. Pensar que lá estava eu, abrindo pouco a pouco a porta, e ele sequer suspeitava de meus atos ou pensamentos secretos.

Cheguei a rir com essa idéia, e ele talvez tenha ouvido, porque de repente se mexeu na cama como num sobressalto. Agora o senhor pode pensar que eu recuei — mas não.

Seu quarto estava preto como breu com aquela escuridão espessa (porque as venezianas estavam bem fechadas, de medo de ladrões) e então eu soube que ele não poderia ver a porta sendo aberta e continuei a empurrá-la mais, e mais.

Minha cabeça estava dentro e eu quase abrindo a lanterna quando meu polegar deslizou sobre a lingüeta de metal e o velho deu um pulo na cama, gritando:

— Quem está aí?

Fiquei imóvel e em silêncio. Por uma hora inteira não movi um músculo, e durante esse tempo não o ouvi se deitar. Ele continuava sentado na cama, ouvindo bem como eu havia feito noite após noite prestando atenção aos relógios fúnebres na parede.

Nesse instante, ouvi um leve gemido, e eu soube que era o gemido do terror mortal. Não era um gemido de dor ou de tristeza — ah, não! era o som fraco e abafado que sobe do fundo da alma quando sobrecarregada de terror. Eu conhecia bem aquele som.

Muitas noites, à meia-noite em ponto, ele brotara de meu próprio peito, aprofundando, com seu eco pavoroso, os terrores que me perturbavam. Digo que os conhecia bem. Eu sabia o que sentia o velho e me apiedava dele embora risse por dentro.

Eu sabia que ele estivera desperto, desde o primeiro barulhinho, quando se virara na cama. Seus medos foram desde então crescendo dentro dele. Ele estivera tentando fazer de conta que eram infundados, mas não conseguira.

Dissera consigo mesmo: "Isto não passa do vento na chaminé; é apenas um camundongo andando pelo chão", ou "É só um grilo cricrilando um pouco". É, ele estivera tentando confortar-se com tais suposições; mas descobrira ser tudo em vão.

Tudo em vão, porque a Morte ao se aproximar o atacara de frente com sua sombra negra e com ela envolvera a vítima. E a fúnebre influência da despercebida sombra fizera com que sentisse, ainda que não visse ou ouvisse, sentisse a presença da minha cabeça dentro do quarto.

Quando já havia esperado por muito tempo e com muita paciência sem ouvi-lo se deitar, decidi abrir uma fenda — uma fenda muito, muito pequena na lanterna. Então eu a abri — o senhor não pode imaginar com que gestos furtivos, tão furtivos — até que afinal um único raio pálido como o fio da aranha brotou da fenda e caiu sobre o olho do abutre.

Ele estava aberto, muito, muito aberto, e fui ficando furioso enquanto o fitava. Eu o vi com perfeita clareza - todo de um azul fosco e coberto por um véu medonho que enregelou até a medula dos meus ossos, mas era tudo o que eu podia ver do rosto ou do corpo do velho, pois dirigira o raio, como por instinto, exatamente para o ponto maldito.

E agora, eu não lhe disse que aquilo que o senhor tomou por loucura não passava de hiperagudeza dos sentidos? Agora, repito, chegou a meus ouvidos um ruído baixo, surdo e rápido, algo como faz um relógio quando envolto em algodão.

Eu também conhecia bem aquele som. Eram as batidas do coração do velho. Aquilo aumentou a minha fúria, como o bater do tambor instiga a coragem do soldado.

Mas mesmo então eu me contive e continuei imóvel. Quase não respirava. Segurava imóvel a lanterna. Tentei ao máximo possível manter o raio sobre o olho. Enquanto isso, aumentava o diabólico tamborilar do coração. Ficava a cada instante mais e mais rápido, mais e mais alto.

O terror do velho deve ter sido extremo. Ficava mais alto, estou dizendo, mais alto a cada instante! — está me entendendo? Eu lhe disse que estou nervoso: estou mesmo.

E agora, altas horas da noite, em meio ao silêncio pavoroso dessa casa velha, um ruído tão estranho quanto esse me levou ao terror incontrolável. Ainda assim por mais alguns minutos me contive e continuei imóvel.

Mas as batidas ficaram mais altas, mais altas! Achei que o coração iria explodir.

E agora uma nova ansiedade tomava conta de mim — o som seria ouvido por um vizinho! Chegara a hora do velho! Com um berro, abri por completo a lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele deu um grito agudo — um só.

Num instante, arrastei-o para o chão e derrubei sobre ele a cama pesada. Então sorri contente, ao ver meu ato tão adiantado. Mas por muitos minutos o coração bateu com um som amortecido. Aquilo, entretanto, não me exasperou; não seria ouvido através da parede. Por fim, cessou.

O velho estava morto. Afastei a cama e examinei o cadáver. É, estava morto, bem morto. Pus a mão sobre seu coração e a mantive ali por muitos minutos. Não havia pulsação. Ele estava bem morto. Seu olho não me perturbaria mais.

Se ainda me acha louco, não mais pensará assim quando eu descrever as sensatas precauções que tomei para ocultar o corpo. A noite avançava, e trabalhei depressa, mas em silêncio. Antes de tudo desmembrei o cadáver. Separei a cabeça, os braços e as pernas.

Arranquei três tábuas do assoalho do quarto e depositei tudo entre as vigas. Recoloquei então as pranchas com tanta habilidade e astúcia que nenhum olho humano — nem mesmo o dele — poderia detectar algo de errado. Nada havia a ser lavado — nenhuma mancha de qualquer tipo — nenhuma marca de sangue.

Eu fora muito cauteloso. Uma tina absorvera tudo - ha! ha!

Quando terminei todo aquele trabalho, eram quatro horas — ainda tão escuro quanto à meia-noite.

Quando o sino deu as horas, houve uma batida à porta da rua. Desci para abrir com o coração leve — pois o que tinha agora a temer? Entraram três homens, que se apresentaram, com perfeita suavidade, como oficiais de polícia.

Um grito fora ouvido por um vizinho durante a noite; suspeitas de traição haviam sido levantadas; uma queixa fora apresentada à delegacia e eles (os policiais) haviam sido encarregados de examinar o local.

Sorri — pois o que tinha a temer? Dei as boas-vindas aos senhores. O grito, disse, fora meu, num sonho. O velho, mencionei, estava fora, no campo. Acompanhei minhas visitas por toda a casa. Incentivei-os a procurar — procurar bem. Levei-os, por fim, ao quarto dele.

Mostrei-lhes seus tesouros, seguro, imperturbável.

No entusiasmo de minha confiança, levei cadeiras para o quarto e convidei-os para ali descansarem de seus afazeres, enquanto eu mesmo, na louca audácia de um triunfo perfeito, instalei minha própria cadeira exatamente no ponto sob o qual repousava o cadáver da vítima.

Os oficiais estavam satisfeitos. Meus modos os haviam convencido. Eu estava bastante à vontade. Sentaram-se e, enquanto eu respondia animado, falaram de coisas familiares. Mas, pouco depois, senti que empalidecia e desejei que se fossem.

Minha cabeça doía e me parecia sentir um zumbido nos ouvidos; mas eles continuavam sentados e continuavam a falar. O zumbido ficou mais claro — continuava e ficava mais claro: falei com mais vivacidade para me livrar da sensação: mas ela continuou e se instalou — até que, afinal, descobri que o barulho não estava dentro de meus ouvidos.

Sem dúvida agora fiquei muito pálido; mas falei com mais fluência, e em voz mais alta. Mas o som crescia - e o que eu podia fazer? Era um som baixo, surdo, rápido — muito parecido com o som que faz um relógio quando envolto em algodão.

