segunda-feira, 29 de setembro de 2008

o sÉCULO rEBELDE*

POR CRISTIANO BASTOS

Insurgências que abalaram códigos senis da arte no século 20 sobrevivem à brevidade do contemporâneo

Porventura coubesse comparação entre escrita musical e avanço da humanidade, em dois mil anos de história, daria para dizer: o mundo evoluiu em andamentos antogônicos.

Até o século 19, em compasso lento e desarmônico. Do século 20 adiante, numa vertiginosa cadência rítmica.

Nenhum paradigma (científico, tecnológico, econômico, político, humano ou social) resistiu ao efeito modernizador - e revolucionário - do século passado. Na arte não foi diferente.

Atônita, a Europa - capital da arte do mundo - assiste ao surgimento de insolentes grupos - e do obstinado propósito: a esconjuração da arte do passado. A iconoclastia do cubismo, futurismo, dadaísmo e surrealismo arremessou todos os cânones ao lixo, literalmente.

A arte do presente, para essas vanguardas rebeldes, passa a ser o imaginário do futuro. A linguagem racional e os significados – tão caros ao realismo – são sucedidos pela abstração. No lugar de todos os dogmas, a radicalidade da experimentação.

Na opinão do professor de história da arte contemporânea da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Jorge Lúcio Campos, as vanguardas artísticas ultrapassaram, na realidade, a própria arte. Depois de vários séculos docilizados pelo Estado, clero, nobreza, burguesia e mercado, enfim os artistas conseguiram expor suas próprias obras, utopias e intenções", advoga Jorge.

As insurreições contra a arte, todavia, não são bem fato exclusivo da "modernidade". As estruturas já eram sacudidas séculos antes, na verdade. É o que defende o editor da revista inglesa Smile, Stewart Home, no provocativo Assalto à Cultura – utopia, subversão e guerrilha na (anti) arte do século 20 (Conrad Livros).

Geneologicamente, Home faz interseções que conectam as vanguardas utópicas às "heresias medievais" – a chamada Tradição do Livre Espírito. Uma linhagem transgressora que, segundo Home, começa em Sade, Cope, Fourier, Lautremont e atravessa o século 20 por meio de vanguardas como futurismo e dadá.

O século 20, na abordagem do poeta paulista Décio Pignatari, foi o "século dos séculos". Na década de 50, ao lado dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Pignatari foi responsável pelo lançamento mundial da poesia concreta (vanguarda com bases no Brasil), que decretou a morte do verso como recurso poético.

Experimentação, termo-chave para entender a arte produzida nessa época, diz Pignatari, é conseqüência do principal fator operante naquele momento, a industrialização. Revolução que desencadeou todas as demais:

"Na arte, foi a era do experimento. Na imagem, a fotografia e o cinema; primeiro, em preto e branco, depois, em cores. Na música, a concreta, de ruídos, serial, dodecafonista. O cubismo, na pintura. Depois de Flaubert, na literatura, apenas novidades: de Joyce a Proust, a reforma no romance. Em poesia, então, nem se fale: Apollinaire, Pound, Eliot", pontua.

Em meio ao estrondoso alarido que foram as vanguardas históricas é improvável uma opinião unânime (favorável ou não) sobre o legado que deixaram. Herança que, negativa ou positiva, manifesta-se, incontestavelmente, nas inúmeras encarnações contemporâneas da arte.

Na opinião do poeta surrealista Claudio Willer, o "poder subversivo da imaginação" ensejado pelas vanguardas é uma postura que ainda está valendo. No caso do surrealismo, diz Willer, tem de ser pensado como um movimento de idéias, voltado à relação entre poesia e vida:

"Em meados do século 19, Baudelaire, na sua crítica ao realismo submisso ao mundo, já chamava a imaginação de A Rainha das Faculdades".

Para outro poeta de filiação concreta, Augusto de Campos, a contenda – se as vanguardas vingaram ou malograram no intento de rejuvenescer uma arte já senil e discursiva – está superada. Campos afirma que elas agiram positivamente e, mesmo que ao renegar o discurso, terminaram por ditar outros (como na miríade de manifestos escritos), ainda que libertários quando surgiram:

"A sublevação das primeiras vanguardas operou transformações fundantes na linguagem artística, colocando-a em sintonia com o seu tempo", coloca. O concretista ainda reforça: "É claro que elas deram certo, pois não há artista posterior significativo que não tenha sido tocado de algum modo pelas suas propostas. É uma evidência histórica que nem cabe mais discutir", diz Campos.

O que é indubitável para Campos, na avaliação do poeta, ensaísta e crítico de arte Ferreira Gullar (dissidente concretista que abandonou o grupo paulista para para ir formar a poesia-praxis, engajada e política), ainda é uma divergência. Por conta do feroz diagnóstico que tece sobre a arte moderna, Gullar é temido como um dos críticos mais abrasadores do país.

No seu último livro, Argumentação Contra a Morte da Arte, ele censura duramente as manifestações artísticas contemporâneas. Ao seu ver, "obstinadas pelas vanguardas". Gullar também condena a resignação da crítica frente ao novo como fundamento basilar da qualidade de uma obra.

O volume – o título justifica essa intenção – vocifera duramente contra o cacoete de anunciar o óbito das linguagens: da palavra, da poesia, da música etc. Gullar ataca os valores germinados a partir do "inconformismo renovador" das vanguardas. Para o poeta, experiências que não conduziram à arte, mas ao soterramento de outras formas de expressão.

Em especial, a pictórica: "Movimentos anteriores, cubismo e expressionismo, ao contrário do dadaísmo, foram, sim, importantes à renovação da arte. O cubismo, por exemplo, inverteu o processo artístico. Antes, o artista pintava a partir da natureza. Mesmo que não a copiasse, como Cézzanne, ele partia dela. Com o cubismo isso muda: o pintor parte da tela em branco. Inventa o que vai pintar. Esse processo, quando o dadaísmo faz a apologia da morte da arte, já está praticamente encerrado", analisa.

O que tinha de ser partido, na opinião do crítico, já estava em pedaços: "O daísmo já não tem mais o que fazer. Faz então a antiarte – que, no fundo, é um impasse. O dadá não ficou somente contra a arte do passado, ficou é contra tudo! E não propôs nenhuma invenção", critica.

Aquele que é considerado um dos principais paradigmas da arte moderna, o ready-made, uma autoria do dadaísta Marcel Duchamp, no conceito de Gullar, é eloqüente dessa "falácia": "Se pego uma roda de bicicleta e a ponho de cabeça para cima num tamborete e a faço girar, então isso é arte... Se assino R. Mutt num urinol, idem. É esse o impasse da arte de hoje", polemiza.

A controvérsia suscitada pela arte do finado século, absolutamente, tem um eixo de gravitação que varia muito em torno do modelo de ready-made. Grande parte do que foi realizado após o seu advento, indica vastíssima produção influenciada pelas suas técnicas. Procedimentos – é bom ressaltar – sobretudo calcados na apropriação de objetos pré-existentes, retirados do cotidiano, aos quais são dados a condição de "arte".

A respeito dessa conduta polêmica, a crítica de arte das revistas Opus (francesa) e Artefactum (Belga) e doutoranda em estética pela Universidade de Paris, Muriel Caron, diz que o ready-made foi responsável por levar a arte à uma verdadeira e duradoura subversão. Mudança, no seu juízo de historiadora, superlativa: "O advento do ready-made passou a significar que todo e qualquer objeto pode transmutar-se em arte".

Antes disso, observa, fez uma ligação de três pontas, onde o equilíbrio, como nunca antes na história das artes, é o espectador: "O ready-made é uma condição que depende do artista, que o escolhe, do público, que o observa, e da instituição, que o expõe. O pressuposto para que ele se legitime como arte, é que esses três estejam de acordo em assim reconhecê-lo", afirma Ana. Preceito revigorado na declaração do próprio Duchamp, um "antiartista" nas suas póprias palavras: "Aqueles que olham é que fazem os quadros", resumiu.

*Primeira parte de uma grande reportagem cujo objetivo, no alvorecer de 2001, seria investigar o legado das vanguardas artísticas do século 20, no Brasil e no mundo. Porém, em sete anos de gaveta (!), jamais viu a luz de publicação alguma. Originalmente, deveria ser capa da Aplauso, à época. Se a matéria perdeu "atualidade jornalística", por um lado, de outro, muitas dessas opiniões continuam valendo... Na próxima parte: modernismo, fluxus, mail art, nomes múltiplos, o underground da arte brasileira nos anos 70. E muito mais!

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

aRQUIVO mORTO

Marcelo Benvenutti, porto-alegrense nascido em 1970, é autor dos livros de contos Vidas Cegas (2002), O Ovo Escocês (2004) e Manual do Fantasma Amador (2005).

Na época de Vidas Cegas, editado pela Livros do Mal, Benvenutti dizia-se um "não escritor": "É um ladrão, e deve ser tratado como tal", postulava sobre si mesmo.

Seu novo livro é Arquivo Morto, outro volume de contos, recentemente lançado pela Kafka Edições, de Curitiba.

Atualmente, enquanto leva adiante a cansativa e divertida vida de pai do filhote Lorenzo, de dois anos e quatro meses, Benvenutti se dedica a escrever seu primeiro romance, ainda sem nome.

Mais ciente do ofício de escritor, Benvenutti, no entanto, continua o mesmo ladrão de sempre, admite.

Sobre o romance a caminho, sabe-se apenas que o enredo será fantasiado no seu arsenal de tipos humanos (catalogados nas ruas, bares e inferninhos de Porto Alegre), mitos urbanos, especialmente os "de bairro", e nos amigos - onde incluo-me.

Nosso ladrão conversou sobre heróis, antípodas, trago, Álbum Branco e listou músicas favoritas para "se descabelar (emborrachado) na pista".

