quinta-feira, 29 de julho de 2010

mETEORANGO kID x nOVOS bAIANOS

"10 anos sem estudar, 10 anos vagabundando por aí.
10 anos de maconha, 10 anos marginal.
Cagar é só o que dá vontade de fazer.
Cagar, porra! Mas é duro.
Só eu pra dizer o trabalho que me deu pra chegar até aqui".

(Fala de Meteorango Kid – O Herói Intergaláctico)

Em 1972, a capa do disco Acabou Chorare, dos Novos Baianos, foi premiado como "melhor produção gráfica" daquele ano. A arte leva assinatura do múltiplo Antônio Luis Martins, mais reconhecido como "Lula", protagonista do cult-movie Meteorango Kid – O Herói Intergaláctico, do baiano André Luiz Oliveira.

A produção de Meteorango - considerado o grande "trash tupiniquim" - emaranha-se aos primórdios soteropolitanos da banda.

O primeiros long-plays dos Novos Baianos e, também, É Ferro na Boneca, o d[ebut d a banda e m LP, além de Meteorango, também serviram de trilha para o longa-metragem Caveira My Friend (1970), do falecido Álvaro Guimarães.

Na gravadora RGE, Lula Martins, que também é artista plástico, fizera a capa do compacto Novos Bahianos, o qual tinha as músicas"Colégio de Aplicação"/"De Vera". Para Acabou Chorare, desenvolveu uma técnica de desenhos à base de canetes hidrocor e esferográficas.

O artista afirmava pintar "a cor do som".

Outra feita por Martins, é a surrealística capa do álbum Caia Na Estrada E Perigas Ver, de 1976.

Meteoranguizando - Em Meteorango Kid, o anti-herói Lula vive na pele de um jovem e desesperado estudante da classe média baiana, assim como todos, oprimido pela ditadura e pela moral brasileira de 40 anos atrás.

O "intergaláctico" personagem atravessa o cotidiano labirinto com as únicas armas que possui: suas fantasias e seus delírios libertários. Meteorango conversa fluentemente com os códigos tropicalistas e com a arte pop.

E não hesita em antropofagizar o cinemão norte-americano. O roteiro é recheado de citações a heróis estrangeiros como Batman, Fantasma e Tarzan.

Na seqüência de abertura, quase uma síncope, Lula encarna a "agonia do Messias". Trajado de Cristo, o personagem delira numa colagem de descontínuos close-ups montados sob os mais diversos ângulos.

Recentemente, Martins contou algumas de suas histórias, que envolvem tanto os Novos Baianos quanto o cinema marginal da Bahia, no livro Mágicas Mentiras (Vento Leste). Ainda muito jovem, Martins largou confortável vida familiar para perambular pelo "microcosmo pré-hippie".

Em março de 1970, meses antes de morrer, a cantora norte-americana Janis Joplin (1943-1970), passara como um furacão pelo Rio de Janeiro: fez topless em Ipanema e foi expulsa do hotel Copacabana Palace, por nadar nua na piscina.

Após, literalmente, botar pra quebrar na Cidade Maravilhosa, ciceroneada pelo cantor Serguei (que até hoje se gaba do fato), Janis recebeu uma indicação de Ricky, um surfista carioca, para que fosse a Salvador encontrar-se com um amigo seu.

O tal amigo era Luiz "Lula" Martins (vej afotos abaixo).

Na Bahia, Janis teria um pouco mais de "sosssego": "Foram quatro dias mágicos, que mudaram minha vida", conta Martis (leia mais).

O artista gráfico Rogério Duarte, criador do cartaz do filme Deus e O Diabo Na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, definiu Lula Martins como "ave rara de nossa constelação".

Diretor do Conselho de Estudos Brasileiros da Universidade de Tulane, o norte-americano Christopher Dunn atribui ao personagem vivido por Lula em Meteorango "força-símbolo da resistência nacional".

Para Dunn, o motivo é a representatividade visual que o personagem alcançou no filme. De forma geral, a valia o brasilianista, críticos e estudiosos têm O Bandido da Luz Vermelha como "o primeiro grande filme marginal".

Todavia, opõe-se o norte-americano, Meteorango Kid, par a ele, revelou, com muita mais força, a desilusão da juventude brasileira daqueles "chumbados anos":

"Meteorango é o primeiro filme do desbunde brasileiro. Em pleno AI-5, teve ousadia de encenar, por exemplo, um ritual cotidiano tão conhecido - mas pouco representado no cinema nacional, que é a preparação cuidadosa de um baseado seguida do seu dionisíaco consumo", analisa Dunn.

Fã de Meteorango, o escritor Jorge Amado definiu o filme como "um soco violento que comove e revolta".

No depoimento dado à reportagem da Rolling Stone ("Tinindo Trincando"), sobre o álbum Acabou Chorare, Lula Martins falou, especialmente, sobre a criação da capa do ábum.

A arte de Acabou Chorare foi criada a partir de semiótico retrato (que enquadra uma desoladora mesa na casa dos Novos Baianos, no Sítio do Vovô) casionalmente tirado pelo guitarrista Pepeu Gomes.

Mas, antes, curta um trecho de Meteorango Kid - O Herói Intergaláctico (1969), de Andre Luiz Oliveira.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

lULA mARTINS: nAS bRUMAS dO fUMACÊ

"Eu conhecia os Novos Baianos antes deles virem para o Rio de Janeiro, dos tempos em que ainda ensaiavam para o performático O Desembarque Dos Bichos Depois do Dilúvio Universal, espetáculo que contou com a participação dos mais acelerados e revolucionários artistas de Salvador, naquele momento de transição dos valores ditos caretas para as posturas libertárias.

Os Novos Baianos faziam parte do movimento mundial da contracultura, ou melhor, de sua versão tupiniquim, traduzida na Tropicália. Cinema, artes plásticas, teatro e, especialmente, música projetavam esses 'bichos' que sonhavam virar o mundo de ponta cabeça.

Durante a montagem do longa-metragem Meteorango Kid - Herói Intergalático, de André Luiz Oliveira, hoje radicado em Brasília, Paulinho Boca de Cantor, Moraes Moreira e Galvão ficaram hospedados durante alguns dias no apartamento em que eu morava no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro.

Eles traziam consigo uma fita gravada, ao vivo, com as músicas apresentadas no espetáculo Desembarque dos Bichos. No estúdio de Helio Barroso, gravaram, pela primeira, as faixas para a trilha-sonora de Meteorango.

Algumas dessas músicas se tornaram sucesso nacional com o lançamento do álbum É Ferro na Boneca. Conheci Paulinho, Moraes e Galvão em Salvador, um pouco antes das filmagens de Me teorango, levado por Caveirinha para conhecer e ouvir as canções que eles compunham. Os três se alojavam numa pensão no Areal de Baixo.

Vestiam roupas de peles de bodes amarradas ao corpo, as quais lhes davam um aspecto desafiante e transgressor. Eram aplaudidos pela galera quando circulavam pelos bares do Baixo Leblon, no Rio.

Os Novos Baianos surgiam com uma obra musical genuinamente brasileira. O poeta Galvão vinha com um pé na bola e outro no regionalismo poético do velho "Chico do Juazeiro", que traduzia para o entendimento da linguagem urbana e universal.

Moraes, por sua vez, é a recriação da música brasileira a partir do sentimento nordestino constante em sua obra. Sua música é feita das paisagens coloridas e amplas do antigo Brejo Seco, hoje Ituaçu.

Paulinho Boca, o malandro desenvolto misto de cantor e agente, contador de causos e bonachão típico do recôncavo baiano, e ra cantor experiente que, há muito, apresentava-se como crooner de orquestras nas casas noturnas soteropolitanas.