Arfei em busca de ar, e os policiais ainda não o ouviam. Falei mais depressa, com mais intensidade, mas o barulho continuava a crescer. Levantei-me e discuti sobre ninharias, num tom alto e gesticulando com ênfase; mas o barulho continuava a crescer.

Por que eles não podiam ir embora? Andei de um lado para outro a passos largos e pesados, como se me enfurecessem as observações dos homens, mas o barulho continuava a crescer. Ai meu Deus! O que eu poderia fazer? Espumei — vociferei — xinguei!

Sacudi a cadeira na qual estivera sentado e arrastei-a pelas tábuas, mas o barulho abafava tudo e continuava a crescer. Ficou mais alto — mais alto — mais alto! E os homens ainda conversavam animadamente, e sorriam.

Seria possível que não ouvissem? Deus Todo-Poderoso! — não, não? Eles ouviam! — eles suspeitavam! — eles sabiam! - Eles estavam zombando do meu horror! — Assim pensei e assim penso. Mas qualquer coisa seria melhor do que essa agonia!

Qualquer coisa seria mais tolerável do que esse escárnio. Eu não poderia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Senti que precisava gritar ou morrer! — e agora — de novo — ouça! mais alto! mais alto! mais alto! mais alto!

— Miseráveis! — berrei — Não disfarcem mais! Admito o que fiz! levantem as pranchas! — aqui, aqui! — são as batidas do horrendo coração!

*Mestre.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

fAZENDO mÚSICA, jOGANDO bOLA

"Aos meus olhos bola, rua, campo/
e sigo jogando porque eu sei o que
sofro/ e me rebolo para continuar
menino/ como a rua que continua
uma pelada"

POR CRISTIANO BASTOS/ESPN

Vivendo no maior estilo bicho-grilo os Novos Baianos não faziam apenas música em sua comunidade. No auge do sucesso, criaram um time e um disco intitulado Novos Baianos F.C. Entre os adversários no babá, o Botafogo dos anos 70

O ANO É 1973. AUGE DA DITADURA MILITAR. Irmanados em Jacarépaguá, zona oeste do Rio de Janeiro, os Novos Baianos desfrutam renome, popularidade e simpatia desembestados pelo sucesso pop-tropical que Acabou Chorare faz em todo Brasil.
Gravado um ano antes, o álbum é tido como uma das sublimes obras-primas da MPB. Seu sucessor, Novos Baianos Futebol Clube, é o mais próximo que a música chegou do esporte.No campo, a esquadra baiana era formada por Moraes Moreira, Pepeu Gomes e seu irmão jorginho, Paulinho Boca de Cantor, Luiz Galvão, Baixinho, Charles Negrita, Dadi e Bola.
O plantel ainda contava vez ou outra com a escalação luxuosa de alguns craques do profi ssional. Dentre os quais, lendas do Botafogo como Nei Conceição, Afonsinho e Jairzinho. A sede do clube fi cava no sítio Cantinho do Vovô, localizado na Boca da Mata, onde a trupe também ensaiava e vivia em sistema comunitário.
No geral, entre titulares, agregados e reservas, a família Novos Baianos somava uns 20 "jogadores".
As partidas de futebol, chamadas pela gíria baiana de "bába", eram disputadas religiosamente todos os dias. "Jogávamos como se fosse Copa do Mundo", conta o dançarino Gato Felix, que também era espécie de produtor da banda.
Eventualmente, uma constelação de artistas como Fagner e Paulinho da Viola também abrilhantava as disputas. "Outros iam lá especialmente por causa da música: caso de Caetano Veloso e de Gilberto Gil", recorda Luiz Galvão, um dos Baianos.
À disposição da turma havia dois campos de futebol. O pequeno, do tamanho de uma quadra de futsal, fi cava na entrada da chácara, e o maior, com as dimensões da Fifa, pertencia ao Guanabara Esporte Clube de Jacarepaguá, mas, com um jeitinho, estava sempre aberto.
"Gozávamos das graças da diretoria. Ficamos amigos do Arnaldo, o presidente do Guanabara na época”. Seja no som ou no futebol, era difícil bater os Novos Baianos em seu quintal. O maior rival do time era um combinado de Ipanema, que contava com um anônimo Evandro Mesquita.
Entretanto, pedreira mesmo era enfrentar o escrete do clube vizinho.
"Houve uma vez em que a gente estava perdendo de 1 a 0 para o Guanabara. O Jairzinho, que estava em litígio com o Botafogo, atuou pelo nosso time. Quando ele resolveu jogar viramos o placar para 4 a 1. Foi goleada fácil".
NO AUGE DO SUCESSO, pintou a ideia (audaciosa para os anos 1970) de conjugar futebol com música numa receita "tipo exportação". A banda pretendia unir-se a Pelé, que na época vestia a camisa do New York Cosmos, na cruzada de difundir o impopular esporte nos Estados Unidos.

Segundo conta Galvão, eles tinham o plano de fazer 15 apresentações em cima de um trio elétrico no intervalo dos jogos do time do Rei. Porém, como naqueles tempos qualquer projeto era difícil de se realizar, os Novos Baianos não levantaram voo.

"Era muita conversa e pouca realidade", pondera o rubro-negro Moraes Moreira, o primeiro cantor de trio elétrico.

Em 1973, a inovadora música e o amor que guardavam pelo futebol capturou a atenção de Solano Ribeiro, diretor de vários documentários sobre música brasileira destinados à TV alemã, que resolveu rodar o musical, hoje cult-movie, Novos Baianos F.C., cuja realização foi premiada no Festival Europeu de Televisão, na Áustria.

"Eles diziam-se melhores jogadores de futebol do que músicos, o que era um absurdo", diverte-se o diretor. Novos Baianos F.C., o documentário, é pura música e futebol. Arquitetado por Solano e Galvão, o roteiro é quase uma narração.

Inicia assim: "Não é uma família, talvez um time: Novos Baianos Futebol Clube". E, lá pelas tantas, esquenta a partida: "Jogo duro não é pelada, como se pensa. O bom é não ir de peito porque o adversário também sabe driblar. O adversário é a vida e a vida é adversa, como fazia Garrincha ao ver o adversário a sua frente. A dos Novos Baianos é o drible, é o passe, o chute e a cabeça".

Com frequência, o compositor Paulinho da Viola visitava o Cantinho do Vovô para jogar, fazer som e também ouvir os Novos Baianos.

"Ele nos curtia porque gostávamos de chorinho e o Jorginho, irmão de Pepeu, era fera no cavaquinho. Paulinho o admirava, mas a juventude da época não estava interessada em choro", lembra Negrita. O futebol começava religiosamente às 15 horas e ia até às 17 horas, quando a banda A Cor do Som, que acompanhava o grupo, dava os primeiros acordes.

"Jogávamos futebol e depois tocávamos mais um pouco. Os Novos Baianos faziam música jogando futebol", define ele.

MARGINALIZADO NO BOTAFOGO, Afonsinho, que na ocasião era pioneiro na luta pelo passe livre, lembra nitidamente ter assistido aos jogos da Copa de 1974 no Sítio do Vovô. "A vida era muito intensa. Os músicos eram apaixonados por futebol e nós, jogadores, éramos apaixonados por música". Ele recorda de ter feito companhia a Paulinho da Viola no dia em que o sambista levou os Novos Baianos à Portela: "A atitude de Paulinho foi muito avançada. Eram dias em que 'roqueiro' não se misturava com 'sambista'".

O baixista Dadi, que tinha 19 anos na época, conta que embora não tivessem ido para os Estados Unidos, os Novos Baianos jogavam bola praticamente em todos os lugares onde faziam shows. Botafoguense desde pequeno, Dadi saía nas fotos de seu time do coração – do qual era uma espécie de "mascote". No time dos Novos Baianos, porém, ficava sempre na reserva.