E deu uma xingada básica no Rio Grande do Sul.

Em primeira mão, Benvenutti também adiantou uma parte do seu primeiro romance.

Porque Mickey Rourke é Deus pra você?

Benvenutti - Peraí. Deus ninguém é, velhinho! Mas Mickey Rourke é o cara. Imagina o sujeito fazer alguns dos melhores filmes de uma década e na outra decidir ser boxeador abandonando a carreira, mesmo que já decadente por bombas no estilo Orquídea Selvagem? É um poeta!

Como um contador chega a se tornar escritor?

Benvenutti - Eu sempre fui escritor. A contabilidade é um meio de sobrevivência que veio a calhar pois comecei trabalhando com meu pai. Nada mais.

Como se auto-define hoje? Antigamente você era um "ladrão".

Benvenutti - Todo escritor é um bom ladrão de histórias. Eu me defino como um bom escritor, pra ser um pouco modesto, diplomaticamente mediano, marqueteiramente péssimo e socialmente indigesto.

A paternidade o transformou num ser humano melhor, na sua opinião?

Benvenutti - Só a morte deixa um ser humano melhor. Ele é o que é. A paternidade me deixou mais paciente e tolerante. E muito mais esperto.

Em relação aos livros anteriores, o que mudou em Arquivo Morto?

Benvenutti - Em relação ao Vidas Cegas, não mudou quase nada. O Manual do Fantasma Amador é um livro de contos mais poético, digamos assim. E o Ovo Escocês é um livro de contos que fecha mais com o romance que estou escrevendo agora. Histórias urbanas com personagens sem perspectivas perdidos entre noitadas, frustrações amorosas e desorientação mental.

Na verdade, começou a ser escrito em 2001 e terminou lá por 2004. Quando terminei o Vidas Cegas continuei escrevendo contos no mesmo estilo e publicando em blogs ou guardando na "gaveta" mesmo.

Em 2005, já pensando numa reedição futura do Vidas, comecei a trabalhar todos os contos desse período, que somam mais de 200, e acabei cortando, podando, editando, reescrevendo praticamente todos eles.

No fim do processo tinha um novo livro, com um novo conceito, mais hermético. Seria algo como se os Beatles tivessem regravado o álbum branco com novas músicas, melhores, e tivessem eliminado "Obladi-Oblada" e "Number 9", saca?

Sua literatura é mais etílica ou roqueira?

Benvenutti - Quando eu bebo invento de escrever poemas, o que é um desastre. Escrevo melhor fechado em meus fones de ouvido com AC/DC, Kinks e The Who dando o ritmo na fluência do texto.

Você se dava com Fausto Wollf. Como recebeu a notícia de sua morte?

Benvenutti - Certa vez ele elogiou meu texto em sua coluna no Pasquim21. Pessoalmente só conversei com ele uma noite. Se era meu amigo, não sei, mas acredito que foi uma ótima companhia de papo e trago que já tive na vida. Guardei dele a dureza na opinião, a inflexibilidade no raciocínio e o bom humor, no limiar do sarcasmo e do cinismo, sempre presentes.

Li sobre sua morte quase que no mesmo instante na Internet e a frieza do meio calou a surpresa momentânea. Obviamente fiquei triste pois sabia que naquele sujeito repousava uma grande vontade de viver a vida em toda a sua plenitude, boa ou ruim, o que talvez já não estivesse ocorrendo nos últimos tempos devido aos problemas de saúde que Fausto atravessava.

Qual o livro mais do caralho você já leu?

Benvenutti - O livro mais do caralho geralmente é o último do caralho que lemos. O meu último é A Leste do Éden, de John Steinbeck. Steinbeck e seu modo de escrita têm me influenciado muito no desejo em me tornar um romancista. O cara era foda!

Quem foi William Caveman?

Benvenutti - É uma penumbra junkie punk que agora flutua pensativa sobre a cabeça dos roqueiros bebuns e das cadelinhas undergrounds de Porto Alegre.

E o Rio Grande do Sul?

Benvenutti - O Rio Grande do Sul é um estado culturalmente chato. Literatura é literatura. Existe a boa e a ruim. Só.

É aí que se desenrola sua história?

Benvenutti - Bom, meu romance em processo fala basicamente de uma Porto Alegre da "boêmia underground de classe média", na falta de uma melhor classificação, dos anos 2000, suas frustrações, fracassos e devaneios.

Claro que muitos (tomara que existam estes muitos) dirão que é só mais um livro cheio de sexo, drogadição e bebedeiras. Não é. Mas mais não explico, pois autor que explica ou se complica ou se explica porque não sabe escrever mesmo. O melhor é ler.

Vai um trecho de brinde, Festa Punk.

FESTA PUNK

Era só mais uma blitz. Como qualquer outra. Documentos do automóvel. Carteira de habilitação. Rotina. De dentro do carro Lúcio não notava nada.

Do lado de fora a marofa de maconha circundava os PMs. Desce do carro, magrão! Lúcio, contrariado, desce. Mãos na parede! Lúcio coloca as mãos num muro de tijolos na Loureiro da Silva.

PMs filhos da puta! Porra do caralho, filhos de uma puta! Querem o que? Revistam Lúcio de cima a abaixo. O mais moreno é calmo. O branco é nervoso. Baixa as calças, berra o branco. Lúcio não baixa. Baixa as calças, porra! Lúcio baixa as calças. Nada.

Lúcio, inflamado, esbraveja. Abuso de autoridade, não é? Tão abusando, não é? Achando que eu sou um mané, meu? Quando levanta as calças, uma ponta de béqui cai do bolso interno das calças ao lado do coturno do moreno. O branco bate com o cacetete atrás do joelho de Lúcio. Ele cai de no chão.

Abuso de autoridade é, magrão? Vamos agora pro distrito, seu merdinha. Jogam Lúcio no banco de trás da viatura e se dirigem ao Palácio da Polícia na Ipiranga. E o meu carro? Ainda resmunga Lúcio. Teu carro deixa aí pra recolher. Não é problema nosso. É da prefeitura.

Sozinho numa sala do Palácio, sem os tênis e a cinta das calças, Lúcio se lembra da bolota que guardou na meia. Brigadianos de merda. Nem revistar o cara direito sabem. Olha para os lados só para ter certeza e não vê ninguém por perto. Pega a bolota da meia e engole com plástico e tudo. Talvez saia inteira do outro lado. Já fez isso antes.

Saiu limpinha do outro lado. Passou uma tarde lavando merda até achar a maconha, mas achou. Bem lavadinha, dentro do plástico, estava tão boa quanto antes. Chamou Cássio e Fúlvio naquele dia para fumarem o béqui da merda, como assim chamaram aquele.

Muita merda tinha saído de seu rabo desde então. Aquela seria mais uma. Seria. Ela não sairia. O saquinho plástico arrebentou no estômago. Lúcio começou a ver tudo girando. Pensou que ia desmaiar. Vomitar. Pirar.

Alguém apareceu. Um rato. Devolveu os tênis, a cinta e os documentos. Vai embora daqui, boca aberta. Não queremos nada com chinelão. Apontou um caminho que Lúcio seguiu cambaleando. Sentiu um pé na bunda e a grama da rua na cara. Levantou e saiu flutuando pela Ipiranga. As luzes dos automóveis riscando seus olhos.

Duas horas depois estava sentado no seu carro no mesmo lugar na Loureiro. A rádio ligada tocando uma fita cassete do Elvis Costello. It's the element... lalalá! Chovia.

Ligou o carro e o limpador de pára-brisa. Um papel ensopado se mexia de lá pra cá. Achou que era uma multa. Merda, pensou. Era um flyer. Hoje. Festa punk. Molhou o rosto com a água fria da chuva. Foda-se. Cadelinhas underground, aí vou eu.

b: "bORIS yELTSIN eRA pREZA"

Top 10 para se descabelar na pista
"Naked Girl Falling Down The Stairs" - The Cramps
"Never Change" - Oblivians
"Shake-In" - Flaming Sideburns
"New Rose" - Damned
"Crying" - Elvis Presley
"Pump It Up" - Elvis Costello
"War Pigs" - Black Sabbath
"Sofre" - Tim Maia
"É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo" - Erasmo Carlos
"Back To Black" - Amy Winehouse

10 FILMES

Butch Cassidy and Sundance Kid
- Eles não desistem nunca em continuar suas sinas de ladrões errantes. E é, claro, um filme sobre amizade
The Carlitos Way (O Pagamento Final)
- Carlito Brigante é um traficante que tenta deixar de ser traficante, mas tudo conspira contra. Clássica história de faroeste transposta para o mundo violento e drogadizado da era discoteque
Meu Ódio Será Tua Herança
- Melhores diálogos curtos de um faroeste em um filme de violência crua praticada por bandidos sem nenhum caráter mas com o orgulho sincero dos fracassados
Pulp Fiction
- Trilha sonora fudidaça em cima de personagens já lendários
Casablanca
- Um dos filmes mais machos da história, incluindo o final mais machista dor de cotovelo bebum da história do cinema
The Lost Weekend (O Farrapo Humano)
- Filme sobre um alcoólatra que tenta largar a bebida por amor. Uma das melhores sequências de todos os tempos. O sujeito vai escrever uma carta suicida mas precisa continuar bebendo para se inspirar. Só que a bebida acabou.