De contrato assinado com a gravadora RGE, os novos baianos alugaram um apartamento no Jardim Botânico. Passei alguns dias com eles lá: era uma loucura sem tréguas nas brumas do fumacê diário. Infantis diabruras que escandalizavam uns e encantavam outros.

Fiz a capa do compacto Os Novos Bahianos, editado pela RGE. A capa do disco Acabou Chorare, no começo, seria total e tropicalmente colorida, contudo, por questões técnicas e de produção, reduziram o número de fotos coloridas, o que veio alterar o projeto gráfico inicial.

Queixei-me com João Araújo (produtor dos Novos Baianos), que me explicou a situação. Ele, contudo, me convidou para dirigir o videoclipe de lançamento do álbum. A minha insensata resposta foi não, mas logo saquei a bobeira de meu orgulho ferido.

Dias depois, observando melhor, percebi que aquelas fotos em preto e branco acentuavam, com grafismo jornalístico, o cunho sociocultural da proposta.

jANIS, nOVATA bAIANA*


*Fotos do arquivo pessoal de Lula Martins (ele está de branco).

terça-feira, 27 de julho de 2010

mETEORANGO mY fRIEND



rOCKARNAVAL!




*"Ziriguidum" (Jackson do Pandeiro) na esfuziante performance de Baby Consuelo, hoje Baby do Brasil. O raro vídeo é um especial filmado para a TV Educativa. Do álbum Caia na Estrada e Perigas Ver, gravado no selo gaúcho Tapecar em 1976. É o sexto - e mais "hard" - disco dos Novos Baianos, na época desfalcados de Moraes Moreira. Jamais foi lançado em CD.
Fora o rock, nesse álbum os Novos Baianos alcançam sua máxima infusão de bossa, orientalismos & nordestinidades. Sobre a satânica "Barra Lúcifer" (cujo peso, sim, faz a ponte "Salvador-Detroit"), a pastora evangélica Baby do Brasil avisou que não a canta mais: "Essa música é legal, mas chega de dar moral para esse cara", disse a cantora. Todavia, como o Diabo é o pai do rock...

Barra Lúcifer

segunda-feira, 26 de julho de 2010

bABY é dO bRASIL*

Prestes a ter sua história contada em documentário, Baby fala sobre música, João Gilberto e Novos Baianos
POR CRISTIANO BASTOS/ROLLING STONE
"Baby sempre foi 'do Brasil', mesmo quando assinava 'Consuelo'".
Em 40 anos de vida artística, entre os Novos Baianos, a parceria com o marido e guitarrista Pepeu Gomes e seu voo solo, é assim que a cantora Bernadete Dinorah de Carvalho Cidade, eterna Baby Consuelo, encara as mutações experimentadas por seu nome de batismo.

Hoje evangélica (careta jamais), Baby começou soltando a voz na intimidade de seu quarto em Niterói, Rio de Janeiro.
A "falsa baiana" arriscava-se em músicas das musas Julie Andrews, Ella Fitzgerald, Ademilde Fonseca e, também, do futuro guru João Gilberto.

"Quem diria que a menina que ensaiava 'Chega de Saudade' escondida no quarto estaria um dia na companhia do próprio mestre?", a cantora lança a pergunta durante essa entrevista concedida numa noite do mês de abril, por telefone.

Baby encontrava-se hospedada em um hotel na capital paulista e, antes de iniciar a conversa, pediu um momento para desligar o celular - que não parava de tocar:
"São muitos filhos. Se não desligar, eles não param de me ligar", a mãezona se desculpa.

Ela começa contando que, aos 17 anos, fugiu para Salvador. Era 1969 e Baby perseguia o sonho de se tornar estrela. Na Bahia, a mocinha do "nariz arrebitado" conheceu os músicos Moraes Moreira e Paulinho Boca de Cantor, o poeta Luiz Galvão e o multi-intrumentista Pepeu Gomes.
Época na qual o casal Baby e Pepeu viveu debaixo da Ponte de Piatã, na capital baiana. Baby viu Pepeu pela primeira vez tocando guitarra no show Barra 69 (que carimbou o exílio de Caetano Veloso e de Gilberto Gil).
Foi amor à primeira vista: "Pepeu era um guitarrista lindo de 17 anos, uma criança". Após o show, ela foi à festa oferecida por Gil e, na saída, "puxou um beijo" da boca de Pepeu.
Os dois trouxeram ao mundo um sexteto de filhos, cada qual com nome mais espirituoso que o outro: Riroca (que mudou seu nome para Sarah Sheeva), Zabelê, Nãna Shara, Pedro Baby, Krishna Baby e Kriptus Rá. Baby e Pepeu ficaram casados por 18 anos:
"Nos separamos porque éramos praticamente irmãos", ela explica. Na década de 1980, conquistaram juntos o topo das paradas de sucesso. Em 1983, encenaram um dos episódios, no mínimo, mais divertidos de suas vidas: foram - inacreditavelmente - barrados na Disneylândia.
Na ocasião, a direção do parque alegou "extravagância". Motivo: seus cabelos coloridos. A história, no entanto, virou um dos grandes sucessos da dupla, o hit "Barrados na Disneylândia" (veja no Chacrinha).
Em 1985, Baby e Pepeu foram uma das atrações da primeira edição do Rock in Rio. Na época, ela estava grávida e a reprimida sociedade brasileira ficou chocada ao lhe ver cantando com a barriga de fora na TV. Era a fase "Rá!".
Nesse dia, Baby se apresentou inteiramente coberta de metais entortados pelo paranormal Thomaz Green Morton...