"Eles não me escalavam! Eram todos uns fominhas", entrega o baixista quase 40 anos depois. Foi então que Dadi resolveu formar um time rival com alguns amigos cariocas. "A gente sempre ganhava deles. Vão dizer que não, mas sempre vencíamos". O nome do time era o mais sugestível possível: Passa Bola Meu Bem.

Enquanto na música a divisão era perfeita, no futebol, entrega Dadi, a panelinha era comandada pelos experientes Galvão (o "treinador", que, segundo Dadi, jogava um futebol "filosófico") e Moraes Moreira. Um dos episódios de que mais se orgulha foi ter jogado em seu time de coração "por dez minutos", ainda que não tenha conseguido nem ao menos tocar na bola.

Em 1973, o Botafogo contava com jogadores como Marinho Chagas, Nilson Dias, Edmilson e Ubirajara e, certa vez, foi jogar contra o Novos Baianos F.C. no campo do Guanabara. O Botafogo estava ganhando de 10 a 0. No fi nalzinho da partida, o lateral alvinegro olhou Dadi – para variar, no banco de reservas – e gritou: "Entra no meu lugar".

"Joguei dez minutos no Botafogo! Só que não vi a bola passar por mim, ela passava zunindo".

Filho do Poetinha Vinicius de Moraes, o fotógrafo Pedro de Moraes foi outro "amigo de loucuras" dos Novos Baianos. Em 1973 a amizade rendeu um curta-metragem: A Gente é Isso. Trata-se de um dos mais importantes documentos sobre a banda. Foi Pedro, aliás, quem fez a capa de Novos Baianos F.C.

"Ele madrugou uns três dias para fotografar uma pomba no ninho só para conseguir uma linda foto para o encarte do disco", rememora Galvão. "Felizes tardes lisérgicas", diz o fotógrafo. "Tudo era amor e luz. Mas, toda semana ‘dançava’ um baiano com a polícia. Nessa hora, para amenizar, rolava muito som, rango, irreverências, sexo, futebol e planos para o futuro".

Certas vezes, nem a música batia a fome de bola. No auge do sucesso de "Preta Pretinha", primeiro lugar nas paradas de todo País, recusaram um show ao lado de Michael Jackson... Motivo: futebol. A banda, que na época botava milhares de fãs em seus shows, estava a bater um bába no Sítio do Vovô quando chegou por lá Gilda Horta, empresária do grupo.

Ela vinha acompanhada, recorda Galvão, do empresário do Jackson Five.

"Tivemos de parar o jogo só para atendê-los. Gilda traduziu pra gente as palavras do empresário norte-americano: 'Eu pago tanto para os Novos Baianos abrirem o show do Jackson Five'. A quantia era considerável. Mas a gente só queria saber de bola. Acredite se quiser, rejeitamos a proposta dele, agradecemos o convite e o empresário voltou perplexo. Enquanto isso, nós retornamos ao futebol".

TABELINHA PERFEITA

“Esses onze aí/ Esses onze aí/
Vem do jogo de rua/ Da bola de
meia/ É anos e anos de futebol/
correndo na veia”
Reis da Bola

“Só entro no jogo porque/ Estou
mesmo depois/ Depois de esgotar/
O tempo regulamentar”
Menina Dança

“Na hora H narrou/ Tirando uma
de locutor/ Lá vai seu Ovário pela
direita/ Passou por um, por dois/
Penetrou até marcar/ Vai meter/
Meteu gol-ô-zou gozou/ Mas a
camisinha furou/ Seu Ovário
marcou gol contra”
A Mídia

“Assim ó/ o pique se/ explica no gol/
RRRRoberto/ RRRRoberto/ que
garoto/ dinamite/ nasceu no/ RRRRio”
Ao Poeta

“Quem é o campeão dos campeões?
É o Bahia!/ Quem é que carrega a
multidão? É o Bahia!/ Quem é que
tranqüiliza os corações? É o Bahia!/
Time de raça e tradições, Bahia
campeão dos campeões”
Campeão dos Campeões

“Esse ano,/ esse jogo,/ esse
carnaval/ não vai ser fácil!/ Você
no chute,/ você é a bola!/ No gol
você se rebola!/ Eu sou o ataque,/
você a defesa,/ o prato e a mesa”
O Prato e a Mesa

“Aos meus olhos bola, rua, campo/
e sigo jogando porque eu sei o que
sofro/ e me rebolo para continuar
menino/ como a rua que continua
uma pelada”
Só Se Não For Brasileiro Nessa Hora

“Agarra, pega, puxa, estica e larga/
Como no futebol/ Agarra, pega, puxa,
estica e larga/ Como no futebol”
Ziriguidum 

domingo, 3 de outubro de 2010

lUPICÍNIO: "dOR dE cOTOVELO é uM bARATO!"*

SAÍMOS COM LUPICÍNIO Rodrigues do Teatro Opinião, depois de sua apresentação diante de um delirante auditório de jovens, que nunca tinha visto o grande compositor cara a cara. Júlia Steinbruck nos convidou para fazermos a entrevista na casa dela, e fomos para lá, num grupo de umas 20 pessoas.

Pelos cantos do salão, vários grupos tocavam violão e batucavam. Gilson Menezes, do O Estado de São Paulo, também participou da entrevista. A uma certa altura, apareceu Sérgio Bittencourt, com a maior cara de pau, e disse:

"Vocês deixam eu perguntar uma coisa pro Lupicínio?" Que fazer? Não se podia engrossar na casa da dona Júlia. É claro que a entrevista teve várias pausas - para beber, para ouvir o maior cantor brasileiro - Jamelão -, para tirar fotografias, para ouvir mil caras tocando violão, e para beber de novo.

Lá pelas 4h5min. da manhã, Lupicínio resolveu tomar umas cervejas no Grego, do seu amigo Scoulis. E lá fomos, já meio claudicantes, mas decididos: Lupi, Gessé - seu acompanhante - Jamelão, Aibino Pinheiro e seu fiel Douglas, uma negra linda - Zélia - e eu.

Ás 9h30min. da manhã, na calçada do seu restaurante, Scoulis nos brindou - e aos passantes que olhavam perplexos aquele bando de boêmios, que terminavam a noitada àquela hora de uma terça-feira - com alguns passos de dança, enquanto, para nosso pasmo e encantamento Lupicínio cantava em grego. (Jaguar)

O PASQUIM - É verdade que você é o primeiro de 21 filhos?

LUPICÍNIO RODRIGUES - Nilo, eu sou o quarto de 21 filhos. Primeiro minha mãe teve três filhas mulheres, e o meu pai havia prometido que, se o quarto nascesse mulher, ele iria enforcar. Por felicidade, nasci eu, e ele não me enforcou. Por ser o primeiro filho homem, me criei como a criança mais mimada da família.

O PASQUIM - Você é um dos maiores compositores populares brasileiros. Mas sempre viveu no Rio Grande do Sul?

LUPICÍNIO - Graças a meu bom Deus sempre vivi no Rio Grande do Sul. Tive a felicidade de ficar conhecido universalmente, e agradeço isso aos marinheiros que visitavam a minha terra naquela época, quando não havia transporte para lá, a não ser o marítimo. Os marinheiros chegavam em Porto Alegre, aprendiam minhas músicas e saíam a divulgar pelo Brasil.

O PASQUIM - Aqui ao lado está o melhor intérprete do Lupiscínio, aquele intérprete que mais se identifica com o Lupiscínio, e que trouxe para o Rio de Janeiro o samba gaúcho. O nome dele é José Bispo, o Jamelão. Quem também está aqui do nosso lado é Júlia Steinbruck, ex-deputada federal, e mulher interessada em música popular brasileira. Mas quem leva o papo agora com Lupiscínio Rodrigues é o nosso amigo Jamelão.