Ele então carrega a máquina de escrever por toda a Nova Iorque para penhorar. Mas é dia de São Patrício e os donos das casas de penhores, na maioria descendentes de irlandeses, fazem feriado. Então ele reclama: E os judeus? Fecham em troca dos irlandeses fecharem no Yom Kippur
Noites Vazias
- Só assisti uma vez. Mas me disseram que é benvenuttiano. Até por ter o ator Mário Benvenutti. Que não era meu parente, diga-se
O Estranho Sem Nome
- Um filme em que o sujeito chega para vingar a morte de outro, sobrenatural, e muda o nome da cidade para HELL e promovem o anão que todos debochavam para xerife só pode ser um clássico

Fahrenheit 451

- Clássico dirigido por François Truffaut em cima do livro de Ray Bradbury. Bombeiros queimando livros em um um mundo onde é proibido dirigir abaixo dos 90 km por hora

Stalag 17
- Um filme que termina com a seguinte frase - "E se algum dia me cruzar com algum de vocês na rua, por favor finjam que não me conhecem que eu faço o mesmo" - só poderia estar aqui nesta lista
10 ANTI-HERÓIS
Mickey Rourke em Rumble Fish
Richard Burton em Ratos do Deserto
Gary Oldman em Sid & Nancy
William Holden em Stalag 17
Charles Bronson em Era uma Vez no Oeste
John Wayne me Rastros de Ódio
Paul Newman em O Indomado
Marlon Brando em Sindicato dos Ladrões
James Dean em Vidas Amargas
Sean Penn em Além da Linha Vermelha

ÉBRIOS CAMARADAS
O Boris Yeltsin era preza. Imagina que um dia ele parou de beber, se deu conta que era presidente da Rússia e renunciou. Mas não conheci pessoalmente. Dos que conheço pessoalmente, não são legais. Bêbados nunca são legais.
A não ser quando estão bêbados. Mas garanto que são bem mais interessantes que os sóbrios. Esses realmente podem ser um porre quando querem. Tá. Coloca o os irmãos Gallagher aí. Afinal alguém tem que achar legal estes dois escrotos.

fESTA pUNK

Era só mais uma blitz. Como qualquer outra. Documentos do automóvel. Carteira de habilitação. Rotina. De dentro do carro Lúcio não notava nada.
Do lado de fora a marofa de maconha circundava os PMs. Desce do carro, magrão! Lúcio, contrariado, desce. Mãos na parede! Lúcio coloca as mãos num muro de tijolos na Loureiro da Silva.
PMs filhos da puta! Porra do caralho, filhos de uma puta! Querem o que? Revistam Lúcio de cima a abaixo. O mais moreno é calmo. O branco é nervoso. Baixa as calças, berra o branco. Lúcio não baixa. Baixa as calças, porra! Lúcio baixa as calças. Nada.
Lúcio, inflamado, esbraveja. Abuso de autoridade, não é? Tão abusando, não é? Achando que eu sou um mané, meu? Quando levanta as calças, uma ponta de béqui cai do bolso interno das calças ao lado do coturno do moreno. O branco bate com o cacetete atrás do joelho de Lúcio. Ele cai de no chão.
Abuso de autoridade é, magrão? Vamos agora pro distrito, seu merdinha. Jogam Lúcio no banco de trás da viatura e se dirigem ao Palácio da Polícia na Ipiranga. E o meu carro? Ainda resmunga Lúcio. Teu carro deixa aí pra recolher. Não é problema nosso. É da prefeitura.
Sozinho numa sala do Palácio, sem os tênis e a cinta das calças, Lúcio se lembra da bolota que guardou na meia. Brigadianos de merda. Nem revistar o cara direito sabem. Olha para os lados só para ter certeza e não vê ninguém por perto. Pega a bolota da meia e engole com plástico e tudo. Talvez saia inteira do outro lado. Já fez isso antes.
Saiu limpinha do outro lado. Passou uma tarde lavando merda até achar a maconha, mas achou. Bem lavadinha, dentro do plástico, estava tão boa quanto antes. Chamou Cássio e Fúlvio naquele dia para fumarem o béqui da merda, como assim chamaram aquele.
Muita merda tinha saído de seu rabo desde então. Aquela seria mais uma. Seria. Ela não sairia. O saquinho plástico arrebentou no estômago. Lúcio começou a ver tudo girando. Pensou que ia desmaiar. Vomitar. Pirar.
Alguém apareceu. Um rato. Devolveu os tênis, a cinta e os documentos. Vai embora daqui, boca aberta. Não queremos nada com chinelão. Apontou um caminho que Lúcio seguiu cambaleando. Sentiu um pé na bunda e a grama da rua na cara. Levantou e saiu flutuando pela Ipiranga. As luzes dos automóveis riscando seus olhos.
Duas horas depois estava sentado no seu carro no mesmo lugar na Loureiro. A rádio ligada tocando uma fita cassete do Elvis Costello. It's the element... lalalá! Chovia.
Ligou o carro e o limpador de pára-brisa. Um papel ensopado se mexia de lá pra cá. Achou que era uma multa. Merda, pensou. Era um flyer. Hoje. Festa punk. Molhou o rosto com a água fria da chuva. Foda-se. Cadelinhas underground, aí vou eu.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

aGRESTE pSICODÉLICO*

POR CRISTIANO BASTOS

A trilha em busca das origens de Paêbirú, o disco maldito de Lula Côrtes e Zé Ramalho, hoje o vinil mais caro do Brasil

No dia 29 de dezembro de 1598, os soldados liderados pelo capitão-mor da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, encalçavam índios potiguares quando, em meio à caatinga, nas fraldas da Serra da Copaoba (Planalto de Borborema), um imponente registro de ancestralidade pré-histórica se impôs à tropa. Às margens do leito seco do rio Araçoajipe, um enorme monólito revelava, aos estupefatos recrutas, estranhos desenhos esculpidos na rocha cristalina.

O painel rupestre se encontrava nas paredes internas de uma furna (formada pela sobreposição de três rochas), e exibia, em baixo-relevo, caracteres deixados por uma cultura há muito extinta. Os sinais agrupavam-se às representações de espirais, cruzes e círculos talhados, também, na plataforma inferior do abrigo rochoso.

Inquietado com a descoberta, Feliciano ordenou minuciosa medição, mandando copiar todos os caracteres. A ocorrência está descrita em Diálogos das Grandezas do Brasil, obra editada em 1618. O autor, Ambrósio Fernandes Brandão (para quem Feliciano Coelho confiou seu relato), interpretou os símbolos como "figurativos de coisas vindouras”. Não se enganara. O padre francês Teodoro de Lucé descobriu, em 1678, no território paraibano, um segundo monólito, ao se dirigir em missão jesuítica para o arraial de Carnoió. Seus relatos foram registrados em Relação de uma Missão do rio São Francisco, escrito pelo frei Martinho de Nantes, em 1706.

Em 1974, quase 400 anos depois da descoberta do capitão-mor da Paraíba, os tais “símbolos de coisas vindouras” regressariam. Dessa vez, no formato e silhueta arredondada de um disco de vinil. A mais ambiciosa e fantástica incursão psicodélica da música brasileira – o LP Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol, gravado de outubro a dezembro daquele ano por Lula Côrtes e Zé Ramalho, nos estúdios da gravadora recifense Rozemblit.

Contar a história do álbum, longe da amálgama das pessoas, vertentes sonoras e, especialmente, da chamada Pedra do Ingá que o inspirou, é impossível. Irônico é que o LP original de Paêbirú também tenha se convertido em “achado arqueológico”, assim como a pedra, 33 anos depois de seu lançamento. As histórias sobre a produção do disco, como naufragou na enchente que submergiu Recife, em 1975 e, por fim, se salvara, são fascinantes.

A prensagem de Paêbirú foi única: 1.300 cópias. Mil delas, literalmente, foram por água abaixo. A calamidade levou junto a fita master do disco para que a tragédia ficasse quase completa. Milagrosamente a salvos ficaram somente 300 exemplares. Bem conservado, o vinil original de Paêbirú (o selo inglês Mr Bongo o relançou em vinil este ano) está atualmente avaliado em mais de R$ 4 mil. É o álbum mais caro da música brasileira. Desbanca, em parâmetros monetários (e sonoros: é discutível), o “inatingível” Roberto Carlos. O Rei amarga segundo lugar com Louco por Você, primeiro de sua carreira, avaliado na metade do preço do “excêntrico” Paêbirú.

A expedição no rastro dos mistérios e fábulas de Paêbirú se inicia em Olinda (Pernambuco). O artista plástico paraibano Raul Córdula me recebe em seu ateliêr. Na parede do sobrado histórico, uma cobra pictográfica serpenteia no quadro pintado por ele. A insígnia foi decalcada da mesma inscrição que, há milênios, permanece entalhada na Pedra do Ingá.

No mesmo ano de Louco por Você, 1961, o professor de geografia Leon Clerot apresentou o monumento a Córdula. O professor fizera o convite: “Me acompanhe, e verás algo que jamais se esquecerá”. Uma década depois, 1972, Raul Córdula se tornou amigo de José Ramalho Neto, o jovem Zé Ramalho da Paraíba. Os conterrâneos se conheceram no bar Asa Branca, que Córdula tinha na capital, João Pessoa: “O único boteco que ficava aberto na Paraíba inteira depois das oito horas da noite, à base de ‘mensalão’ pago à polícia”. O Zé Ramalho compositor, atesta, nascera no Asa Branca.

Córdula quis mostrar a Ramalho “algo que conhecera”, e organizou uma ida ao município de Ingá do Bacamarte, localidade conhecida antigamente como Vila do Imperador, por causa da passagem de Dom Pedro II por lá.

A localização de Ingá do Bacamarte é a 85 km de João Pessoa, caatinga litorânea, na zona de transição do Agreste para o Sertão. Para “fazer a viagem”, Córdula também convidou o artista recifense Lula Côrtes – jovem homem que já vivera muitas aventuras. Mas aquela, proposta por Raul, ainda não.

Nenhuma surpresa foi para o guia o fato de Côrtes e Ramalho ficarem tão maravilhados com a rocha lavrada quanto os expedicionários do capitão-mor da Paraíba. A charada talhada na parede de pedra lançava-lhes o provocante desafio: como decifrariam tais arcanos – nunca compreendidos e tão majestosos – numa música que, se não codificasse, ao menos devesse tributar à remota ancestralidade brasileira? Fora essa a centelha que incendiara as idéias. Acampados na caatinga sertaneja, frente a frente com a Pedra do Ingá, Ramalho e Côrtes se decidiram pela produção de um “álbum conceitual”.