Em 2012, a nova baiana, que estreou no século 21 convertida à Igreja Sara Nossa Terra, ganhará um filme, o documentário Baby, do Brasil ou Apocalipse. Hoje em dia, Baby - que se autodenomina "popstora" - arrebanha fieis no Ministério do Espírito Santo de Deus em Nome de Jesus.
Na infância, afirma ter "visto anjos", mas garante, também, ter encarado o "demônio em carne e osso".
Nessa entrevista, porém, ela não falou nem de Deus e nem do Diabo. O papo com Baby foi sobre música e outra "divindade": João Gilberto. Além de sua "sagrada família", claro, os Novos Baianos.
Quais suas lembranças do tempo em que João Gilberto conviveu com os Novos Baianos no Rio de Janeiro?
Baby - João era considerado o mestre da harmonização, arrebentava musicalmente. Há 40 anos, estava muito à frente de nosso tempo. Ele conseguia transformar a música brasileira, às vezes corriqueira, numa música riquíssima harmonicamente. Naqueles dias de 1972, em que esteve no Brasil, João ficou o tempo todo conosco. Foi nos passando sua "sabedoria". Chegava pela madrugada e sempre trazia uma goiabada embaixo do braço. Ele nos pôs para ouvir o cancioneiro brasileiro pela lente "gilbertiana". Sua visão musical era completamente diferente da usual. Nos sentíamos privilegiados, felicíssimos. Enfim, a gente podia viver o Brasil que não era aquele Brasil que se apresentava. Podíamos viver o Brasil brejeiro, maravilhoso, musicalmente rico.
Lembra de quando João Gilberto os visitou pela primeira vez? Como foi esse encontro?
Baby - Numa daquelas noites, levado pelo Galvão (que apelidamos de "Joãozinho Trepidação" por causa de seus trejeitos gilbertianos), João Gilberto vai fazer uma visita aos Novos Baianos. Os dois eram conterrâneos de Juazeiro. Quando fomos morar na cobertura do apartamento da Conde do Irajá, no Rio de Janeiro, fizemos do lugar uma espécie de país, um território nosso. Na sala e nos lugares que cabiam pusemos cabanas feitas com cortinas de crochê. Enfeitamos tudo com maravilhosos tecidos. Quem era casado tinha direito a um quarto inteiro. Nesse momento começamos a ter uma "experiência de família". Também percebemos que, de fato, a situação política era um terror: podíamos ser presos por causa de nossos cabelos grandes. Conhecemos, também, as dificuldades do show business nacional, extremamente careta. Caetano e Gil, os dois únicos "loucos", estavam exilados. E nós naquele cenário em que o Brasil sofria tanto. Ao nos unirmos para morar juntos, sobretudo, era para que tivéssemos uma vitória. Ou seja, a união faz a força. Só foi possível porque nos unimos.
A relação com João Gilberto, por outro lado, era paternal.
Baby - Quando João Gilberto nos despertou para a brasilidade, sim, o encontro foi paternal. "Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor" (Baby canta ao telefone com a voz rouca). Na hora em que ele cantou Assis Valente acendeu em nosso coração a raiz brasileira. Com o importantíssimo diferencial do nível dos acordes e das moderníssimas harmonias. Declaramos: "Acabou Chorare", não tem mais choro. Lembro de, adolescente, ouvir na vitrola de casa "Chega de Saudade" deitada no tapete da sala. Nunca eu supunha que estaria um dia cantando com o criador daquilo.
E o encontro com Moraes e Galvão em Salvador, como foi?
Baby - Eu estava na casa da minha amiga Edilane Lobão, em Salvador. Uma noite fomos ao Brazas, o point da época, e lá fui apresentada ao Moraes e ao Galvão. Eu estava com minhas calças rasgadas, roupas loucas, sem saber o que iria acontecer no futuro. Foi um encontro marcado de Deus. Os dois me viram e logo foram perguntando: "Você não quer fazer um show com a gente?" Logo em seguida, no Teatro Vila Velha, montamos o show O Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal. Foi a primeira vez que nos apresentamos juntos.
Mas você cantava nessa época?
Baby - Sim, mas nesse primeiro encontro não contei para eles. Como é até hoje, eu tinha um trato com Deus. Consiste em "tudo que tiver que ser para mim tenho de saber". "Porque o Senhor enviou-me pra cá?". Moraes, Paulinho e Galvão ainda nem sabiam que eu cantava. Depois de Desembarque dos Bichos, ainda fiz muitas coisas na banda, mas eu ainda não tinha revelado que eu era cantora. Um dia Moraes estava cantando no chão da sala e falou: "Canta aí, Baby!". Improvisei com a voz rouca. "Como é que você não fala pra gente que canta?", Moares disse, admirado. E eu: "É que estou com uma 'parada' com Deus..." Antes, o Pepeu tocava na banda os Leif's, mas o conheci no show Barra 69. Começamos a flertar de cara. Depois do show, fomos todos para casa do Gil. Vi Pepeu por lá e pensei: "Não tem mais jeito. Esse cara tem a ver comigo". Eu andava interessada no Gil, mas Pepeu bateu o olho em mim e a química rolou no ato.
O quão emblemática "A Menina Dança" é para você?
Baby - "A Menina Dança" é simbólica porque fala que "tava tudo virado", que eu "cheguei depois do tempo regulamentar". Na época havia muitas cantoras famosas bombando, como Gal Costa e Elis Regina, e eu vinha com outro estilo e com meu jeito ousado de ser: a brasilidade com pegada rock 'n' roll, a marca do Novos Baianos. Nessa música eu improvisei, que é outra faceta minha, a jazzística. Também existe a influência de instrumentos musicais, eu gosto de solfejar. O "din-gon", por exemplo, é influência das sílabas do João. Essa música é um retrato fiel da Baby, musical e pessoalmente. E nela coloquei um pouco das cantoras que reverencio: Ademilde Fonseca, Edith Piaf, Janis Joplin, Julie Andrews e Elis Regina.
É verdade que, antes de gravar Acabou Chorare, os Novos Baianos chegaram na casa do produtor João Araújo mortos de fome e, ao sete anos, Cazuza (filho de Araújo) teria ficado impressionado com vocês? Trazia comida da galadeira...
Baby - Sim, é verdade. Depois ele contou que fora nesse dia que pensou em ser artista pela primeira vez. Certamente, o Cazuza deve ter oferecido a geladeira inteira. Sempre que a gente chegava na casa do João Araújo, ele nos oferecia um jantar. Éramos todos uns mortos de fome naquele tempo.
*Leia trecho da reportagem "Tinindo Trincando - Novos Baianos e o Melhor da Música Brasileira", sobre o disco Acabou Chorare no site da Rollling Stone. Na foto: Baby e Pepeu.

nOS cINEMAS*

Diretor Rafael Saar fala sobre o documentário Baby, do Brasil ou Apocalipse

Por Cristiano Bastos

Em fase de produção, o longa-metragem Baby, do Brasil ou Apocalipse (veja o teaser exclusivo), dirigido por Rafael Saar, tem previsão de lançamento para 2012. A partir do universo artístico da cantora Baby do Brasil, o documentário enfocará a busca artístico-espiritual da cantora, a qual, a propósito, atuou em muitas produções.
Entre as quais, nos filmes O Cangaceiro (Brasil/Itália, 1970, dir. Giovanni Fago) e Caveira My Friend (Brasil, 1970, dir. Álvaro Guimarães). Ambos filmados em Salvador, no cenário pós-tropicalista, os filmes introduzem Baby no cinema marginal baiano.
Em Baby, do Brasil ou Apocalipse, adianta Rafael Saar, serão feitas "viagens-chave" a lugares que representaram um ponto de mudança na vida da nova baiana.
"Vamos refazer parte do Caminho de Santiago de Compostela, voltar ao sítio Cantinho do Vovô e ao apartamento em Botafogo", conta o diretor. A diversão, contudo, estará assegurada com impagáveis cenas de Baby no auge de sua fase "new wave/pré-gospel".
Canções de louvor como "Minha Oração" (1980). "Cósmica" (1982), "Telúrica" (1981) e "Poderoso Deus" (2010), garante Baby, sempre estiveram em sua obra. Confira abaixo um trecho do filme e, em seguida, entrevista com o diretor:
No filme, como você separou, abordou a Baby esotérica de sempre da evangélica de hoje?
Saar - O filme tem como abordagem central, além do resgate da trajetória artística de Baby, a relação estreita que ela assumiu entre espiritualidade e música. De "No fim do juízo", passando por "Cósmica", "Telúrica" e a popstora Baby, vemos uma busca incessante de uma artista que acredita na música como caminho direto de ligação com Deus. Além disso, a desconstrução do perfil do evangélico de hoje e da música gospel, que no Brasil ainda não é tratada como arte.
Fale sobre a experiência da Baby com cinema no período NB e pré-NB. E, também, sobre as incursões audiovisuais dela nos anos 80 em diante.
Saar - Baby é uma figura cinemtográfica, uma Barbarella brasileira. Começou no cinema ainda Bernadete, em sua adolescência no Rio de Janeiro, antes de ir para Salvador. Fez um curta-metragem inacabado, e indo para a Bahia fez um papel místico no filme O Cangaceiro e o incrível Caveira My Friend. Neste último, além de atuar como a namorada do Caveira, Baby participa da trilha sonora, e é de uma personagem deste filme que Bernadete vai "roubar" o nome para si: Baby Consuelo. Nos Novos Baianos fez a Eva em Genesis 2000, ao lado do Adão Caetano Veloso e bem mais tarde, em 2005, um curta-metragem com Andrucha Waddington.
O que lhe fascinou em Baby para fazer um doc sobre ela?
Saar - Minha fascinação com Baby veio na infância, nos anos 80, quando ela teve uma carreira infantil forte, participando de musicais como Pirlimpimpim, A turma do Balão Mágico. Mais tarde pude conhecer todos os discos tanto da carreira solo, quanto dos Novos Baianos, e vi uma cantora versátil, com uma extensão vocal e uma musicalidade impressionantes, e ao mesmo uma imagem extremamente explorada e limitada de uma artista louca que acaba apagando a importância, ousadia e pioneirismo que Baby teve e tem na música brasileira. Fazer um documentário sobre ela é importante no sentido de desconstruir essa imagem, fazendo um resgate de arquivos que não estão disponíveis (Baby não tem nenhum DVD lançado e poucos CDs são encontrados à venda).
Como as divas da Baby são mostradas no filme?
Saar - Todas as referências artísticas de Baby estarão no filme. Com Elza Soares e Ademilde Fonseca, duas das principais influências - do cantar rouco e acelerado - gravamos um show em São Paulo, e passaremos por Caetano, Janis Joplin, Gal Costa, e cantoras como Marisa Monte - que é uma das crias de Baby - que estarão presentes seja no repertório das músicas que Baby cantará ou fisicamente.
*A foto que ilustra o post é do espetáculo Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal, 1969. Primórdios soteropolitanos dos Novos Baianos.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