JAMELÃO - Para eu fazer perguntas ao Lupicínio é uma questão de rotina porque eu estou sempre em contato com ele. Eu perguntaria: como vai o Batelão, Lupicínio?


LUPICÍNIO - O Batelão continua sendo a melhor casa de samba do Rio Grande do Sul. E com muitas saudades tua, que fizeste aquela temporada no Batelão, deixando aquela saudade; e esperando que voltes para lá pra ver se terminas, Jamelão. Desaparecestes de uma hora pra outra, não te despediste de ninguém.


O PASQUIM - Explica para o carioca o que é o Batelão. É um bar de tua propriedade há quantos anos?


LUPICÍNIO - O Batelão é bem um bar, é um restaurante que tem música. A turma vai lá pra jantar, e jantam cantando samba. É quase o tipo do Teatro Opinião; só que como restaurante, a luz tem que ser mais clara e o samba começa às oito horas da noite e vai até as seis horas da manhã. O Jamelão nos deu a honra de sua presença nesta temporada que esteve em Porto Alegre com o Sargentelli.


O PASQUIM - Você talvez seja um compositor conhecido no Brasil inteiro, que conseguiu fazer sucesso com a idade mínima. Aos 12 anos já fazia composição para os blocos carnavalescos de sua cidade. Como é que foi essa iniciação musical no Rio Grande do Sul? Você nasceu em 16 de setembro de 1914.


LUPICÍNIO - O que acontece é que na época em que eu comecei a fazer música no Rio Grande do Sul, começava a rádio no Brasil. Eu nunca fíz música com a finalidade de ganhar dinheiro. Eu nunca pensei que eu pudesse gravar uma música.


O PASQUIM - Mas aos 12 anos?


LUPICÍNIO - Eu fazia de brinquedo, como faço até hoje. Não faço música pra ganhar dinheiro nem música para gravar.


O PASQUIM - Você vive de música ou tem outra atividade da qual você vive?


LUPICÍNIO - Eu sou o procurador do Serviço de Defesa do Direito Autoral. Sou representante da SBACEM, sou funcionário público. Tem uma porção de outras coisas.


O PASQUIM - E cozinheiro também.


LUPICÍNIO - Sou cozinheiro. Tenho um restaurante, e tem o bar. Eu faço música pra divertir, não faço profissão da música.


O PASQUIM - Qual é a sua espedade em matéria de culinária? Qual é a sua grande atração, o carro-chefe?


LUPICÍNIO - Comida popular. Essa comida de todo dia. Porque eu não sou cozinheiro de dizer que eu faço comidas difíceis, grandes pratos. Mas essa comida popular, essa comida de todo dia, eu acho que faço bem. Eu acho que cozinho melhor do que componho, do que canto.


LUPICÍNIO - O PASQUIM - Você se sente bem tendo como troféu de honra - a coisa que representa mais a sua música popular - a dor de cotovelo? Para fazer tantas músicas de dor de cotovelo, você teve quantas mulheres quis?


LUPICÍNIO - Meu camarada, eu realmente tive muitas namoradas na minha vida. Umas me fizeram bem, outras me fizeram mal. As que me fizeram mal foram as que mais dinheiro me deram, porque as que me fizeram bem eu esqueci.


O PASQUIM - Lupicínio tem mil histórias para contar. Por exemplo "Vingança". É uma música que em 52 dominou o Brasil inteiro. Jornais publicavam e ressaltavam o que houve na época por causa daquela música. Houve tentativas de suicídios, etc. A quem dedicou "Vingança". Que mulher é essa, onde ela esteve, onde ela está?


LUPICÍNIO - A mulher que me inspirou "Vingança" viveu comigo seis anos. E depois terminou namorando um garoto que era meu empregado.


O PASQUIM - Que idade ele tinha?


LUPICÍNIO - 16, 17 anos.


O PASQUIM - Foi passado pra trás por um garoto de 17 anos.


LUPICÍNIO - Não foi bem assim. É que eu tinha viajado, ela mandou chamar o garoto. Disse que queria falar com ele. Ela mandou um bilhete. O garoto com medo de mim, quando eu cheguei, me entregou o bilhete. Disse: "Olha a Dona Carioca me mandou esse bilhete. Eu não sabia o que ela queria comigo. Não fui." (Risos) Entregou a mulher. Aí eu não disse nada. Fiquei quietinho, inventei outra viagem, peguei minha mala, e fui embora.


PASQUIM - Endoidou.


LUPICÍNIO - Era época do carnaval, ela endoidou. Botou um “Dominó". "Dominó” é aquela fantasia preta, que cobre tudo. No carnaval, feito louca foi me procurar. Uma certa madrugada, ela, num fogo danado - parece que deu fome - entrou num bar onde a gente costumava comer. Foi obrigada a tirar o "Dominó” pra comer, e o pessoal a reconheceu. Perguntaram - "Ué, Carioca, que você está fazendo aqui a essa hora? Cadê o Lupi?" Ela sozinha.


O PASQUIM - Carioca por que? Ela é carioca?


LUPICÍNIO - É sim. Ela é viva, mora aqui. Ai ela começou a chorar. Eu estava num restaurante do outro lado. Uns amigos chegaram e me disseram: encontramos a Carioca vestida de "Dominó”, num fogo tremendo. Começou a chorar e perguntar por ti. O que que houve, vocês estão brigados?" Aí foi que eu fiz o "Vingança". Na mesma hora comecei, saiu (canta) "Gostei tanto, tanto, quando me contaram ... "


O PASQUIM - Foi uma ruptura pra valer.


LUPICÍNIO - Eu sou muito amigo dos pais de santo, os batuqueiros lá de Porto Alegre. Em cada lugar que chegava ela botava fotografia minha, cabritas, aquele negócio todo pra fazer as pazes. Aí eu fiz (canta): "Nunca, nem que o mundo caia sobre mim/Nem se Deus mandar ...”


O PASQUIM - Tem bom samba lá no Rio Grande do Sul, tirando Lupicínio Rodrigues? O pessoal lá é bom de samba? Tem bons batuqueiros e escola de samba?


LUPICÍNIO - Lá tem bom sambista.


LUPICÍNIO - Tem boas escolas de samba.


O PASQUIM - Tem gente fazendo cara de quem está duvidando.


LUPICÍNIO - O Benedito Lacerda foi ao Rio Grande do Sul e voltou de lá admirado. Como o Rio Grande do Sul, sendo tão longe do Rio de Janeiro...


O PASQUIM - E tão perto da Argentina, do Uruguai...


LUPICÍNIO - ...os nossos ritmistas, os nosso violonistas tocavam tão bem o samba como no Rio de Janeiro. Naquele tempo nós chamávamos os paulistas de quadrados. O samba de São Paulo é de há muito pouco tempo.


O PASQUIM - Você não é um fenômeno isolado, embora tenha se destacado.


LUPICÍNIO - Os melhores ritmistas que teve aqui no Rio de Janeiro, anos atrás, eram gaúchos. Por exemplo, o violinista que ensinou os cariocas a fazer esse samba que hoje dizem que é bossa-nova, era gaúcho. Chamava-se Neorestes. O pandeirista que ensinou os cariocas a bater pandeiro era gaúcho.


O PASQUIM - É? Quem era?


LUPICÍNIO - Darci do Pandeiro. Outro violonista: Gorgulho, que também era gaúcho.


O PASQUIM - Na música popular brasileira, qual a diferença que você vê entre as suas músicas e as músicas de Teixeirinha, sendo vocês dois da mesma região do Brasil?