O único jeito de conhecer lula Côrtes é ir visitá-lo no seu habitat: o ateliêr em Jaboatão dos Guararapes. “A Pátria Nasceu Aqui”, divulga a enorme placa na divisa com a capital, Recife. O apartamento onde mora, pinta e compõe com a atual banda, Má Companhia, tem vista frontal para o Oceano Atlântico.

É no primeiro apertar de mão que Côrtes deixa patente quem é: “espírito indômito”. Solta a frase para se pensar: “O mar e eu somos uma coisa só desde menino”. Aos 60 anos, sua voz é profunda e roufenha. A cabeça alva, um dia revestida de pretos cabelos mouriscos. E a magra, porém resistente, compleição física remete ao obstinado homem de O Velho e o Mar. Lula tem o velho de Ernst Hemingway, entretanto, como “altruísta demais”. Mais impressionado ficou com o nietzscheniano capitão Lobo Harsen, de O Lobo do Mar, romance de Jack London. Os arquétipos marítimos de London, de fato, combinam mais com ele: “Nasci à beira do mar. Ele me despertou para o cumprimento das fantasias. Nele, um dia, cacei baleias”, conta, jubiloso.

É esse homem que segue narrando a mais homérica jornada de sua vida, até agora: a concepção do álbum Paêbirú. Guiados pelo parceiro mais velho, Raul Córdula, Zé Ramalho e Lula Côrtes, recém-amigos, logo de cara perceberam a fantástica mística que as inscrições da Pedra do Ingá exerciam sobre a população às cercanias do sítio arqueológico.

Foi por intermédio da arquiteta, hoje cineasta, Kátia Mesel, sua companheira na época, que Lula Côrtes veio a conhecer Zé Ramalho. Junto, o casal abriu o selo Abrakadabra, pioneiro na produção de música independente no Brasil. A “sede” do selo ficava nas dependências de um prédio pertencente ao pai de Kátia, que, nos tempos da escravatura, fora uma senzala de escravos.

Para se mergulhar na saga de produção que foi Paêbirú, é obrigatório antes se falar da simplicidade do instrumental Satwa – o álbum gerido, um ano antes, por Côrtes e o violonista Lailson de Holanda.

É o début do selo Abrakadabra. Lula faz a estréia fonográfica da sua cítara popular marroquina, o tricórdio, instrumento que trouxera da recente viagem ao Marrocos com Kátia. Em Satwa, o violão nordestino de 12 cordas de Lailson dialoga em perfeita legibilidade com o linguajar oriental do tricórdio de Lula. É, provavelmente, o encontro mais fino entre o folk e a psicodelia do qual se tem registro gravado na música brasileira.

Lailson, premiado cartunista, traduz: “Satwa é expressão do sânscrito: quer dizer ‘interface e equilíbrio’”. Em 2005, a norte-americana gravadora Time-Lag Records reeditou Satwa, a partir da master original. Só o nome, na realidade, foi remodelado: Satwa World Edition. Como previsto, a edição esgotou como mágica.

Após Satwa, Lula tinha aprimorado suas concepções musicais. Achava-se apto para o grande projeto que andara tramando com o parceiro Zé Ramalho desde a visita à “pedra encantada”. Não perderam tempo e investiram em sérias pesquisas nas imediações. Eles caçavam a interpretação local, folclórica, mitológica sobre o admirável monólito escrito.

Nas adjacências vivia um grupo de índios cariris.

Os músicos foram até eles, atrás da peculiaridade do seu tipo de música. Ouvindo, descobriram que os traços de uma cultura africana tinham se fundido à sonoridade dos indígenas.

Se fundamentado em registros arqueológicos, Zé Ramalho e Lula Côrtes concordaram que, a partir daquele ponto, haveria um caminho, que partia de São Tomé das Letras (onde existem registros da mesma escrita rupestre traçada na Pedra do Ingá) e conduzia até Machu Picchu, no Peru. A trilha que os Cariris chamavam de “Peabirú”.

Chegar à mística Pedra do Ingá, hoje em dia, é fácil. Seguindo pela BR 101, no trecho Recife – Paraíba, as condições de tráfego são admissíveis, mesmo sem via duplicada. Pela estrada federal, as pequenas localidades vão se cruzando: Abreu e Lima, Goiana, Itambé, Jupiranga, Itabaiana, Mojeiro. Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Pedra do Ingá (Pedra Lavrada, ou Itaticoara) é um dos sítios arqueológicos mais soberbos do mundo. O arqueólogo Vanderley de Brito, da Sociedade Paraibana de Arqueologia, já aguarda, no local, minha chegada.

Segundo ele, as inscrições são originárias de sociedades pré-históricas, nativos anteriores aos encontrados no Brasil pelos europeus. “Certamente, essas gravuras” , diz, apontando o imenso painel de rocha, “são obra de sacerdotes ou pajés. Visavam ritos mágico-religiosos que visavam sortilégios para tribo”, Brito explica, com sua proficiência.

Próximo à pedra, sem ter de tocá-la, o arqueólogo continua sua explanação: “As representações registram o canto mágico solfejado pelos sacerdotes nas cerimônias”, prega. A pedra, na opinião do arqueólogo, seria, para os nativos, um “meio de comunicação” com os deuses (ou deusas) da natureza. A estimativa da ciência é a de que as gravações já estejam ali por volta de três a seis mil anos. “Datação exata não é possível, porque o monólito está em meio ao riacho”, esclarece o professor. Vestígios, por ventura, deixados pelos gravadores, ao cinzelar a pedra, foram arrastados no trespassar das águas do ancião Araçoajipe.

Dinossauros, o arqueólogo também confirma, habitaram a região. A probabilidade – nada prosaica – de me banhar no regato que, num dia qualquer da pré-história um tiranossauro rex sorvera metros cúbicos de água, passa agora de jornalismo a uma aventura que, com prazer, obrigo-me pôr em prática.

A água é morna. A sensação, arrepiante. “Animais de grande porte, como a preguiça e o tatu-gigante, no período mezosóico, habitaram a região: mastodontes, cavalos nativos e outros mega-animais também circulavam por aqui”, ele lembra. Submerso na tepidez do plácido regato pré-histórico, um túnel do tempo dentro de minha cabeça fazia a imaginação vagar por mundos arcaicos desaparecidos na vastidão temporal.

De frente para o mar, lula Côrtes gosta de acreditar na epopéia interplanetária narrada em “Trilha de Sumé”, a abertura de Paêbirú. “As gravações na Pedra do Ingá foram feitas com raio laser mesmo”, afiança o artista, que cantarola a introdução da música, o alinhamento dos planetas: “Mercúrio/Vênus/Terra/Marte/Júpiter/Saturno/Urano/Netuno e Plutão”. Os versos seguintes cantam a saga de Sumé, “viajante lunar que desceu num raio laser e, com a barba vermelha, desenhou no peito a Pedra do Ingá”.

A cada descoberta que faziam com suas explorações, Côrtes e Ramalho notavam, na variedade de lendas, que todas eram sobre Sumé – entidade mitológica que teria transmitido conhecimentos aos índios antes da chegada dos colonizadores. “Todos os indícios levavam a Sumé. Até as palmeiras da região, por lá, são chamadas de ‘sumalenses’”, observa Lula.

Para “libertar” os indígenas da crença pagã, os jesuítas pontificaram Sumé como “santidade”: virou São Tomé. O que explica, no Nordeste, o fato de muitos lugarejos terem sido batizados de São Tomé.

“Aqui é o lugar de São Tomé!”, os padres costumavam anunciar, ao chegar numa região nova.

Na Paraíba, resta uma cidade chamada Sumé. “Seja lá quem tenha sido Sumé, o que mais se sabe, no entanto, é que muito andou por essas bandas”, brinca Raul Córdula. A despeito da evangelização católica, a memória do Sumé indígena segue viva em todo o Nordeste.

A crença indígena diz que, quando o pacifista Sumé se foi embora, expulso pelos guerreiros tupinambás daquelas terras, deixou uma série de rastros talhados em pedras no meio do caminho. Os índios acreditam que Sumé teria ido de norte a sul, mata adentro, descerrando a milenar trilha “Peabirú” – em tupi-guarani, “O Caminho da Montanha do Sol”.

O historiador Eduardo Bueno, que passou anos de sua vida “veraneando” na praia de Naufragados, no sul da ilha de Santa Catarina, conta que tomou conhecimento da trilha lendo a aventura de Aleixo Garcia, o qual, após um tempo vivendo naquela praia, fora informado da existência de uma “estrada indígena” que conduzia até o Peru.

Após muitos verões chuvosos contemplando o lugar de onde o bravo Garcia havia partido em sua jornada épica, Bueno decidiu acompanhá-lo – mas na mente: “Mergulhei em todas as fontes que traziam relatos de sua viagem. Ficção não era. Tais fontes, embora, eventualmente, contraditórias entre si, eram da melhor qualidade”. O resumo mais interessante da história, diz, é o que define Peabirú como “um ramal da majestosa Trilha Inca, que ligava Cuzco a Quito e, por sua vez, outra corruptela – de ‘Apé Biru’”. Em tupi-guarani, Apé significa “caminho”, ou “trilha”, e Biru é o nome original do Peru. Portanto, Peabirú significaria “Caminho para o Peru”.