tININDO tRINCANDO*

O maior entre os grandes discos nacionais de todos os tempos, a obra-prima Acabou Chorare é fruto de uma experiência coletiva e livre, que tem no samba e no rock suas mais fortes raízes
POR CRISTIANO BASTOS
Em 1823, o patriarca da independência José Bonifácio de Andrada e Silva declarou que a crucial diferença entre o Brasil e os outros países cabia em uma única palavra: "amálgama".
No entendimento de Bonifácio, o DNA cultural da nação estaria profundamente amalgamado. Os demais povos teriam "diversidade".
A profusão verde-amarela também é perfeita para entender as razões da atemporalidade do álbum Acabou Chorare, gravado há 38 anos pelos Novos Baianos. Em votação feita com especialistas, em 2007 a Rolling Stone elegeu o disco "o maior da música brasileira de todos os tempos".
Este ano, lançamentos (veja no box) evidenciarão o "bando" que, no fundo, nunca se desfez, e arrebatarão velhos e novos fãs com gravações, filmes e livros. Todos com força para novamente erigi-los ao panteão da memória musical brasileira - da qual, na verdade, nunca foram deletados.
A mais aguardada novidade é o documentário Filhos de João - O Admirável Mundo Novo Baiano, de Henrique Dantas. A produção focaliza a interferência "divina" de João Gilberto, "produtor espiritual", parafraseando o novo baiano Moraes Moreira, sobre os rumos da banda.
E, por outro ângulo, enquadra o segundo capítulo desse encontro que resultou na obra-prima Acabou Chorare. Na última edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o documentário amealhou o Prêmio do Júri Popular e, neste ano, ganha os cinemas nacionalmente.
Jorge Mautner saúda o poderoso amálgama de Acabou Chorare como "o segredo brasileiro". Moraes, um dos fundadores, endossa:
"Os Novos Baianos só foram possíveis por causa da congregação de pessoas. A união fez a música", abrevia o "vaqueiro do som", apelido dado pelo preceptor João Gilberto. Conterrâneo, o múltiplo Tom Zé foi outro deles.
Antigamente, explica Mautner, quando o Brasil ainda não havia descoberto sua identidade cultural, comentava- se que o país fora amaldiçoado por "três raças tristonhas" - negra, indígena e lusitana. Hipótese que, obviamente, ele refuta.
Mas ufaniza: "Os brasileiros são a etnia mais otimista e alegre do planeta!".
Distante daqui, outros pensadores deram-se conta da "verdade tropical". No século 19, o poeta norte-americano Walt Whitman professou que o Brasil seria o "vértice da humanidade" - probabilidade que, a história prova, não passou batida pelo olhar de gênios pátrios da estatura de Villa-Lobos, Mário de Andrade e Ary Barroso.
O amálgama também seduziu outros menos bem-sucedidos, mas banhados em criatividade. Caso do grande compositor, e exímio fracassado, Assis Valente. Em 1940, o carioca teve destreza para criar o samba-exaltação "Brasil Pandeiro" (que prefacia Acabou Chorare) e, inversamente, autenticar a "valentia" sugerida por seu sobrenome.
Endividado, Valente suicidou-se ingerindo uma dose de guaraná e formicida. Até na escolha do veneno celebrou amor à pátria. Assis Valente vende o país como ninguém nos versos de "Brasil Pandeiro": "O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada".

Dá para dizer que cada um dos "lados" do LP Acabou Chorare foi arquitetado em endereços distintos. O A no apartamento em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, onde os Novos Baianos aquartelavam-se; e o B no sítio-comuna alugado em Jacarepaguá, Zona Oeste.
Na plaqueta em formato de bandeira do Brasil afixada na porteira do sítio, onde se deveria ler "Ordem e Progresso" estava escrito "Cantinho do Vovô". De 1971 a 1975, o combo se resguardou das agruras militares no retiro que também foi lar, estúdio e campo de futebol - três das coisas que mais interessavam a todos ali conjugados.
No Cantinho do Vovô, o samba cinco estrelas dos Novos Baianos pulsava suave, contente e distorcidamente roqueiro.

Acabou Chorare deu o pontapé inicial (verdadeiro "gol de placa") no cast da recém-criada gravadora Som Livre, fundada pelo produtor João Araújo, também conhecido como pai do astro Cazuza.
As gravações deram- se no estúdio fluminense Somil, especializado em áudio para cinema.
Como "centroavantes", o time que tocou no álbum reunia Moraes Moreira (violão-base), Paulinho Boca de Cantor (vocais e pandeiro) e Baby Consuelo (afoxé, triângulo e maracas). Luiz Galvão era o "médium" que decodificava a loucura coletiva em poesia.
Esses quatro são o núcleo-base da banda reunida em Salvador, em 1969.
A armada baiana também arregimentava outros guerrilheiros. O sólido "wall of sound" dos Novos Baianos era cimentado pelo conjunto A Côr do Som, cuja batuta pertencia ao guitarrista Pepeu Gomes.
Em parceria com Moraes, Pepeu cinzeleva os trançados arranjos das canções, além de cuidar da afinação de todos os instrumentos.
A tripulação completava-se com Jorginho (bongô e cavaquinho), Baixinho (bateria e bumbo), Dadi (baixo) e Bolacha (bongô), recentemente falecido. Ainda juntavam-se a eles o dançarino Gatto Felix e o percussionista Charles Negrita.
Você lê esta matéria na íntegra na edição 46 da Rolling Stone.

aMÁLGAMA

sábado, 3 de julho de 2010

mOLEQUES mARAVILHOSOS*







* Em julho de 2009, o jornalista Cristiano Bastos e o cineasta Pedro Hahn viajaram até Salvador (BA) com a missão de encontrar personagens que viveram com Raul Seixas os primeiros anos de sua carreira e guardam lembranças da infância do "retado" baiano.

A ideia era produzir um documentário "câmera na mão", o qual viria encartado na edição #35 da revista Rolling Stone, para a qual Bastos preparava uma reportagem sobre 20 anos sem Raulzito.

O projeto não concretizou-se por inteiro, mas o texto do jornalista, sobre as origens do mito, ganhou a capa da publicação impressa. O vídeo, por sua vez, não deixou de ser editado.

Surgem no filme, personagens como Thildo Gama, com o qual Raul montou sua primeira banda, Os Relâmpagos do Rock, em 1961 e Waldir "Big Ben" Serrão, amigo de infância e primeiro a gravar uma composição sua, "O Crivo".

O filme também flagra momentos especiais. Um deles é o ensaio da banda Os Panteras, em Salvador, no qual o guitarrista Carlos Eládio e o baterista Carleba falam sobre o amigo Raulzito.