LUPICÍNIO - A diferença que existe é que eu faço música popular, o Teixeirinha faz música regional. O Teixeirinha não é folclorista, não é o folclore gaúcho. O Teixeirinha é o regionalista, como o de qualquer estado do Brasil. A música do Teixeirinha é tão regionalista quanto a música mineira, a música nortista. Não é o nosso cancioneiro gaúcho. E adoro a guariânia, adoro tango e adoro bolero. Eu acho qualquer dessas músicas maravilhosas. Como adoro qualquer música popular bem feita.


O PASQUIM - Como é que você consegue isolar essa influencia do seu trabalho?


LUPICÍNIO - Eu acho o ritmo brasileiro o melhor ritmo do mundo, no meu gênero.


O PASQUIM - Quando você começou a se formar como compositor, quais eram os compositores brasileiros, ou a escola brasileira, que você mais gostava?


LUPICÍNIO - Eu não comecei fazendo música, eu comecei a cantar. Quando comecei, foi como cantor. O cantor que eu imitava era Mário Reis.


PASQUIM - Isso em que ano?


LUPICÍNIO - Em 1930.


O PASQUIM - Mas você tinha 16 anos. Você não ouvia Mário Reis com 16 anos.


LUPICÍNIO - Claro. Era a dupla mais famosa do Brasil: Francisco Alves e Mário Reis.


O PASQUIM - Qual o cantor que melhor interpreta o que você deseja dizer nas suas músicas? Aquele que quando você ouve fica emocionando.


LUPICÍNIO - O cantor que eu admiro, que eu gosto que intérprete as minhas músicas, é o Jamelão. Porque ele tem uma preocupação de cantar as músicas como eu faço. Não é por ele estar presente. A gente faz uma música e o cantor vai cantar. Ele acha que tem que fazer uma coisa diferente, mudar a melodia, ele acha que a letra tem que ser como ele quer. O Jamelão é autêntico. Ele procura aprender a música como a gente ensina pra ele a cantar a música como a gente faz.


O PASQUIM - Jamelão, como você conheceu Lupiscínio Rodrigues?


JAMELÃO - Eu conheci Lupicínio Rodrigues através de minha vida de crooner. Eu cantava em dancing e sempre gostei do repertório do Lupicíno. Nas minhas andanças para lá e para cá, fui conhecê-lo em Porto Alegre.


O PASQUIM - Mais ou menos que ano Jamelão?


JAMELÃO - Cinqüenta e pouco. Foi com a orquestra do Severino Araújo. A primeira vez que eu fui ao Sul com orquestra foi com Severino Araújo. Nós tínhamos vindo de uma excursão à Europa, e então eu o conheci. E através disso tive oportunidade de gravar "Ela disse-me assim".


O PASQUIM - Você tem idéia do ano?


JAMELÃO - "Ela disse-me assim" foi gravada mais ou menos em 55.


O PASQUIM - Lupicínio, você não teria outra história tão peculiar ligada a uma música que tenha composto? Uma música que também parecesse uma experiência tua. mas que fosse uma história engraçada, interessante, de alguma mulher. Eu nunca vi um homem com tanta mulher. É incrível! E a Iná?


LUPICÍNIO - A Iná foi a primeira mulher que eu tive. E a primeira desilusão.


O PASQUIM - Quantos anos você tinha?


LUPICÍNIO - 17 anos.


O PASQUIM - Terá sido ela a inspiradora de "Nervos de Aço"?


LUPICÍNIO - Foi a Iná.


O PASQUIM - Você fez "Nervos de Aço" com quantos anos de idade?


LUPICÍNIO - "Nervos de Aço" eu fiz com 22 anos.


O PASQUIM - Lupi, aqui no Rio você freqüenta muito um lugar. Até hoje a gente não sabe porque. Um bar na Barata Ribeiro chamado "Grego". E sempre que a gente se vê, você está acompanhado de mulata. Você tem algum preconceito de cor, ou realmente é do nosso time e gosta de mulata?


LUPICÍNIO - Pelo contrário, dificilmente estou acompanhado de mulata. Não sei porque, eu não dou sorte com mulata. A única mulata que eu tive na minha vida foi justamente a Iná. A Iná de muitas músicas.


O PASQUIM - Diz umas aí.


LUPICÍNIO - "Zé Ponte", "Xote da Felicidade". E tantas outras músicas. Mas depois de Iná, eu só tive problemas com louras.


O PASQUIM - É interessante que se situe a sua primeira vinda ao Rio de Janeiro. Porque foi muito engraçado. O Lupiscínio foi parar na Lapa, onde foi fazer amizade com uma barra pesadíssíma. Conheceu Kid Pepe, conheceu Germano Augusto, conheceu muitas figuras, e foi um grande jogador na Lapa. Não conheceu madame Satã. Como é que você chegou e entrosou?


LUPICÍNIO - Eu sou aposentado por amor.


O PASQUIM - Explica isso, rapaz.


LUPICÍNIO - Eu ganhava naquela época, na Faculdade de Direito, duzentos cruzeiros por mês. Eu era bedel na Faculdade de Direito.


O PASQUIM - Era inspetor. Inspetor de alunos.


LUPICÍNIO - Ganhava 200 cruzeiros por mes. Eu vi que, ou eu ia pedir pra fazer as pazes com a Iná, ou eu ia morrer.


O PASQUIM - Em que ano isso?


LUPICÍNIO - Em 1939. Eu era muito amigo do Tatuzinho, que foi esposo legítimo da Elizete Cardoso, pai do Paulinho.


O PASQUIM - Paulinho Valdez.


LUPICÍNIO - Então o Tatuzinho diz assim: "Vão s'imbora pro Rio".


O PASQUIM - A primeira vez?


LUPICÍNIO - Da primeira vez, 1939, na época da guerra. Comprei uma passagem. Custou 170 mil réis e sobrou 30 mil réis pra viajar. Terceira classe de navio. Aí embarquei, na terceira classe. No caminho, o Tatuzinho tocando violão e eu cantando, já me deram logo um camarote. Vim cantando no navio.


O PASQUIM - Você chegou como? Você ficou onde? Num hotel, numa pensão?


LUPICÍNIO - Pensão ali por perto, na Lapa. De uma baiana.


O PASQUIM - Você chegou com conhecidos ou foi se tornando...


LUPICÍNIO - Aí aconteceu uma das coisas mais importantes. Esse meu amigo era gaúcho, o Bom Mulato -- vocês devem conhecer, porque esse camarada é do Jockey. Ele entrou no Café Nice e me meteu na pior. Tava sentado ali Ari Barroso, Haroldo Lobo, Nássara, e tudo quanto era grande compositor. Francisco Alves, toda a máfia sentada no Café Nice, às seis horas da tarde. Ele chegou comigo pela mão e gritou dentro do Café Nice: "Chegou o meu cavalo aqui". Os caras ficaram tudo me olhando, né, que negrinho pequenininho, tudo me olhando assim. Eu cheguei e disse: "Olha, esse cara tá brincando". o Haroldo Lobo me olhando, o Nássara me olhando, o Chico me olhando.


O PASQUIM - Que ano é isso?


LUPICÍNIO - 1939. Aí foi que eu conheci o Chico. Eu já tinha uma porção de músicas gravadas, mas ninguém me conhecia.


O PASQUIM - Quem é que tinha gravado as suas músicas dessa época?


LUPICÍNIO - O Ciro Monteiro, uma porção de gente tinha gravado.


O PASQUIM - Seu grande sucesso gravado foi em 37, com Ciro Monteiro.