Havia três inícios principais desse caminho: um, partindo de Cananéia (litoral sul de São Paulo) e, outro, da foz do rio Itapucu, nas proximidades da ilha de São Francisco do Sul (litoral norte de Santa Catarina). Um terceiro saia da Praça da Sé, em São Paulo, seguia pela rua Direita, dava na Praça da República, subia a Consolação, descia a Rebouças, cruzava o Rio Pinheiros e... chegava no Peru. “Fico pensando porque nos roubaram o prazer de desfrutar essa história no colégio”, brinca Bueno. “Pensando bem, não foi esse o único prazer que nos roubaram, foi?”

Muitas vezes procurado, Zé Ramalho declarou que “não quer mais falar sobre o assunto Paêbirú” – para ele, encerrado. Em algumas entrevistas, no entanto, coteja Paêbirú à Tropicália. Um dos comentários é sobre o jeito artesanal, “como se costurado à mão”, que o álbum foi feito.

Agendo uma “audição comentada” de Paêbirú no ateliêr de Lula Côrtes. Enquanto, pacientemente, pinta o quadro de um farol, vai me explicando como tornaram possível (e viável) a engenhosa gravação do disco. O álbum – duplo – é dividido em quatro lados, de acordo com os elementos Terra, Ar, Fogo e Água.

Em “Terra”, o resultado “telúrico” foi conseguido com tambores, flautas em sol e dó, congas e sax alto. “Simulamos, com onomatopéias, ‘aves do céu’, ‘pássaros em vôo’ e adicionamos o berimbau, além do tricórdio”, ele conta. Contrariando a prática dos “encartes vazios”, a gama de instrumentos utilizados está descrita na ficha técnica de Paêbirú.

Efeitos de estúdio, nem pensar: “Só havia as pessoas, vozes e instrumentos”, comenta o artista. Certos efeitos, como o rasgar da folha de um coqueiro, por exemplo, muitos pensaram serem eletrônicos.

No lado “Ar”, além de “conversas”, “risadas” e “suspiros”, selecionaram-se harpas e violas sopros para músicas como “Harpa dos Hares”, “Não Existe Molhado Igual ao Pranto” e “Omm”. Em “Água”, as músicas têm fundo sonoro de água corrente. No mesmo lado, cantos africanos, louvações à Iemanjá e a outras entidades representativas do elemento. Na mais dançante, o baião lisérgico “Pedra Templo Animal”, Lula Côrtes toca “trompas marinhas”.Zé Ramalho pilota o okulelê.

“Fogo”, como adverte o nome, é a faceta incendiária de Paêbirú. A mais roqueira também. Entram sons trovejantes: o wha-wha distorcido do tricórdio e a psicopatia do órgão Farfisa em “Nas Paredes da Pedra Encantada”. “Raga dos Raios” conserva-se, mais de 30 anos depois, como a melhor peça de guitarra fuzz gravada no rock nacional: “Guitarreira elétrica & nervosa de Dom Tronxo”, diz a ficha técnica. Onde andará Dom Tronxo?

O encarte sofisticado de Paêbirú é obra de Kátia Mesel. Além de designer, ela fez a produção executiva do álbum. “São mais de 20 pessoas tocando no disco – basicamente, toda a cena pernambucana e boa parte da paraibana”, a cineasta enumera.

O disco só deu certo, na opinião de Kátia, porque foi feito com a alma e a criatividade soltas. “Num estúdio de dois canais, baby? Era o playback do playback do playback! A gente se consolava: ‘Se os Stones gravaram na Jamaica em dois canais, por que a gente não?’ Em ‘Trilha de Sumé’, Alceu Valença toca pente com papel celofane. [O disco] tem desses requintes”, graceja.

Foi o zelo de Kátia, na realidade, que garantiu o salvamento de 300 cópias de Paêbirú da enchente de 1975. Ela guardara parte da tiragem na Casa de Beberibe, onde o casal morava – o ambiente em que muitas canções foram, gradualmente, tomando forma. “A sorte é que eu tinha deixado os discos no andar de cima. São esses que, atualmente, valem uma fortuna mundo afora”, pontua Kátia.

Naquele tempo, Ramalho praticamente morava com o casal na Casa de Beberibe. A concepção gráfica do álbum foi obtida após muitas idas do trio à Pedra do Ingá. Na verdade, um quarteto, já que o irmão de Kátia, o fotógrafo Fred Mesel, seguia junto em algumas viagens. “Eu filmava em Super 8 e Fred tirava fotos da pedra com filme infravermelho”, ela conta. A técnica fotográfica explica a tonalidade azul-cítrica da capa e da parte interior de Paêbirú.

Especial atenção foi dada à ficha técnica. No encarte central, fotos de todas as pessoas que participaram das gravações. Um detalhe é que todos os títulos foram montados à mão, um a um, em letra set. A diferença é que, a essa altura, Kátia era mais experiente: além de Satwa, também produzira a arte do único álbum de Marconi Notaro, No Sub Reino dos Metazoá-rios (1973). “Para lançar Paêbirú, criamos o selo Solar”, acrescenta.

As substâncias psicodélicas, obviamente, foram muito importantes durante o processo de composição. Para Lula Côrtes, no entanto, só de estar perto da Pedra do Ingá, é possível sentir o xamanismo emanando do monumento rochoso: “Comíamos cogumelos mais como ‘licença poé-tica mental’”, justifica o artista.

Crosby, Stills and Nash, T-Rex, Captain Beefheart, Grand Funk Railroad e The Byrds eram as bandas mais ouvidas pelo grupo na época. Em meados da década de 1970, a maquiagem do glitter rock já estava borrada e, nos Estados Unidos, a semente punk aflorava nos buracos sujos de Nova York. A disco music ensaiava os primeiros passos de dança. Psicodelia, no mundo, era coisa ultrapassada: encapsulara-se nos remotos anos 60.

Zé da Flauta tinha 18 anos quando conheceu Lula e Kátia. No auge da repressão, a Casa de Beberibe era o templo da liberdade e da contracultura. “Aprendi muito sobre arte. Lá se conversava sobre tudo, inclusive se fumava muita maconha”, confirma Zé. Ele tocou sax na vigorosa “Nas Paredes da Pedra Encantada”. “Jamais me esquecerei, aliás: foi a primeira vez que entrei num estúdio e gravei profissionalmente como músico.”

Outro que teve “participação relâmpago” foi o paraibano Hugo Leão, o Huguinho. Ele vinha das bandas The Gentlemen e os Quatro Loucos, nas quais Zé Ramalho tocava guitarra. Ramalho o chamou para participar como tecladista do “ousado projeto”. Sua atuação ficou imortalizada no disco. São dele os riffs de órgão Farfisa em “Nas Paredes...”

Para assumir a bateria, Ramalho recrutou Carmelo Guedes, outro parceiro seu nos Gentlemen. A mágica, lembra Huguinho, começou logo que entraram no estúdio. As bases foram criadas na hora, como num susto: “Cravei um tom maior: Mi!

O sonho começara. Os segredos da Pedra do Ingá, finalmente, pareciam que seriam desvendados. A guinada sonora ainda ecoa pelo espaço”, acredita.

Em minha jornada, sigo para a capital paraibana. Em João Pessoa, Telma Ramalho, a prima mais jovem de Zé Ramalho, diz não esquecer uma passagem da pré-adolescência: a mãe, Teresinha de Jesus Ramalho Pordeus, professora de História, conversava com o sobrinho em seu escritório: “Zé contava a ela como se desenrolavam as gravações de Paêbirú”.Uma lembrança viva é ter ouvido o disco aos 12 anos: “Não entendi nada. Só lembro de ‘Pedra Templo Animal’ e ‘Trilha de Sumé’, as mais pop”, diverte-se.

Outra memória é ter apresentado uma réplica da Pedra do Ingá na feira de ciências do colégio. A trilha sonora foi Paêbirú. “Levei a vitrolinha e botei para rodar.” Telma faz a contundente revelação: “Tive caixas de Paêbirú em casa. Uma verdadeira fortuna cultural e financeira”.

Para Cristhian Ramalho, filho de Zé Ramalho e afilhado de Lula Côrtes, Paêbirú também tem significação especial: “Meu pai me levava à Pedra do Ingá quando criança. Ele ia para achar inspiração”. Sem dúvida, diz Cristhian, Paêbirú e a Pedra ainda exercem influência sobre a sua obra. “Em 1975, ele escreveu uma poesia muito bonita, que diz: ‘Venho de uma dessas pedras rolantes’. Houve, por parte dele, grande misticismo envolvido na minha chegada”, conta, orgulhoso, o filho.

Uma das pessoas que, na época do lançamento, compraram o álbum foi a arquiteta Terêsa Pimentel. Aos 14 anos, em 1974, ela não sabia ao certo o que procurava na sua vida. Apesar disso, sabia "o que não queria". "Ouvíamos os locais: Ave Sangria, Marconi Notaro, Flaviola & O Bando do Sol, Aristides Guimarães, o 'udigrudi' nordestino. Vendi minha bicicleta Caloi verde-água para comprar Paêbirú. Hoje, sou feliz por ter vendido a bicicleta e ter adolescido naquela atmosfera", conta. Terêsa é irmã do músico Lenine, ao qual Lula Côrtes presenteou com sua última cópia de Paêbirú, há alguns anos. “Para tirar uns samplers”, diz Lula.

De Jaboatão dos Guararapes, eu e Lula seguimos para a casa de Alceu Valença, no centro histórico de Olinda. Lula bate à porta do casarão. Festa quando Valença cruza o amplo saguão para saudar Lula, velho parceiro em Molhado de Suor, um dos seus primeiros discos.

"A gente tocou em ‘Danado para Catende’, que depois virou 'Trem de Catende'", Alceu conta. "Até então Lula só compunha, mas não cantava. Fiz a cabeça do pessoal da Ariola: 'O cara é o máximo!' Na gravadora, ninguém tinha a menor idéia de quem era o cara, muito menos que fizera algo como Paêbirú."