Em homenagem ao aniversário de Raul Seixas - que veio ao mundo em 28 de junho de 1945 e e hoje teria 65 anos - este blog e a revista digital
ZoomRS exibem com exclusividade o documentário "Moleques Maravilhosos".

Bom proveito. Agora, play Raul!

mOLEQUE mARAVILHOSO*

Nos 20 anos de sua morte, o lendário Raul Seixas é lembrado em depoimentos inéditos por seus primeiros colaboradores e amigos de infância como uma alma consagrada ao rock’n’roll

POR CRISTIANO BASTOS / FOTOS: CONCEIÇÃO ALMEIDA

Estamos onde, de fato, tudo começou – há 64 anos atrás. No centro antigo de Salvador, capital da Bahia, a Praça da Piedade oculta vicejantes episódios da ancestralidade e da modernidade nacional.

Um dos mais antigos logradouros, no período monárquico, a “Piedade” era sítio usado para execuções públicas. No século 20, converteu-se numa espécie de parque de diversões da classe média. E, de outro flanco, no ambiente que agremiava o Centro Popular de Cultura (CPC), o qual alistava uma fração da inteligência baiana.

Promissores nomes, como Waly Salomão, Tom Zé, Gilberto Gil e Caetano Veloso, labutaram no CPC. A principal avenida que serve a velha Piedade é a Sete de Setembro – primeiro endereço do personagem mais emblemático do rock brasileiro:

Raul Santos Seixas, filho de Dona Maria Eugenia e do engenheiro Raul Varella Seixas.

Antes de metamorfosear-se Raul Seixas, ele era Raulzito. “É apelido de família. Meu avô se chamava Raulzão, meu pai Raulzinho. Eu tinha que ser Raulzito, menor ainda. Meu filho vai ser Raulzitinho, no mínimo”, contou o próprio em uma gravação do raro LP Let Me Sing My Rock and Roll.

Aparado nas mãos de uma parteira, Raul Seixas nasceu às 8h da manhã do dia 28 de junho de 1945. Partiu para outra dimensão às 7h da manhã de 21 de agosto de 1989, aos 44 anos. Foi encontrado morto em seu apartamento, na capital paulista, pela empregada Dalva Borges.

Causa mortis: pancreatite aguda causada pelo excesso de álcool. A brevidade de sua vida, porém, é abissal contraponto frente à poderosa mitologia que incendiou em volta de si.

Guiado pelo amigo de infância de Raulzito, o infatigável Thildo Gama – no alto de seus 65 anos –, percorremos os principais pontos de Salvador, onde essa história flamejou suas primeiras chamas. Thildo e Raulzito se conheceram em 1959, nos tempos do Colégio Ipiranga.

Três anos depois formaram seu primeiro grupo, Os Relâmpagos do Rock, embrião do conjunto Os Panteras.

“Lembro-me de Raul matando aula e chegando em minha casa todos os dias, às 7h da manhã. Acordava com ele ao lado da minha cama, com um violão, cantando rocks dos discos importados que ganhava de seus amigos estrangeiros”, conta Thildo, enquanto cruzamos a Piedade em direção à Sete de Setembro.

Vou conhecer a casa onde Raul teve suas fraldas trocadas. A residência localizava-se em cima de uma loja de consertos de refrigeradores que pertencera ao tio de Raul – o “Lulu Geladeira”. No ponto, hoje funciona uma confecção de roupas.

Foi na antiga loja que, b rincando de “ver quem demorava mais”, o irmão de Raul, Plininho, cinco anos mais novo, deixou Raulzito trancado dentro da Frigidaire. Salvou-lhe a mãe, mas o guri virou claustrofóbico.

“Eu suava, todo apertado. De repente, acordei na cama”, escreveu no seu diário, aos nove anos. Atravessando a rua, fica o Clube Comercial, onde Os Relâmpagos do Rock embalaram a edição do concurso Miss Bahia de 1961.

Distante dali alguns quilômetros, o Largo de Roma, na Cidade Baixa, abriga os escombros do Cinema Roma – o “Templo do Rock na Bahia”. O prédio está interditado para reformas. Desde 1983 não é mais o palco sobre o qual cintilaram estrelas da constelação de Jerry Adriani, Wanderléa e Roberto Carlos – além do próprio Raul.

No dia 6 de junho de 1965, Roberto Carlos estreou na Bahia cantando no Cinema Roma acompanhado de Raulzito e Seus Panteras, que se firmava como o melhor conjunto de baile da capital. Thildo tocou nesse dia.

Ele aponta a porta de acesso nos fundos do Roma: “Roberto Carlos chegou de táxi. Raul e eu o ajudamos a descer com a guitarra e um amplificador Phelpa. Ficamos com Roberto no camarim até a hora do show”.

Comandadas por Waldir Serrão, mais tarde conhecido como Big Ben, as sessões de jovem guarda animavam as matinês de domingo em Salvador. Na trincheira inimiga, ficavam os opositores, “beócios, comunistas baratos”, segundo Thildo.

Era uma guerra: Teatro Vila Velha contra Cinema Roma. “A turma do rock frequentava o Roma e o Vila Velha era o lugar dos intelectuais: Caetano e Gil, meus inimigos”, contou Raul a seu diário. Antes de seguir ao encontro de Big Ben, cruzamos Salvador.

Destino: visitar a moradia na qual Raul viveu até seus 15 anos. No quintal do domicílio, localizado na Rua Rio Itapicuru, em 1958, Raul e Serrão posaram para o célebre retrato (cabelo pimpão e trejeitos de bad boy) no qual são enquadrados apertando-se as mãos.

Meio século depois, amarelecida pelo tempo, a parede que serviu de fundo à fotografia ficou de pé. Nesta mesma parede, Raul esboçou, aos 15 anos, a ideia de “Metamorfose Ambulante” – originalmente um blues.

Em seu diário, reproduzido no livro O Baú do Raul Revirado (Ediouro), Raulzito legendou na foto:

“Com Waldir Serrão: o primeiro rocker da Bahia. Waldir Serrão era inovador”. Sobre si mesmo, traçou: “Tudo era novo pra mim. Ouvia os discos de Elvis e Little Richard até estragar os sulcros (sic). O rock era como uma chave que abriria as minhas portas que viviam fechadas”.

No período da Segunda Guerra Mundial, situa Thildo, os navios-escola da Operação Unitas, da marinha norte-americana, aportavam no cais de Salvador. As embarcações traziam a bordo orquestras, as quais apresentavam os ritmos ianques em praça pública.

Os filhos desses estrangeiros estudavam numa escola perto da casa de Raulzito. Ele aprendeu, com eles, a falar inglês, e deles ganhou seus primeiros compactos de rock’n’roll. Entre os gringos, conheceu a primeira de suas quatro esposas: Edith Wisner.

Na puberdade, o norte-americano Daniel Dickanson teve aulas de violão com Raulzito.

“Eu morava a dois quarteirões da família Santos Seixas. Nossas mães ficaram amigas.” Em 1967, no summer of love, Daniel retornou a seu país. Os dois passaram a se corresponder trocando LPs por intermédio do correio diplomático.

“Enviei para Raul We’re Only in It for the Money, do Mothers of Invention, que inspirou Sessão das Dez. Em junho de 1967, remeti Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. Provavelmente, a cópia esteve entre as primeiras que chegaram ao Brasil.”

No ano em que o fab four lançava o mais prestigiado álbum de rock de todos os tempos, o astro Jerry Adriani foi se apresentar em Salvador, acompanhado da cantora Nara Leão e do humorista Chico Anysio.

Para acompanhar o trio, o empresário Carlos Silva recrutou o conjunto The Jormans, que tinha dois negros em sua formação. Só que, na última hora, a preconceituosa sociedade baiana barrou-os na entrada. O jeito foi ligar às pressas para Eládio Gilbraz, guitarrista dos Panteras.