LUPICÍNIO - Eu sentei na mesa, pedi um cafezinho. Todo mundo cantando, era mais ou menos época do carnaval. Naquele tempo os caras botavam um níquel no bolso pra bater, outros batiam na caixa de fósforo, outros na parede, e eu tô escutando. Diz um pra mim: "Ô gaúcho, canta um negócio teu aí". Eu digo: "Eu não sei cantar essas músicas que vocês estão [70] cantando." E ele: "Não, canta qualquer coisa aí". Aí eu (canta): "Você sabe o que é ter um amor, meu senhor Ter loucura por uma mulher..."


O PASQUIM - Ô rapaz!


LUPICÍNIO - Aí o Chico começou, psft, psft, assim cuspindo: "Canta outra aí". E eu mandei: "Quem há de dizer / que quem vocês estão vendo / naquela mesa a beber". Aí o Chico, psft, psft: "Isso é teu moleque? Isso é teu?" (risos). Eu sei que quando eu cantei a quarta música, o Chico me chamou lá pro canto, psft: "isso tudo... não dá para... Isso é teu?" "Aí ele me botou num Buick vermelho que tinha e me levou pro Turf, um clube de...


O PASQUIM - ...corrida de cavalo.


LUPICÍNIO - Não, o Turf era um clube de pif que tinha aqui no Flamengo. "Pft, cê não dá isso pra ninguém. Não dá isso pra ninguém. Vou gravar tudo". Aí eu fiz amizade com o Chico.


O PASQUIM - Você acha o Chico um bom intérprete seu?


LUPICÍNIO - Ah, o Chico foi um bom intérprete. Foi sim.


O PASQUIM - Ele não dá uma interpretação a você que não é exatamente a interpretação dele é um pouco "grandiloqüente" para a tua música. Não é não?


LUPICÍNIO - A voz do Chico era aquela. A voz do Chico era empostada. Ele não podia diminuir o tom.


O PASQUIM - Lupicínio, em 52, tinha uma dificuldade de comunicação muito grande. Temos a impressão que a grande dimensão nacional de tua música foi Linda Batista gravando "Vingança". Você acha que "Vingança. Você acha que “Vingança” foi a música que te projetou nacionalmente de forma definitiva?


LUPICÍNIO - Uma das coisas interessantes: a Linda não aprendeu "Vingança" comigo.


O PASQUIM - Não foi não?


LUPICÍNIO - Eu ensinei a "Vingança" para o Herivelto Martins. A [70] [71] primeira gravacão de “Vingança” foi feita pelo Trio de Ouro. Mas quem ia gravar mesmo -- e a Linda aprendeu com ele -- foi o Jorge Goulart. Ele cantava no Vogue, junto com Linda, Jorge Goulart, Linda e Nora Ney. Jorge Goulart aprendeu a música comigo no Rio Grande do Sul, chegou no Vogue e começou a cantar. A Linda aprendeu e quando o Jorge Goulart se descuidou, ela chegou e gravou. Quando o Jorge Goulart viu, a música já estava gravada.


O PASQUIM - Pelo que está dizendo, você nunca fez caitituagem em sua vida?


LUPICÍNIO - Nunca, nunca, nunca. A minha primeira música foi gravada sem eu saber. Me procuravam pra dizer que a minha música havia sido gravada. Nunca tive a mínima entenção de ser artista, compositor, nunca.


O PASQUIM - Você é uma prova de que uma pessoa isolada feito você, que não estava no local adequado para fazer música popular no estilo que você faz, pode aparecer, como você, afinal de contas, apareceu no Brasil inteiro. Você acha que o que eles chamam a "máquina" não é tão esmagadora quanto dizem?


LUPICÍNIO - A "máquina”é esmagadora. Pelo seguinte: ela evita, proíbe que apareçam os valores.


O PASQUIM - Mas você apareceu, de qualquer maneira.


LUPICÍNIO - Mas quando eu apareci não existia a "máquina".


O PASQUIM - O que você ensinou de mais importante, o que você transmitiu de mais importante?


LUPICÍNIO - Olha, eu vou dizer uma porção de frases e coisas que eu fiz. Por exemplo: "É melhor brigar junto do que chorar separado". Tem outra que diz assim: "Ela nasceu com o destino da lua / pra todos que andam na rua / não vai viver só pra mim".


O PASQUIM - É lindo. É uma grande frase.


LUPICÍNIO - Tem uma outra que diz assim:
que efiz ~: "Vocês Maria de agora/ amem somente uma vez/ para que mais tarde esta capa/ não sirva em vocês”.


O PASQUIM - Ele está dizendo os versos importantes da vida dele.


LUPICÍNIO - Tem outro que diz assim, desses pobres moços: "Se eles julgam que o futuro / só ao amor dessa vida conduz / saibam que deixam o céu por ser escuro / e vão ao inferno à procura da luz". E assim tem uma porção de coisas.


O PASQUIM - Aquela que fala da Dona Tristeza e da Dona Alegria?


LUPICÍNIO - Eu gravei, mas o Jamelão não gravou.


O PASQUIM - Como é o nome dessa música?


LUPICÍNIO - "Rosário de Esperança". Eu vou só dizer os versos, cantar não dá.


O PASQUIM - Pode ser cantado. Depois nós escrevemos os versos, cantar não dá.


LUPICÍNIO - "Eu fui convidado por alguns amigos / pra ir a uma festa / beber e cantar / Peguei a viola afinei a garganta / e até pus a manta / pra me agasalhar / E fiz um convite pra Dona Alegria / melhor companhia / pra festa não há / Mas eu não sabia / digo com franqueza / que a Dona Tristeza / morava por lá. Cheguei satisfeito / alegria no peito / sorriso na boca/ viola no lado / Mas vi com surpresa / na primeira mesa / sentada com outro / a mulher que eu amei / Voltei desolado tristonho, magoado / viola do lado não bebi nem cantei".


O PASQUIM - Você tem alguma música que o tema não seja mulher?


LUPICÍNIO - Se tenho não me lembro no momento.


O PASQUIM - E o seu processo de criação para a música. Você medita sobre o tema, ou o negócio vai fluindo?


LUPICÍNIO - Medito sempre sobre o tema.


O PASQUIM - Mas de estalo, de vez em quando, sai um. Como aquela da vingança.


LUPICÍNIO - Todos são um tema real, coisas que acontecem na hora.


JAMELÃO – Ô Lupi, ultimamente, aqui no Rio, surgiu uma certa controvérsia a respeito de uma música da sua autoria. Essa música, inclusive no programa do Flávio Cavalcanti, foi mostrada como sempre deturpando um pouco a melodia. Mas, de qualquer forma, é uma promoção. E essa música passou a ser comentada por aqui com o nome de "Bicho do Pé". O título dessa música não é "Bicho de Pé", é "Sozinha". Eu gravei essa música, é uma das músicas mais solicitadas nos "shows" em que eu me apresento. Como foi que você teve a inspiração para fazer essa música? Qual foi o motivo, a coisa que gerou?


LUPICÍNIO - Jamelão, você sabe que eu servi em Santa Maria, né? E o princípio de minha vida artística foi lá em Santa Maria. E lá eu conheci essas histórias. Lá eu fiz "Zé Ponte", fiz aquela (canta): "Felicidade foi-se embora / e a saudade no meu peito..."


O PASQUIM - Essa música é sua?Não é folclore?


LUPICÍNIO - "Felicidade" é. (Canta): "A minha casa fíca lá detrás do mundo / mas eu vou em um segundo / quando começo a cantar". "O pensamento parece uma coisa à-toa / como é que a gente voa / quando começa a cantar".


O PASQUIM - Que maravilha.


LUPICÍNIO - Aquela outra: "No meu casebre tem um pé mamoeiro / onde eu passo o dia inteiro / campeando a minha mágoa".


O PASQUIM - Nesse tempo todo de sucesso aqui no Rio, você nunca foi tentado a se estabelecer aqui?