Souberam, no entanto, quando o álbum Gosto Novo da Vida, de Lula Côrtes, foi premiado como "a melhor venda do ano da gravadora Ariola", em 1981. Em três meses, vendeu 32 mil cópias. Depois, teve sua reedição emperrada por causa de um processo movido pela Rozemblit, que alegava plágio em uma música.

"Foi o primeiro artista que vi fumar no palco, no Teatro João Alcântara", diz Alceu.

Ambos riem. Lula acende um cigarro.

"Participei de Paêbirú. Dei uns gritos lá", resume Alceu.

"Foi na reza de 'Não Existe Molhado Igual ao Pranto'", Lula emenda.

"O estúdio da Rozemblit tinha acústica maravilhosa. Era o ambiente mais natural possível: cheguei e fui me deitando num canto. A banda tocava. Sonolento, me espreguicei: 'Ommmmmmmm...'."

"Foi como num mantra. Quando Alceu começou, todo mundo veio atrás e não parou mais", conclui Lula.

É nessa tradição do "livre espírito" que Paêbirú foi realizado. No texto homônimo – uma raridade datilografada só encontrada no interior dos LPs sobreviventes da cheia e escrito depois da ingestão de cogumelos colhidos no meio do caminho –, Lula Côrtes nos dá uma última idéia da grande aventura que foi Paêbirú:

"Nós caçávamos o passado, e os corações se encheram de esperança com aquela visão. O caminho que havíamos abandonado mais atrás era o das Pedra de Fogo, outro pequeno aglomerado quase sem nenhuma chance de vida. A água é muito escassa. Conversávamos sobre as pedras. E ao longo, no horizonte, o lombo prateado da Borborema desenha curvas leves, demonstrativas de sua imensa idade. Os nativos tinham mapas nos rostos, o sol lhes rachou os lábios como racha a terra, as pedras duras e afiadas que dificultavam a caminhada lhes endureceu o riso. A informação parecia estar correta. Achamos o regato e acompanhamos o sentido. A água era clara e bastante salgada. A irrealidade se apossava cada vez mais dos nossos corpos e mentes, e toda a lenda que nos havia enchido os ouvidos, até aquele dia, parecia florar de tudo."

*Reportagem publicada na edição de setembro da Rolling Stone

terça-feira, 23 de setembro de 2008

tHE dICTATORS - gO gIRL cRAZY! (1975)

Selo / Epic
Produção / Murray Krugman - Sandy Pearlman
Projeto gráfico / David Gahr
Nacionalidade / EUA
Duração / 34:48

Em 1975, dois rapazes norte-americanos, Legs McNeil e John Holmstrom, gastaram a maior parte do seu verão ouvindo o álbum Go Girl Crazy!, dos Dictators.

Embebedavam-se todas as noites e acabavam aos gritos cantando cada uma das canções do disco. Não muito tempo depois, estes dois rapazes foram os fundadores da revista Punk, uma das bíblias desse movimento anárquico que eclodiu nos últimos anos da década de setenta.

Tal como os New York Dolls, os Dictators eram precedentes do punk. Anos antes de se ouvir falar dos Ramones, Dead Boys e dos Sex Pistols, Dick Manitoba, a "arma secreta" dos The Dictators, já cantava sobre vomitar comida no McDonalds, beber cerveja e assistir a filmes duvidosos de série B.

Go Girl Crazy! foi um dos primeiros discos punk, muito antes de se ouvir falar dessa definição. Mas oferecia muito mais: sons de garage surf e heavy metal – o guitarrista Ross "The Boss" Funichello fundou muito mais tarde o Manowar. Os The Dictators conseguiram inúmeros admiradores, em parte graças ao sentido de humor da banda.

O disco incluía todos os ingredientes para ser um êxito, mas os acontecimentos tomaram um rumo infeliz. Pouco tempo depois do lançamento do álbum a Epic despediu-os: má gerência, turnês mal planejadas e brigas entre os membros da banda não ajudaram.

O álbum não atraiu grande interesse até 1977, momento em que bandas como os Ramones tinham já polido a sua própria marca punk. Os Dictators foram marginalizados. No entanto, Go Girl Crazy! chegou primeiro.

* De 1001 Discos para ouvir antes de morrer (Sextante), de Robert Dimery.

Com licença, mas Next Big Thing merece ir direto para outra lista: a dos discos mais divertidos. Poucos álbuns são tão juvenis como esse. Na boa, Handsome Dick Manitoba é 'o cara'. Letra assim não é para qualquer um:

I drink Coca cola for breakfast
I've got Jackie Onassis in my pants
I'm never gonna watch channel 13
Education ain't for me
I'm so drunk
I can barely see
(
"Two tube man")

tHE lAST bIG tHING

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wALL oF sOUND

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

uLTRA-wIDE-sTEREO-bIZARRE-pOWER-pOP-sOUND!

Falando em glam rock, de todas as matizes do estilo – da cool à 'flamboyant' –, a mais estranha (para não dizer bizarra), certamente foi a que revelou o octeto londrino Wizzard.
Não dá para sair íntegro depois de uma audição inteira do supermegalomaníaco Brew (Harvest), de 1973. Alguém definiu o som desse disco como "ultra wide stereo bizarre power pop sound". Eu achei préza.
Já outro comentou que ouví-lo poderá exigir ingestão de sais de frutas: "Quando ouvi o disco, em 1973, foi assim", relembra um aventureiro num blog - 35 anos depois da experiência.
Brew é a estréia da banda inglesa Wizzard, comandada por Roy Wood, ex-Electric Light Orchestra, a ELO. A mixagem suja e complexa do disco é a receita que repugna estômagos menos resistentes.
É muito diferente, por exemplo, do fino trato dado por Tony Visconti às produções de Marc Bolan e David Bowie. Ou do toque hiperpop da dupla de produtores Chin & Chapman, manufaturadores de mega hits glam como "Tigger Feet" (Mud) e "Can the Can" (Suzy4).
O formato de Brew é glitter, mas o louco álbum vai bem além na viagem: emula antigos compactos de 78 rpm, música clássica (com citações de peças de Tchaikovsky, Bach, Schubert), rock anos 50, marching bands. Fora uma porção de coisas que só ouvindo... É um ótimo disco para se retirar samplers malucos.
De pontual mesmo só as citações de Elvis Presley, Edie Cochran e Phill Spector. Outras obssessões no som da Wizzard: juke boxes, o som alucinado das Dixielands, cacofonias. Mas nada é feito de improviso. O disco, milimetricamente controlado no estúdio, foi ensaiado à exaustão.
Os arranjos de cordas e de metais são obra de Wood, também vocalista e produtor de Brew. Alan Parsons cuida da engenharia de som. "See my Baby Jive", a mais rodada do Wizzard, não está no álbum. Assista o videotape no post de cima.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

lEÃO: "a gUINADA sONORA eCOA pELO eSPAÇO"*

Nas décadas de 60 e 70, o paraibano Hugo Leão, o Huguinho, fez fama como guitarrista e vocalista do grupo The Gentleman - grande sucesso na Paraíba.
Zé Ramalho se iniciou na linguagem do rock com os Gentelmen e Os 4 Loucos, outra das bandas de Leão. Ainda hoje, os Gentlemen tem um extenso fã-clube Brasil afora.
Huguinho teve "participação relâmpago" em Paêbirú; relâmpago, mas literalmente incendiária. Ramalho o chamou para participar como tecladista do ousado projeto. Sua atuação ficou imortalizada no álbum com os riffs selvagens do órgão Farfisa de "Nas paredes da pedra encantada".
Para assumir a bateria, Ramalho recrutou Carmelo Guedes, outro parceiro seu nos Gentlemen. A mágica, rememora Huguinho, começou logo que entraram no estúdio. As bases foram criadas na hora, como num susto.
"Cravei um tom maior: MI! O sonho começara. Os segredos da Pedra do Ingá, finalmente, pareciam que seriam desvendados. A guinada sonora ainda ecoa pelo espaço", acredita o músico.
O primeiro álbum de Hugo Leão, Coração de Brasil, foi produzido por Zé Ramalho. No LP A Peleja do Diabo com o Dono do Céu, de Ramalho, tocou teclado. Huguinho também arranjou os primeiros discos da cantora Cátia de França e, hoje, leva uma carreira solo.
Quais suas lembranças de ter participado das gravações de Paêbirú?
Hugo Leão - Na época eu era o contrabaixista da banda de baile The Gentlemen. Zé Ramalho era o guitarra-solo. Fazíamos muito sucesso na Paraíba e Recife, especialmente no famoso Encontro de Brotos do Clube Internacional. Zé me chamou para participar do 'ousado projeto'. Convidou também o baterista Carmelo Guedes. Tocamos na furiosa "Nas Paredes da Pedra Encantada".
As batidas de fogo de Carmelo abriram caminho para a viagem: depois, precisei ouvir todos os sete minutos, inúmeras vezes, para escrever as cifras da música. Uma vez que Zé ainda ia colocar o contrabaixo e sua voz, era preciso encaixar tudo nos devidos tempos.
Foi maravilhoso e eterno. De nós explodia criatividade e talento. Uma porrada de som que ainda anda pelos espaços. Paêbirú é antológico e universal.
Como chegaram aos riffs de "Nas Paredes..."?
Hugo Leão - Quando ferrei o acorde "MI" senti que tudo ia acontecer. Usei uma quarta de Mi para chamar a melodia que, num repente, soou em forma de 'chama rebelde', difícil de apagar naquele momento. Dei asas ao sonho e fui: os acordes harmônicos de base ferrada foram surgindo levados pela inspiração.
Estava tudo muito perfeito. Então usei os seguintes tons de passagem: E/ G#-/ D/ A/ C/ A#/ G/ F/ C/ E. Quando Zé Ramalho pegou aquele som picotado, de uma viola de doze nas oitavas e transportou para o contrabaixo, pronto - aí os cometas se alinharam. O baixo tocado por Zé mostra que ali foi criado o rock/repente. Foi formidável - é formidável.
E a aventura de fazer rock na Paraíba, se no resto do Brasil já era complicado?
Hugo Leão - Nos tínhamos a melhor banda de baile do momento. Durante cinco anos, fomos eleitos pela crítica como a melhor banda do Norte e Nordeste. Tocávamos de tudo. Somos do tempo dos Beatles. Depois chegou aos nossos ouvidos a Jovem Guarda com Roberto, Erasmo e grupos como Renato e Seus Blue Cap's, com as famosas versões de Rossini Pinto.
The Fever's, Os Incríveis, Rolling Stones, The Who quebrando todos os instrumentos. Também quebramos num baile no Esporte Clube do Recife. Foi lindo, mais ficou muito caro (risos)!
Levamos uma forte pancada na cabeça quando assistimos ao filme Woodstock. Era um sonho: exatamente o que queríamos fazer - criar. Em um bar na Paraíba chamado O Boiadeiro, apresentamos um show escrito por Zé Ramalho. Eu era o baixista, Carmelo Guedes o baterista e, Zé Ramalho guitarra e viola. A mesma 'equipe' de "Nas Paredes da Pedra Encantada".
O nome do espetáculo era Esse Rock Me Inspira e me Aquece Nesse Inverno Frio e Caudaloso. Bar Lotado. Outra música que ainda soa pelos ares é o rock "Made In PB", composição de Zé Ramalho que está em No Sub reino dos Metazoários, do Marconi Notaro.
*Na foto, da esquerda para a direita: Ramalho, Joca, Walmir, Carmelo, Enilton, Celso e Huguinho (Hugo Leão)