Éramos os únicos na Bahia em condições de tocar com qualquer artista sem ensaiar antes”, lembra Eládio, “quebramos o maior galho”. Raul, mais de uma vez, falou: “O pessoal que vinha do Rio ouvia falar do grupo baiano que mais entendia de rock’n’roll: Raulzito & os Panteras”.

A imagem de Nara é fotograma vivo na memória de Jerry Adriani: “Ela apoiou-se no violão para nos ver tocar, parece que foi ontem”. Intuitiva, após a apresentação ela procurou o cantor: “Chama os Panteras para tocar contigo”, recomendou.

Jerry ouviu a sugestão e, por meio de Raulzito, intimou os Panteras: “Vão para o Rio”. De imediato, a reação do baiano foi titubear: “Mas eu acabei de me casar”, disse. Dois meses depois, na residência de Chico Anysio, no Rio, Adriani propôs aos Panteras que lhe acompanhassem numa excursão pelo Nordeste do Brasil.

Em terreno fluminense, Chico Anysio levou a banda ao seu humorístico na TV. Na gravadora Odeon, o apoio foi dado por Roberto Carlos. Nos bastidores, de acordo com Adriani, sempre que pintava oportunidade, Raulzito mostrava-lhe uns “cadernos muito interessantes”.

O cantor começou a fazer a cabeça do diretor da gravadora CBS, Evandro Ribeiro, para que o talentoso baiano produzisse Jerry, seu álbum de 1970. “No fundo, quem me lançou foi o Raulzito”, Adriani faz justiça. E confessa: “Eu tinha muito medo de mudar”.

A partir de Jerry a guinada em sua produção é perceptível – desde a capa (posando de Elvis) às composições menos ingênuas. Nesse LP, dois hits têm autoria de Raulzito: a power pop “Se Pensamento Falasse” e o soul “Seu Táxi Está Esperando”.

Lenda do rock brasileiro, Waldir “Big Ben” Serrão sobrevive às duras penas desde que perdeu seu emprego de apresentador na TV Itapoã. Alçou vários artistas locais ao sucesso e, agora, encontra-se esquecido.

“Ajudei muita gente com meu programa, nos anos 70, mas ninguém quer saber”, lastima. Ele mora num conjunto habitacional na periferia do bairro São Cristóvão. Aos 67 anos, enfrentando problemas de saúde, ainda devota sua fidelidade à divindade máxima: Elvis Aaron Presley.

Sentado em frente a um pôster do Rei norte-americano, a cabeça do velho homem funciona perfeitamente. Ao admirar a fotografia cinquentenária feita na casa da Rua Rio Itapicuru, Serrão recorda: “O Raulzito tinha mania de fazer pose de James Dean; e eu de Elvis”.

Big Ben mantém vívido o dia em que o conheceu:

“Quem nos apresentou foi Titó, um amigo em comum, que marcou encontro no Largo da Boa Viagem. De cara, um perguntou ao outro: ‘Quem tem mais discos? Você ou eu?’ E eu ganhei porque tinha mais álbuns de coleção: Pat Boone, Little Richard, Buddy Holly. Falei pra ele: ‘Quero ver a sua discoteca’. Raul, então, levou-me à sua casa e mostrou seu acervo. Nossa amizade nasceu assim. Durou até quando ele se foi”.

Conforme descreveu Raulzito em seu diário, o encontro com Waldir foi fantástico: “Me preparei todo. Gola para cima, topete, engomei o cabelo. Fiquei esperando ele, mascando chiclete”. Raulzito ficou perplexo ao ver que a coleção de discos de Serrão era maior que a dele:

“Ele começou a me visitar no Elvis Rock Clube, cuja sede era na minha casa. Lá se juntavam os fanáticos por Elvis. Raul foi o nono associado; Edy Star foi o 17º. Ele me chamava de Rei do Rock. E eu sempre retrucava: ‘Rei do Rock é você!’”

Em 1970, na CBS, o primeiro compacto que Raul produziu foi de Serrão: as faixas “Pare e Pense” e “A Qualquer Hora”. O pioneiro gravou, também, a antitabagista “O Crivo” – uma das primeiras
letras de Raulzito. Ao cantá-la para mim, em sua casa, os diminutos olhos de Big Ben marejam:

“Deixa o miserável/ Acaba com o pulmão/ Se eu não parar agora/ Vou acabar num buracão/ O crivo / Vou deixar de fumar”. Entre 1970 e 1972, assinando com a rubrica Raulzito, o baiano escreveu, compôs e produziu 51 canções para o cast da CBS.

O ano de 1970 assinalou temporada de intensa criatividade. Seu nome começou a ser impresso nos LPs e, cada vez mais, cantores começaram a gravar suas composições. Nesse ano, produziu artistas do naipe de Tony & Frankye, Edy Star e Diana.

O jovem Márcio Greyck vivia no apartamento de Jerry Adriani, onde conheceu Raul Seixas: “Éramos uma turma que curtia junto”, afirma. Foi emocionante, para o cantor, ter gravado “Foi Você”. Greyck adorou a canção por causa da letra “nada água-com-açúcar”.

“É a mais bela do álbum Sentimento. Meu repertório primava por letras densas e maduras que falavam de amor”. “Raul Seixas”, Greyck coteja, “era um compositor romântico de mão-cheia; como Lennon antes do Sgt. Peppers”.

Em 1995, o jornalista marcelo froes arregimentou, nos arquivos da Sony&BMG, pesquisa para reunir fitas originais das sessões de gravação da fase “Raul produtor”. Froes deparou-se com o baú pré-raul-seixístico.

Há décadas, os fonogramas assinados por Raulzito jaziam cochilando na velha CBS. “Estou Completamente Apaixonada” (Diana), “São Coisas da Vida” (José Ricardo), “Shala-la – Quanto Eu Te Adoro” (Leno) são três amostras dessas relíquias.

Assim como “Tudo que É Bom Dura Pouco”, feita sob medida para Jerry Adriani – e um dos grandes êxitos do cantor. Embora não se tratasse de cancioneiro inédito, ressalta Froes, “a maior parte das faixas seria editada em estéreo pela primeira vez”.

A operação rendeu Deixa Eu Cantar, trilogia de álbuns, que chegou a ser masterizada e prensada, contendo os 51 registros. Entretanto, de última hora, Froes viu seu projeto, literalmente, ser quebrado.

Em 1997, 3 mil cópias entraram para o catálogo de vendas da Sony. Apelando para o chamado “direito de imagem”, às vésperas do lançamento, a major foi ameaçada de processo judicial. Segundo o jornalista, o acordo seria firmado apenas mediante pagamento de alto valor.

“Puxaram esse coelho da cartola e a gravadora se assustou. Por sorte, separei meus exemplares. Creio que sejam os únicos”, estima. Restou o sentimento de frustração: “A sensação é que há desejo de abafar as origens jovem-guardistas – nada bregas – de Raulzito”.

Procurada para falar a respeito, Kika Seixas, viúva de Raul e procuradora legal de sua filha, a herdeira Vivian Seixas, preferiu não se pronunciar.

Fundador do conjunto Renato & Seus Blue Caps, Renato Barros fez amizade com Raulzito, ao se associar ao quinteto de produtores na linha de montagem da CBS, escuderia que se completava com Rossini Pinto, Walter D’Ávilla Filho e Mauro Motta.

Raulzito o chamava de José – “E eu nunca soube o porquê. Se houver vida após a morte vou perguntar a ele”, avisa Barros. A convivência entre os produtores era diária. Um ajudava o outro:
“A guitarra de ‘Playboy’, por exemplo, foi ideia dele”, revela.

Raul noticiou para Barros que haviam sido contratados pela CBS. “Todas as quartas-feiras jogávamos futebol society no Riviera Country Club. Raulzito era ruim de bola. No intervalo do jogo, ele me contou: ‘Agora somos produtores contratados. O salário é fantástico’.”