LUPICÍNIO - Eu gosto muito do Rio Grande do Sul.


O PASQUIM - As tuas raizes estão lá, e tal. Lupi, e os convites que você teve para ficar em São Paulo?


LUPICÍNIO - Eu tive diversos convites. Até me deram um bar uma vez. Uma moça lá que eu namorei, até um bar me deu de presente. "Fica aqui que eu te dou o bar".


O PASQUIM - O homem é bom de bico. Até ganha bar. Quando foi isso?


LUPICÍNIO - 1968, mais ou menos.


O PASQUIM - E você não quis o bar?


LUPICÍNIO - Eu fazia um show no "Chicote" e tinha a moça do bar que ia me buscar todo o dia. "Se tu quiser ficar aqui e morar em São Paulo tu fica com o bar pra ti". Mas nem ganhando um bar de presente eu não quis ficar.


O PASQUIM -O PASQUIM - É verdade que você fez o hino do Internacional?


LUPICÍNIO - Não! Eu fiz o hino do Grêmio.. Sou do contra (canta): "Até a pé nos iremos / para o que der e vier Mas o certo é que nós estaremos com o Grêmio onde o Grêmio estiver".


O PASQUIM - Você sendo de tradição tão popular de comportamento, o Internacional é um clube muito mais ligado a sua família. Dos 21 irmãos, quantos eram Grêmio?


LUPICÍNIO - Lá é a metade por metade. Metade é gremista, metade é colorado. (Todos riem)


O PASQUIM - Vinte e um não dá metade.


Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho e Lupicínio Rodrigues.


LUPICÍNIO - Tem um voto de Minerva. São 4 e 15. São quatro horas da madrugada e nós estamos aqui numa roda maravolhosa tocando músicas, e não pensamos parar ainda. Nós vamos continuar lá no "Grego", porque tem uma porção de amigos nos esperando lá para festejar um aniversário que começou ontem. Aniversário do meu amigo Albino Pinheiro.


(Corte. O local agora é o Restaurante El Grego. Muita movimentação e vozes falando ao mesmo tempo. Ritmo da entrevista: devagar, ou seja, ritmo de porre e madrugada. Fundo musical: Roberto Carlos.)


O PASQUIM - Nós saímos da casa da Júlia e chegamos no "Grego". É um lugar do Rio de Janeiro que não e muito conhecido da boemia. Eu queria, Lupiscínio, que você falasse da relação entre o "Grego" e a sua boemia, pra você gostar tanto desse lugar.


LUPICÍNIO - O lugar onde sempre encontro tranqüilidade é o "Grego". É o centro dos gaúchos. Aqui se reúnem, pelo menos se reunia antigamente, todo o mundo, toda a gauchada. Quando eu quero encontrar os meus patrícios eu venho aqui no "Grego”.


(Jamelão, nesse momento, tenta se despedir, porque diz que tem que acordar cedo. Lupiscínio tenta prendê-lo à mesa. Não se sabe o que vai acontecer. São exatamente cinco e meia da manhã.)


O PASQUIM - Qual a mulher que no Rio de Janeiro te impressiona, e você gostaria de conhecer melhor?


LUPICÍNIO - Olha aqui, se eu pudesse, queria conhecer todas as mulheres do Rio de Janeiro.


O PASQUIM -O PASQUIM - Lupiscínio, com 50 e poucos anos, você é o padrão do boêmio brasileiro. Um camarada que, com seu comportamento e atitude, reflete isso para toda uma nação. Né, pô?


LUPICÍNIO - Eu acho que cada pessoa deve viver como se sente bem. Eu hoje estive falando com um dos meus professores, Joubert de Carvalho. Foi quem me ensinou a fazer versos. (canta): "Maringá, Maringá / depois que tu partisses / tudo aqui ficou tão triste / que eu passei a imaginá". Eu nasci na época de "Maringá”, do (canta): "Adeus Guacira, meu pedacinho de serra". Nasci na época do, como é? "... pescando no rio de gereré". Como é? Eu canto todas essas canções. Eu tô meio embira, e não posso lembrar agora. E preciso que se saiba que já são seis horas da manhã e nós estamos no Grego. (Pensa um pouco, depois canta): "Não quero outra outra vida pescando no rio gereré / tenho peixe bom, tem siri patola de dá com pé / Quando no terreiro / faz noite de luar..." Isso é de Joubert de Carvalho. Essa gente que me ensinou a fazer versos.


(Enquanto todos prestam atenção em Lupiscínio, Jamelão sai à francesa.)


O PASQUIM - Como é que você se coloca diante do atual panorama da música brasileira? Você está entrosado ou você está em cheque com as novas tendências? Você acha que está legal, ou você se sente uma figura meio deslocada?


LUPICÍNIO - Eu não tenho nada com o ambiente artístico brasileiro. Eu não sou músico, não sou compositor, não sou cantor, não sou nada. Eu sou boêmio.


O PASQUIM - Mas você é um artista brasileiro. E você tem que se colocar nessa posição.


LUPICÍNIO - Eu sou boêmio. O meu negócio é estar assim como estou agora com o violão do lado, dentro de um bar, com vocês, e tomando as minhas biritas e cantando. Não faço comércio.


O PASQUIM - O que você acha de, digamos, Caetano Veloso?


LUPICÍNIO - Caetano Veloso? Ah, é ótimo compositor. Muito bom mesmo.


O PASQUIM - Você não se sente em choque com o que está se fazendo, porque tudo é música brasileira, né?


LUPICÍNIO - Olha, todo camarada que produz no Brasil, seja ele de que forma for, Caetano Veloso, Gil, Chico Buarque... Apesar de que Chico Buarque ainda é naquele estilo antigo, que eles chamam, como é?, os "quadrados”. Mas acho o Chico um poeta maravilhoso, conservador daquele ambiente. Mas todos os que produzem, os que cooperam na arte brasileira, todos são bons.


O PASQUIM - As vezes, um compositor novo fala assim: "Ah, você não conhece o Lupiscínio direito. Ele faz lparte do SDDA". Você acredita que o direito autoral no Brasil, em relação ao compositor, é o que ele merece, ou não? Você homem ligado, quando um compositor novo ou velho reclama, qual é a tua posição?


LUPICÍNIO - Eu faço parte das duas classes. O que está acontecendo não é que as sociedades não paguem os compositores, não queiram pagar. O que acontece é que a influência da música estrangeira no Brasil é o maior... como se diz?... é o maior...


O PASQUIM - Câncer, hem? Câncer?


LUPICÍNIO - É o câncer que prejudica o compositor brasileiro. Eu vou explicar as razões.


O PASQUIM - E a mecânica da coisa, Lupiscínio?


LUPICÍNIO - Se as sociedades brasileiras de compositores tiverem que pagar o direito autoral certo, certo como é, o compositor brasileiro não recebe nada.


O PASQUIM - Explica pra nós.


LUPICÍNIO - É o seguinte. No Brasil toca 90% de música estrangeira. Se nós cobramos 90% de música estrangeigeira em cruzeiros, e pagamos pros estrangeiros em dólar, as sociedades de autores brasileiros têm que pagar aos estrangeiros mais do que eles cobram. O dólar custa seis cruzeiros: (N.R.: nos bons tempos!) o cruzeiro custa um. O dia em que as nossas autoridades fizerem tocar no Brasil 90% de música brasileira... porque ninguém teve o peito ainda de mandar tocar 90% de música brasileira.


O PASQUIM - Lupicínio, você é uma figura legendária aqui no Rio de Janeiro, uma figura quase mitológica. Você tem consciência disso?


LUPICÍNIO - (continuando, sem tomar conhecimento) -- Vocês que tem a imprensa na mão devem saber que podem ajudar. Não só os composítores, porque não é só os compositores que estão sofrendo. São os artistas em geral que estão sofrendo essa coisa. Você sabe que o Brasil deve ter uma média agora, de... vamos fazer uma base mínima ... tem dez milhões de artistas.