domingo, 14 de setembro de 2008

lULA cÔRTES: "sOU uM fACTÓTUM"

Qual a importância de Paêbirú para a música brasileira?

Lula Côrtes - Na época em que foi feito, nenhuma. Mesmo após o lançamento, a recepção foi fria. As pessoas não estavam preparadas pro espírito do disco. Paêbirú é um disco de "hoje", na verdade.

Como foram criados os efeitos do disco ?

Lula Côrtes - Se costuma pensar que a maioria dos efeitos são eletrônicos, mas, na realidade, são panelas com água, pios de caça, vozes humanas, chocalhos de cabra. A introdução que antecede o saxofone de "Segredo de Sumé" é uma corneta de vender picolé. Louco, né?!

O que descobriram de mais legal fazendo Paêbirú?

Lula Côrtes - A amizade e, depois, harmonia pra continuarmos trabalhando em vários álbuns. Cada qual, após Paêbirú, seguiu seu caminho: Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Lailson, Zé da Flauta, Jarbas Maris.

Que bandas vocês ouviam?

Lula Côrtes - It's a Beatifull Day, Crosby, Stills and Nash, Tyranossaurus Rex, Neil Young, Captain Beefheart, Grand Funk Railroad, e mais uma penca de coisas…

Alguma obra foi modelo para as "loucuras" do grupo?

Lula Côrtes - Os discos que mais influenciaram foram os temáticos: Viagem ao Centro da Terra, Ozzy Bizza, Frank Zappa & Mothers of Invention. Dos brasileiros, basicamente Mutantes. Foi Duprat quem abriu nossas cabeças.

Qual é a energia da Pedra do Ingá?

Lula Côrtes - A energia do mistério, do lendário que ficou no inconsciente coletivo e gerou muitas lendas mal-assombradas... Ainda hoje procuro outras formas de energia no local.

O que há de mais revelador em toda essa história?

Lula Côrtes - Às vezes, estamos num lugar tão raro, em beleza e mística, que nem nos damos conta. No som, a fusão do folclore com a abordagem livre, vanguardista e psicodélica que tivemos.

Depois de Paêbirú, enveredou por qual trilha musical?

Lula Côrtes - O caminho do RPB: Rock Popular Brasileiro. Já trabalho com a banda Má Companhia, de Recife, há 17 anos.

E hoje?

Lula Côrtes - Hoje sou um eterno futucador de coisas, um factótum.

mETAL mACHINE mUSIC

a cARNICEIRA dOS pÂNTANOS fRIOS

sábado, 13 de setembro de 2008

oS aNOS lISÉRGICOS dA mÚSICA pERNAMBUCANA

Cena setentista ganha documentário acurado da época

Ricardo Schott, Jornal do Brasil

Com dois meses de entrevistas, o documentário Nas Paredes da Pedra Encantada, da produtora Flesh Nouveau! Filmes, do jornalista Cristiano Bastos e do historiador Leonardo Bonfim, conta histórias de uma das cenas mais mitológicas e menos conhecidas da música pop brasileira: a psicodelia pernambucana e (por extensão) paraibana dos anos 70.

Que, no decorrer do documentário – ainda em fase de finalização – aparece sustentado por dois fortes pilares. O principal é o álbum duplo Paêbiru: Caminho da Montanha do Sol, de Côrtes e Zé Ramalho, lançado em 1975 pela gravadora recifense Rozemblit.

No pano de fundo, surge o sítio arqueológico que inspirou o álbum: a Pedra do Ingá (a tal "pedra encantada"), no município paraibano de Ingá do Bacamarte, com estranhos desenhos feitos em baixo-relevo que teriam sido feitos por um certo "cacique de pele colorida", Sumé, que veio do espaço para orientar os indígenas, antes da chegada dos colonizadores. Nas paredes da pedra encantada, os segredos talhados por Sumé, canção de Côrtes e Ramalho, veio dessa lenda, assim como toda a produção da dupla.

– Inicialmente, quisemos só falar a respeito do disco. Mas, quando conhecemos o lugar, achamos tudo fantástico e quisemos fazer um road movie, relatando a viagem – diz Bonfim, que saiu de Porto Alegre, onde mora, para encontrar Bastos, que vive em Brasília, e pôs-se a rodar com ele Pernambuco e Paraíba numa Kombi. – Fomos ao agreste, conversamos com pessoas que conhecíamos na hora e que contavam as lendas sobre a pedra. Há quem diga até que há uma chave que abre a pedra e que tem um tesouro dentro dela. O Côrtes viajou com a gente e foi mostrando os lugares. Parou até nos campos em que eles e os amigos catavam cogumelos para fazer chá.

Do cenário musical da época, saiu pelo menos um artista de renome – justamente Zé Ramalho, cuja fase lisérgica foi recentemente dissecada no CD Zé Ramalho da Paraíba, produzido entre 1973 e 1977 e lançado apenas agora. Côrtes, ao lado de nomes como Lailson de Holanda (com quem fez o ultrapsicodélico e independente Satwa, álbum de 1973), Marconi Notaro (responsável pelo não menos lisérgico álbum No sub-reino dos metazoários, do mesmo ano), o grupo Ave Sangria, do qual saiu Paulo Rafael, guitarrista de Alceu Valença, e a cineasta Kátia Mesel (então mulher de Côrtes) pertencem à relação de nomes que construíram a cena e, mesmo não alcançando sucesso popular, são cultuadíssimos.

– Côrtes é artista 24 horas por dia. Se houvesse mais pessoas como ele, o mundo seria mais poético e musical – diz um entusiasmado Alceu Valença, que, mesmo tendo se mudado para o Rio em 1970, participou de Paêbiru, tocando instrumentos de percussão improvisados, como pentes em papel celofane. – O Lula tocava um instrumento que comprou em Marrocos, o tricórdio, e tinha uma voz bem blues. E era, como ainda é, um grande poeta.

Paêbiru, o mais cultuado desses discos, teve quase todas as suas cópias perdidas numa enchente do Rio Capibaribe, em 1975 – sobraram apenas 300 exemplares, que hoje não trocam de mão por menos de R$ 4 mil. Para Bastos, Nas paredes da pedra encantada faz justiça a uma cena que nunca teve atenção que mereceu. Ele crê que o mangue beat ignorou a geração dos anos 70.

– Levando em conta que, nos anos 80, não aconteceu muita coisa lá, é uma falta de sensibilidade histórica. Alguns dos primeiros discos independentes do Brasil saíram dali – diz o jornalista, revelando que a cena guardava, até devido ao contexto hippie, algumas semelhanças com a vida comunitária de grupos mais conhecidos, como os Mutantes e os Novos Baianos.

Com parte do material pronto, a dupla pretende editar tudo em Porto Alegre e lançar Nas paredes da pedra encantada em 2009.

– Investimos tudo do nosso próprio bolso. Agora preciso recuperar minha poupança e meu carro – brinca Bastos, que só lamenta o fato de Zé Ramalho, outro grande personagem da cena, ter se recusado, educadamente, a falar para o documentário – Apesar de ele fazer parte do contexto, para Ramalho isso tudo é assunto encerrado. Ele fez Paêbiru, mas renega o disco.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

zÉ dA fLAUTA

Zé da Flauta é um dos "personagens" de Paêbirú. Em 1974, participou da gravação do LP gravado em quatro canais, na Rozemblit, pela dupla Zé Ramalho Lula Côrtes.

O disco ainda teve grandes participações de músicos como Geraldo Azevedo, Ivinho, Paulo Rafael e Dikê. É de Zé o sax de "Nas Paredes da Pedra Encantada", na realidade, sua primeira gravação profissional.

Iniciou sua carreira artística em 1970, na cidade de Recife, tocando com músicos como Don Tronxo (guitarrista da trovejante "Raga dos Raios"), Agrício Noia, Robertinho do Recife, Marconi Notaro, Flaviola. Ele nos conta um poucas de suas histórias daquele tempo - e de agora.

Depois, veja o Zé no videoclip de "Vou Danado pra Catende". O Zé é o "cara da bata".

Zé, tudo bom?!

Zé da Flauta - Tudo ótimo, como sempre!

Como era o ambiente das gravações e composição de Paêbirú, dá pra lembrar?