Renato e Raul cometeram das suas travessuras poéticas. O álbum dos Blue Caps, de 1970, trazia na contracapa o texto maluco “A Lei da Insequapibilidade” – redigido por Renato Barros e (anonimamente) Raulzito.

“A gente tinha mania de criar palavras que não existiam”, explica Renato. Na época, além da direção musical, os produtores eram encarregados de bolar o design gráfico das bolachas. “Criei a capa e, no verso, tinha que pôr qualquer coisa. Senão, se corria o risco de enfiarem um catálogo horroroso no lugar”.

Raulzito entrou na sala de Barros e sugeriu: “Coloca um texto doido aí, bicho”. Formularam, então, a Lei da Insequapibilidade, cuja chave é “clilófricamente simples”:

“A lei da insequapibilidade pode ser explicada baseando-se no método do Diafragma de Aquiles. Tomando-se por base os crepúsculos de diferentes dimensões, alia-se ao pentagrama diluvial pela quinta lei de Newton, referente à gravitação das histórias em quadrinhos em torno dos velocípedes (...) Insequapíveis? Sim, porém insequapóveis em certos aspectos, quando examinados pelo oblíquo lado da patinete”.

Em 1994, Marcelo Froes deu de cara com as matrizes de outra gema extraviada do rock verde-amarelo: o conceitual Vida & Obra de Johnny McCartney, álbum do potiguar Gileno de Azevedo, melhor reconhecido como o Leno da dupla Leno & Lilian.

Johnny McCartney foi o primeiro e único projeto bem-fadado de resgate que Froes conseguiu consumar com uma obra de Raul. Nesse disco, Raulzito divide cinco composições. Em 1970, Leno estava prestes a lançar seu terceiro solo pela CBS – Johnny McCartney, o primeiro LP gravado em oito canais no Brasil.

Criado em estúdio desde os 16 anos, Leno encorajou Raul a aventurar-se em sua própria “obra maldita”. A instigação, no ano seguinte, resultou em Sessão das 10. “Muita coisa que Raul aprendeu sobre estúdio foi participando de Johnny McCartney. Por exemplo, como se gravava bateria com mais peso.”

Sérgio Sampaio pôs mais pilha: “Deixa desse negócio de ser produtor”, aconselhou a Raul. No álbum Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua, frisson de 1973, Sampaio dedicou a canção “Raulzito Seixas” ao produtor de sua estreia:

“Meu nome é Raulzito Seixas / Vim da Bahia modificar isso aqui / Toco samba e rock, morena / Balada e baioque”.

Segundo o produtor Mauro Motta, pouco antes do “levante” da Sociedade da Grã-Ordem Kavernista – a denominação escolhida por esse quarteto, pressupondo, ainda que ludicamente, um movimento –, Raul teria lhe confessado sua “inveja” de Sérgio Sampaio:

“Esse sou eu. Não sou produtor porra nenhuma!; sou artista”.

Somavam-se ao quarteto kavernista o glitter rocker Edy Star e a sambista paulista Miriam Batucada. Não há dúvida: Sessão das 10 é o mais inextricável dos álbuns concebidos por Raul Seixas.

A obra apregoa valores da sociedade de consumo, destilando inteligência e fina autoironia. Durante 40 anos, acreditou-se na fábula segundo a qual as 11 faixas de Sessão das 10 foram oficiadas às escondidas da direção da gravadora.

Conforme Edy Star, único kavernista sobrevivente, não rolou nada disso. O trabalho, desmistifica, foi profissional e consentido. “A gravação levou 15 dias, com hora marcada no estúdio e anuência do diretor artístico.”

Outra inverdade seria a de que, por causa da suposta traquinagem armada em Sessão das 10, Raulzito fora demitido. Na CBS, em 1972, ele ainda produziu o compacto Diabo no Corpo, de Miriam Batucada. Edy define o quarentão álbum como atualíssimo:

“O disco é muito inventivo e divertido. Sérgio, Raul e eu éramos praticamente nordestinos unidos no deboche e nas críticas”. Radicado em Madri, na Espanha, onde dirige uma casa noturna com “35 mulheres internacionais”, Star conta que ele e Raulzito se cruzaram, pela primeira vez, em meados dos anos 60, na Rádio Sociedade da Bahia.

A relação não era das melhores. Raul teria se enciumado, certa vez, por causa do frêmito que Edy ocasionara com sua interpretação de “La Bamba”, de Rich Valens. Edy contradiz: “Raul estava era puto por ter que acompanhar uma bicha louca como eu pondo fogo no auditório”, debocha.

Antes de virarem colegas de CBS, Raul Seixas e o pianista Mauro Motta foram apresentados em condições adversas: tocando ao relento. Algumas noites, o conjunto de Motta, Os Blue Jeans, se apresentava ao ar livre com Os Panteras, no Largo do Pacificador, em Duque de Caxias.

O empresário responsável pelos shows era um avarento: “Tocávamos a noite toda. De café-da-manhã, o cara nos dava uma Caracu com um único ovo”. Desiludidos, em 1969 os baianos arrumariam as malas de volta a Salvador.

Mauro e Raul cruzaram-se, novamente, na CBS, onde se tornaram parceiros em “Ainda Queima a Esperança” (Diana) e “Vê se Dá um Jeito Nisso” (Trio Esperança). De acordo com Motta, a gravação de Diana foi um “sucesso absurdo”. “Comprei um fusca zero”, sintetiza.

Um dos maiores mimos que os seguidores de Raul Seixas, em breve, terão a alegria de vivenciar é a volta de Os Panteras. O estúdio Casa das Máquinas, encostado na orla de Salvador, é o próximo destino de meu roteiro.

Na solar tarde de sábado, sinto-me privilegiado por presenciar um ensaio dos felinos remanescentes – Eládio Gilbraz (guitarra), Mariano Lanat (baixo) e Carleba (bateria). O trio conservou as garras bem afiadas.

Com sexagenária mocidade, atacam de joias do repertório de Raulzito & Os Panteras, álbum de 1968 gravado no selo Odeon. A decisão do retorno, explica Eládio, foi tomada após a reunião da banda, que abriu e fechou o palco Toca Raul! na Virada Cultural de São Paulo. Segundo ele, existe chance de gravarem um volume de inéditas.


Composições como “Questão de Tempo”, por exemplo, ficaram guardadas desde os tempos de Raulzito. A formação clássica dos Panteras raiou ao acaso, em 1962. Por meio de Olival, amigo em comum, Mariano costumava emprestar o seu violão para um desconhecido.

A demora na devolução do instrumento, certa vez, fez com que o dono fosse cobrá-lo de volta. Mariano bateu, então, à porta da casa do jovem Raul Seixas, que morava no bairro Canela, perto da residência do baixista.

Motivada pela admiração compartilhada por Elvis Presley, a cobrança virou conversa de tarde inteira:

“Disse a Raulzito que eu tinha visto o filme de Elvis 36 vezes. Daí ele me falou: ‘Eu assisti 92. Vamos montar uma banda’”, conta Mariano, que aceitou o convite na hora. Raul faria vocais e guitarra e Mariano, que era violonista, assumiria o baixo.

O grupo firmou-se de verdade em 1963, com a entrada de Carleba e Eládio. O que se seguiu é de conhecimento público: “Fomos sucesso em bailes, clubes, programas de musicais e festas no interior da Bahia e chegamos até o distante Rio de Janeiro”, pontua o baterista.