O PASQUIM - Quê que é isso, rapaz?


LUPICÍNIO - Fazendo uma base mínima de dez milhões de artistas, entre amadores e profissionais. A TV Globo e a TV Tupi, no Rio de Janeiro e São Paulo, não tem lugar para dois mil trabalharem. Tem?


O PASQUIM -O PASQUIM - É claro que não.


LUPICÍNIO - Não tem. E no entanto só existem três canais pra poder trabalhar. Quem não vem ao Rio e São Paulo não tem onde trabalhar.


O PASQUIM - Tá certo Lupi. O Lupi, voltando a esse papo de boemia: Em Porto Alegre, se você está sentado mima mesa, qualquer gaúcho pode sentar? E o cara quando senta, pode chegar assim "Ô Lupiscínio", e vai lá e te abraça, e te pega com intimidade? E no Rio de Janeiro, quando está aqui no "Grego", onde nós estamos às seis e meia da manhã, e o cara chega e te reconhece? Como é que você recebe?


LUPICÍNIO - Em todo lugar que eu chego eu sou o mesmo Lupiscínio. Todo mundo fala comigo, todo mundo bebe comigo, todo mundo convive comigo. Gente de toda a classe, de todas as categorias. Pra mim o mundo tem o mesmo tamanho e todos os homens [74][75] têm o mesmo valor. Só tem uma coisa que eu escolho: os meus amigos pra sair comigo. Na hora de sair, ou pra freqüentar a minha casa, é outro negócio.


O PASQUIM - Mas o pessoal que chega na mesa?


LUPICÍNIO - Ah, bebe todo mundo comigo.


O PASQUIM - Essa pergunta é uma questão de tradição nossa. Qual é o teu nível de instrução? E até que nível você resolveu estudar com a vida que levava?


LUPICÍNIO - Como curso oficial eu cheguei até o ginásio. Estudei a vida em cursos particulares e gosto muito de ler.


O PASQUIM -


LUPICÍNIO - Eu não leio literatura clássica. Eu só leio livros populares.


O PASQUIM - Por exemplo?


LUPICÍNIO - Eu gosto de ler livros de contos, livros policiais...


O PASQUIM - Érico Veríssimo?


LUPICÍNIO - Você sabe que eu leio. Jorge Amado, cê sabe que eu leio.


O PASQUIM - Que horas você vai dormir, que horas você acorda?


LUPICÍNIO - Eu acordo mais ou menos às 10 horas da manhã, dou comida pras minhas galinhas, pros meus passarinhos.


O PASQUIM - Ah, você cria? Você mora em casa grande, com quintal?


LUPICÍNIO - Minha casa tem uns 20 metros de largura, mas tem quase 200 metros de fundura.


O PASQUIM - Vai contando, vai contando. Vai em frente.


LUPICÍNIO - Aí a mulher vai me procurar no fundo do quintal, me achar pra me dar café. Aí, depois, me chama pra fazer comida.


O PASQUIM - Você faz a comida?


LUPICÍNIO - Eu faço a comida. Aí, então, eu durmo. Até as três, quatro horas da, tarde. Três horas eu levanto, tomo meu banho, me arrumo, e vou a SBACEM. Aí saio do escritório às sete horas e continuo a noite até as quatro da manhã. Às quatro eu vou pra casa.


O PASQUIM - Especifica.


LUPICÍNIO - Aí tem que passar de buteco em buteco, aqueles igrejinhas todas. Vou lá pro meu bar, que é o mais movimentado da cidade, o "Batelão".


O PASQUIM - Você tem que ganhar uma mulher toda a noite, pó. Como é que você aguenta tanta mulher em cima de você?


LUPICÍNIO - Não, eu sou um rapaz direito. Nesse negócio de mulher eu sou um rapaz direito.


O PASQUIM - Só tem aquela tua?


LUPICÍNIO - Só da patroa. Sou só da patroa.


O PASQUIM - Apesar de fazer essas músicas todas maravilhosas que o Brasil inteiro sabe, você, a partir da tua ligação com a tua patroa...


LUPICÍNIO - A partir das quatro horas da manhã sou só da patroa.


O PASQUIM - Ah, aí você é só da patroa. Gessé, grande companheiro de Lupiscínio, professor de violão, maravilhoso acompanhante de Lupiscínio, grande boêmio. Gessé, fala alguma coisa de Lupiscínio para O PASQUIM.


GESSE - Eu digo duas palavras só. Lupicínio é autenticidade e acabou-se.


O PASQUIM - Autenticidade? O pessoal quer saber de você que autenticidade é essa.


GESSÉ - Eu ouvi vocês perguntando pro Lupi, por que que ele, lá no Rio Grande do Sul, fazia samba. O samba é mais velho, o samba vem do choro. O Lupi ouvia o pai dele fazer choro. O choro veio do lundu, do maxixe. Não precisa vir ao Rio de Janeiro pra fazer samba. Os estilos saem diferentes. O estilo do samba do Rio Grande do Sul, o estilo aqui, o estilo do samba do Recife. Mas origens são sempre as mesmas. As origens são aquelas que vieram lá de trás, onde nota o coco, o maracatu - que outro estilo de samba -, o xaxado. Isso tudo é samba. E isso, meu filho, está principalmente na cor, na raça. Você não precisa aprender. Isso nasce sozinho. O ruim é louro fazer isso. Este precisa vir aqui aprender, sentar no banco da escola. Mas quem já tem na cor não precisa vir aprender. Já nasce, tá no berço.


O PASQUIM - E você, onde é que aprendeu esse balanço todo?


GESSÉ - Ah, eu vim beber água na fonte. Bebi água na fonte, sim.


O PASQUIM - Você participou do movimento musical aqui no Rio de Janeiro?


GESSÉ - Minha formação musical foi aqui no Rio de Janeiro.


O PASQUIM - Você é gaúcho?


GESSÉ - Eu sou gaúcho. Mas vim beber água e aprender violão aqui, na fonte.


O PASQUIM - E como foi o contato com o Lupiscínio?


GESSÉ - Veio ao natural. Eu, chegando no Rio Grande do Sul, tinha que procurar o Lupiscínio. O problema foi meu: procurar e encontrar o Lupicínio.


O PASQUIM - Há quanto tempo vocês transam juntos?


GESSÉ - Dez anos. Mas já com uma certa afinidade, tocando muitas vezes juntos.


O PASQUIM - Vocês já tem estabilidade?


GESSÉ - Algumas poeiras de muitas estradas nas sandálias da gente.


O PASQUIM - Lupi, talvez tenha alguma coisa que você queira dizer e que nunca ninguém perguntou numa entrevista. Isso é importante, porque às vezes a pessoa tem alguma coisa que dizer, e nunca ninguém pergunta. Que que você quer dizer, quer transmitir ou protestar? Alguma coisa que você sentiu, e nunca foi perguntado?


LUPICÍNIO - Olha, eu não sou de reclamar. A única coisa que eu estou reclamando, não é por mim, é um pedido que eu estou fazendo: que ajudem os nossos artistas. Pedindo ao governo que obrigue as estações de rádio, os barés, a por programação ao vivo, pra dar serviços a esses milhares de artistas brasileiros que andam por si, e não tem onde trabalhar. Os únicos estados que tem -- ainda -- lugar para artista trabalhar é Rio e São Paulo, que não podem acomodar esses artistas todos do Brasil.


*Origem: Pasquim Entrevista. Som do Pasquim - Grandes entrevistas com os Astros da Música Popular Brasileira. Edição 225 (29 de outubro de 1973)

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