Zé da Flauta - Eu estava com 18 anos quando decidi ser músico profissional. Foi quando também conheci Lula Côrtes e Kátia Mesel, por intermédio de uma prima que era amiga deles. Logo em seguida, conheci Lailson no Conservatório Pernambucano de Música, onde me iniciei nos estudos. Vivíamos na repressão militar, religiosa e familiar e, a casa de Beberibe, onde Lula e Kátia moravam, era o verdadeiro templo da liberdade e da contra-cultura.

Um lugar onde aprendi muito sobre arte e liberdade de expressão. Lá se conversava e se fazia de tudo, inclusive se fumava muita maconha. Se falava muito sobre arte. Foi nesse ambiente que vi nascer Paêbirú e outros discos dos quais participei.

Ninguém sabia o mínimo de teoria musical: tocavamos por pura intuição e rebeldia. Eu mesmo estudava flauta e resolvi comprar um sax que fora de Felinho, um grande saxofonista da década de 50 em Recife. Felinho foi o criador da improvisação no frevo.

Me senti honrado por comprar tal instrumento. Mas, como não conhecia direito o saxofone, paguei por um objeto defeituoso que, na realidade, não servia nem como luneta. Era difícil tirar som naquele instrumento.

Eu não tinha uma boquilha boa e não encontrava a palheta certa. O que me lembro claramente é que cheguei na casa de Lula com ele debaixo do braço e, duas horas depois, estava no estúdio da Rozemblit gravando com ele e Zé Ramalho.

Nunca vou me esquecer disso, pois aquela foi a primeira vez que eu entrei num estúdio para gravar como músico.

Você toca com frequência na Europa. Já vieram lhe comentar sobre Paêbirú?

Zé da Flauta - Sim! Uma vez em Berlim, 2006. O pessoal de uma rádio, com uma intérprete brasileira. Perguntaram sobre Paêbirú e também sobre o grupo de heavy metal Hanagorick, daqui do interior de Pernambuco.

Esses caras fazem o maior sucesso por lá, são famosos. São de Surubim, a terra do Chacrinha.

Dá pra definir "udigrudi"?

Zé da Flauta - É apenas uma terminologia. Naquele caso, nos anos 70, não caracterizou um movimento musical. Era apenas um momento de excitação, perturbação, inquietação artística. Não foi uma idéia com manifesto, objetivo e consistência, como foi o mangue na década de 90.

Alguma história para nos contar de 33 anos atrás?

Zé da Flauta - Cara, são várias! O problema com a censura era grande, com a Polícia Federal, também. Para se fazer um show, tínhamos que fazer prévia para a polícia... Só então eles decidiam se tua banda podia ou não fazer o show, peça de teatro ou o que fosse.

Para se colocar um cartaz na rua, ou mesmo in dor, por exemplo, tinha que ter o carimbo da censura política e estética e, às vezes, isso só podia ser feito no dia do show.

O tricódio de Lula, que ele trouxe do Marrocos, virou um símbolo visual, sexual, sonoro da época. Todos os discos gravados por essa turma, inclusive o meu com Paulo Rafael, tiveram a participação de Côrtes.

Veja como ele dá um brilho especial em "Vou Danado Pra Catende", do Alceu Valença. Neste momento, estou escrevendo um livro de memórias que pretendo lançar no final de 2010.

E hoje?

Zé da Flauta - Ando tocando no meu estúdio, compondo trilhas para TV, filmes, peças de teatro, produzindo discos e artistas. Atualmente estou trabalhando com a SpokFrevo Orquestra, um grupo que ajudei a criar com o objetivo de mostrar o frevo apenas como linguagem musical, sem o folclore. Já tocamos na China, por toda Europa. Vamos para a Índia em outubro. Nós somos uma Big Band de frevo. Eu não toco na orquestra, apenas produzo. Nos assista.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

nAS pAREDES dA pEDRA eNCANTADA

pAÊBIRÚ, o dISCO mAIS cARO dO bRASIL


Redação Yahoo! Notícias

Na edição deste mês, a revista Rolling Stone tenta desvendar um dos mitos da história fonográfica brasileira, o álbum "Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol", gravado por Lula Côrtes e Zé Ramalho.
O vinil original de "Paêbirú" é o álbum mais caro da música brasileira, atualmente avaliado em mais de R$ 4 mil. O LP desbanca, inclusive, o disco "Louco por Você", de Roberto Carlos, avaliado na metade do preço.
"Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol" foi produzido em 1974 nos estúdios Rozemblit. Em 1975, uma enchente danificou mil cópias das 1 300 produzidas. A calamidade levou junto a fita máster do disco, fazendo com que ele se tornasse uma verdadeiro achado arqueológico 33 anos depois de seu lançamento.
A reportagem da Rolling Stone foi até o local que serviu de inspiração para o disco de Lula Côrtes e Zé Ramalho, guiado pelo artista plástico Raul Córdula, o guia da expedição dos músicos na época.
Foi na Pedra do Ingá, no município de Ingá do Bacamarte, localidade conhecida antigamente como Vila do Imperador, que Ramalho e Côrtes decidiram produzir o álbum conceitual. "As gravações na Pedra foram feitas com raio laser, simulamos com onomatopéias, 'aves do céu', 'pássaros em vôo' e adicionamos o berimbau, além do tricórdio", conta Côrtes.
A revista Rolling Stone já está nas bancas e traz a cantora Amy Winehouse na capa.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

aGRESTE pSICODÉLICO*

POR CRISTIANO BASTOS

A trilha em busca das origens de Paêbirú, o disco maldito de Lula Côrtes e Zé Ramalho, hoje o vinil mais caro do Brasil

No dia 29 de dezembro de 1598, os soldados liderados pelo capitão-mor da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, encalçavam índios potiguares quando, em meio à caatinga, nas fraldas da Serra da Copaoba (Planalto de Borborema), um imponente registro de ancestralidade pré-histórica se impôs à tropa. Às margens do leito seco do rio Araçoajipe, um enorme monólito revelava, aos estupefatos recrutas, estranhos desenhos esculpidos na rocha cristalina.

O painel rupestre se encontrava nas paredes internas de uma furna (formada pela sobreposição de três rochas), e exibia, em baixo-relevo, caracteres deixados por uma cultura há muito extinta. Os sinais agrupavam-se às representações de espirais, cruzes e círculos talhados, também, na plataforma inferior do abrigo rochoso.

Inquietado com a descoberta, Feliciano ordenou minuciosa medição, mandando copiar todos os caracteres. A ocorrência está descrita em Diálogos das Grandezas do Brasil, obra editada em 1618. O autor, Ambrósio Fernandes Brandão (para quem Feliciano Coelho confiou seu relato), interpretou os símbolos como “figurativos de coisas vindouras”. Não se enganara. O padre francês Teodoro de Lucé descobriu, em 1678, no território paraibano, um segundo monólito, ao se dirigir em missão jesuítica para o arraial de Carnoió. Seus relatos foram registrados em Relação de uma Missão do rio São Francisco, escrito pelo frei Martinho de Nantes, em 1706.

Em 1974, quase 400 anos depois da descoberta do capitão-mor da Paraíba, os tais “símbolos de coisas vindouras” regressariam. Dessa vez, no formato e silhueta arredondada de um disco de vinil. A mais ambiciosa e fantástica incursão psicodélica da música brasileira – o LP Paêbirú: Caminho da Montanha do Sol, gravado de outubro a dezembro daquele ano por Lula Côrtes e Zé Ramalho, nos estúdios da gravadora recifense Rozemblit.

Contar a história do álbum, longe da amálgama das pessoas, vertentes sonoras e, especialmente, da chamada Pedra do Ingá que o inspirou, é impossível. Irônico é que o LP original de Paêbirú também tenha se convertido em “achado arqueológico”, assim como a pedra, 33 anos depois de seu lançamento. As histórias sobre a produção do disco, como naufragou na enchente que submergiu Recife, em 1975 e, por fim, se salvara, são fascinantes.

A prensagem de Paêbirú foi única: 1.300 cópias. Mil delas, literalmente, foram por água abaixo. A calamidade levou junto a fita master do disco para que a tragédia ficasse quase completa. Milagrosamente a salvos ficaram somente 300 exemplares. Bem conservado, o vinil original de Paêbirú (o selo inglês Mr Bongo o relançou em vinil este ano) está atualmente avaliado em mais de R$ 4 mil. É o álbum mais caro da música brasileira. Desbanca, em parâmetros monetários (e sonoros: é discutível), o “inatingível” Roberto Carlos. O Rei amarga segundo lugar com Louco por Você, primeiro de sua carreira, avaliado na metade do preço do “excêntrico” Paêbirú.

A expedição no rastro dos mistérios e fábulas de Paêbirú se inicia em Olinda (Pernambuco). O artista plástico paraibano Raul Córdula me recebe em seu ateliêr. Na parede do sobrado histórico, uma cobra pictográfica serpenteia no quadro pintado por ele. A insígnia foi decalcada da mesma inscrição que, há milênios, permanece entalhada na Pedra do Ingá.

No mesmo ano de Louco por Você, 1961, o professor de geografia Leon Clerot apresentou o monumento a Córdula. O professor fizera o convite: “Me acompanhe, e verás algo que jamais se esquecerá”. Uma década depois, 1972, Raul Córdula se tornou amigo de José Ramalho Neto, o jovem Zé Ramalho da Paraíba. Os conterrâneos se conheceram no bar Asa Branca, que Córdula tinha na capital, João Pessoa: “O único boteco que ficava aberto na Paraíba inteira depois das oito horas da noite, à base de ‘mensalão’ pago à polícia”. O Zé Ramalho compositor, atesta, nascera no Asa Branca.

*Você lê esta matéria na íntegra na edição 24 da Rolling Stone Brasil, setembro/2008

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