A estada fluminense foi dura e infeliz e, em 1969, o conjunto se desfez. “A gravadora não ajudava. As condições eram muito adversas”, analisa Carleba. Sobre o fato de Raul Seixas não ser um artista muito popular na sua própria Salvador, a exemplo de outros conterrâneos, ele critica:

“Salvador é uma cidade atípica. Tem música, cultura, linguagem e culinária próprias. Apesar do respeito que impõe, na Bahia Raul não tem a mesma aprovação”, reconhece Carleba.

O produtor Marco Mazzola diz que Raul sempre se lamentava: “Não consigo entender; sou baiano, mas ninguém me dá mole na Bahia”. Carleba divide tragicômica passagem, envolvendo o bonachão Carlos Imperial.

Após muita insistência, a Odeon arranjou um encontro com Imperial em sua cobertura: “Viemos da Bahia tentar a sorte no Rio”, disseram. Imperial foi curto e grosso:

“Mostra aí”. “Mostramos uma, duas, três canções do nosso LP. Imperial quieto; o Raul, nervoso. Na quarta, Imperial falou: ‘Pode parar. Entrem no primeiro ônibus de volta para a Bahia. Esse tipo de música tem 14 mil conjuntos fazendo igual. Raulzito, ainda por cima, é nome de cantor de bolero’.” Raul ficou mal depois disso, segundo Carleba.

Mas anos depois se desforrou: “Não peguei aquele ônibus”, jogou na cara de Imperial.

Autor do livro A Paixão Segundo Raul Seixas, Toninho Buda conta que seu primeiro encontro com Raul Seixas deu-se numa sexta-feira 13 de lua cheia de agosto de 1983. Os dois fizeram “um ritual de banimento” entoando o hino “Sociedade Alternativa”, no palco do I Festival de Rock de Juiz de Fora.

Somente mal-intencionados ou supersticiosos, julga Buda, o associam com satanismo. “Ele fez uma música chamada ‘Rock do Diabo’, realmente. E ele próprio disse: ‘Existem dois diabos. Um deles é o ‘do toque’ e o outro é aquele de O Exorcista”.

Para Buda, Raul, estava associado ao primeiro – que é o da inteligência, Lúcifer, aquele que entregou a luz do conhecimento aos homens. Raul não tinha nada a ver com o diabo da igreja. “Os evangélicos sempre disseram que ele era filho do capeta.

Montavam piquetes na porta de seus shows, tentando impedir que as fãs entrassem na sua ‘Panela do Diabo’.”

Da panela do diabo saltamos para a República das Filipinas. Endereçado de Manila, capital do arquipélago, recebo, em Salvador, um pacote enviado pelo velejador Jay Vaquer. Mais conhecido como “o cara que tocou guitarra” em Krig-há, nos anos 70 ele assinava Gay Vaquer.

Trata-se do copião do roteiro de O Triângulo do Diabo – Opus 666, road movie que Raulzito roteirizou, mas não chegou a realizar.

No filme, os personagens de Raul e sua então esposa, Gloria Vaquer (irmã de Jay) encontram-se com misterioso ser, o “Homem Novo” – espécie de filósofo que lhes indica o portal que leva ao Triângulo do Diabo, situado no magnético Triângulo das Bermudas.

Gloria, Jay e Raul chegaram a viajar os Estados Unidos à caça de locações. Raul Seixas era apaixonado por cinema. Em 1975, Gloria e ele foram visitar Jay, na Georgia. O guitarrista estava
cursando a escola de cinema.

Quando viu que o cunhado tinha todos os equipamentos, Raul quis rodar um filme. Jay conta: “Falei: ‘Precisamos de um roteiro’”. O orçamento seria nos moldes de Easy Rider – Sem Destino, de Dennis Hopper, ou seja, baixo. Raul começou a escrever os diálogos.

“Enquanto ele redigia, procurávamos locações. Eu aproveitava para filmar em 16 mm.” De acordo com Jay, a obra que Raul considerava mais importante de sua vida nunca foi vista pelos fãs: “Está guardada na minha gaveta”, afirma. Raul minutou no seu diário:

“Tô saindo para o Triângulo do Diabo, rodar meu primeiro filme. Escrevi todos os diálogos. Meu trabalho de todos os LPs lançados e não lançados está condensado numa fita de duas horas de projeção. Quero o Oscar”.

Durante as pré-locações, Raul recebeu a notícia: o disco Novo Aeon estava com fraca vendagem. Precisaria retornar ao Brasil para promovê-lo. Jay lançou a ideia de montar clipes com as imagens capturadas.

Dessa forma, ajudaria o cunhado a levantar uma grana para bancar a produção. No vídeo de “A Maçã”, Gloria dança no que parece ser um pentagrama satânico (na verdade, um hexagrama). Outros trechos da filmagem foram editados nos clipes de “Morning Train” e “Caminhos”.

Raul voou ao Brasil em posse dos videotapes, conta Jay. “Ele disse que terminaria os diálogos e, depois, voltaria com grana para filmarmos de verdade.” Mas Raul não voltou. Começou, porém, a telefonar para Jay pedindo que ele viesse ao Brasil arranjar as guitarras do disco Há Dez Mil Anos Atrás.

“[Roberto] Menescal [na época diretor artístico da Philips/ Phonogram] ofereceu-me cinco mil dólares para eu tocar nesse disco. Ele também comprou fotos que tirei de Raul nas filmagens de New Orleans”, conta Jay. Raul havia escrito diálogos até a cena 33 – encerrada com a frase:

“Jesus morreu com 33 anos. Assim também este script”.

Na última escala da viagem à Bahia, encaro o asfalto trêmulo da rodovia BA 93 rumo a Dias D’Ávilla, município a 70 quilômetros de Salvador, onde a família de Raul passava férias. O caminho é paralelo ao da Estrada Real, donde repousam as ruínas do Castelo da Torre, única fortaleza (edificada em 1545) em estilo medieval da América do Sul.

O trajeto conduz, também, a Juazeiro, Jacobina, Rio Real e Feira de Santana. À margem da estrada, conheço outros escombros: do Sítio de Caboatã (soerguido pelos braços de Seu Raulzão, avô de Raulzito).

Na infância, Thildo Gama também veraneou no recanto. Espantado, ele recobra a atmosfera de garoto. Pensamos em Raulzito rolando arteiro sobre a campina verdejante ou indo nadar no cristalino Embassai, rio onde os moleques reuniam-se para beber pinga injetada num fruto de caju e fumar cigarros.

Em Dias D’Ávilla, belvedere de águas minerais e lamas medicinais, o “turista” mais ilustre virou nome de avenida. Também ganhou sua face (dos tempos de Gita) esculpida em bronze no centro da praça principal.

A estação férrea inspiradora da canção “Trem das Sete” risca ao meio o lugar: “Meu pai era engenheiro de estrada de ferro. Eu conheço o sertão inteiro da Bahia. Trem era meu fascínio”, anotou Raul. É aqui que Plínio Seixas – único irmão de Raul Seixas – manifesta-se.

É ele quem me procura, surpreendentemente. Conta-me que o mano comprou-lhe um contrabaixo e o incentivou a montar o próprio conjunto: Os Eles Quatro. “Vivemos a infância dos meninos travessos. James Dean foi nosso herói; Juventude Transviada, nossa escola.”

Ainda recordamos que era Plínio o excepcional comprador das revistinhas desenhadas por Raulzito, as quais ele vendia – sem jamais finalizá-las: “O sacana não terminava os gibis. Deixava-me agoniado sem saber o final das histórias”.

A voz de Plininho soa idêntica há 50 anos, quando, na introdução de Krig-há, Bandolo!, apresentou Raul Santos Seixas bradando “Good rockin’ tonight”: “Dá uma saudade danada.”

*O jornalista Cristiano Bastos entrevistou Zé Ramalho na RS30 (mar. 09) e finaliza o documentário Nas Paredes da Pedra Encantada (veja o teaser), sobre o disco Paêbirú.

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