Zé Ramalho se apresenta hoje em Brasília, no Açougue Cultural T-Bone. No repertório, músicas como Avohai, Frevo mulher, Admirável gado novo e Chão de giz, que ajudaram a fazer o nome do cantor paraibano a partir do final dos anos 1970.
O que muitos de seus fãs não sabem é que, anos antes, Zé já estava na ativa e tinha até gravado disco, o mítico Paêbirú, parceria com Lula Côrtes.
O álbum virou tema de documentário. Zé não quis participar (Paêbirú é um assunto que ele evita), mas aprovou sua produção. Lula Côrtes morreu sem assistir Nas paredes da pedra encantada, longa-metragem que investiga esse que é um dos mais raros discos brasileiros.
O LP duplo Paêbirú - Caminho da montanha do sol (1975) é o primeiro disco a levar na capa o nome do compositor de Avohai. Músico, poeta e artista plástico pernambucano, Luiz Augusto Martins Côrtes morreu em 26 de março, aos 61 anos, em decorrência de um câncer na garganta.
O filme ganhou sua primeira exibição pública em 30 de abril, em São Paulo, dentro da programação do In-Edit Brasil — 3º festival internacional do documentário musical.
Lula morreu em 26 de março, pouco mais de um mês antes da primeira exibição do documentário.
O Correio teve acesso ao filme (em uma versão ainda não definitiva, sujeita a ajustes), dirigido por Cristiano Bastos e Leonardo Bomfim. O documentário, além de abordar a feitura do disco - conversando com vários dos envolvidos, como o cantor Alceu Valença, o cartunista Lailson de Holanda, o artista plástico Raul Córdula e a cineasta Katia Mesel - tem na figura de Lula seu fio condutor.
E não teria como ser diferente. Com um carisma magnético, ele rouba a cena.
Rodado nas cidades pernambucanas de Olinda, Jaboatão dos Guararapes e Recife, e nas paraibanas João Pessoa e Ingá do Bacamarte, Nas paredes da pedra encantada é um road movie que captura muito do espírito da época em que o disco foi feito, em plena efervescência do udigrudi pernambucano.
Produzido com dinheiro do próprio bolso dos diretores (orçado em aproximados R$ 30 mil), o filme acompanha Lula de volta até a Pedra do Ingá, sítio arqueológico onde se encontram as misteriosas inscrições rupestres que inspiraram as letras do álbum — que apresenta em suas músicas uma rica combinação de ritmos nordestinos e rock psicodélico.
As premissas dos diretores resultaram em vários planos sequência, longos e detalhados depoimentos, que passeiam por temas como ecologia, arqueologia, contracultura, música e lisergia, permitindo ao espectador entrar na história sem pressa.
"Queríamos que o filme respirasse, fugisse de edições frenéticas, de ritmo videoclíptico. E que tudo nele fosse novo, sem imagens de arquivo — até porque elas não existem —, mostrando o que a gente viu", conta o jornalista gaúcho radicado em Brasília Cristiano Bastos.
"A ideia não era apenas entrevistar, mas olhar as pessoas. Como o Pennebaker em Don't look back, filmando detalhes dos personagens, um filme observador", emenda o carioca Leonardo Bomfim, mestrando em comunicação morando em Porto Alegre, em referência ao documentário do diretor americano que captura Bob Dylan em 1965.
REGISTRO VÍVIDO - Em alguns momentos, a limitação financeira da produção surge na tela, mas isso não interfere em seu encanto justamente pela riqueza das imagens e das falas dos personagens. Há depoimentos divertidíssimos, como Lula contando como pediu Katia (sua mulher na época) em casamento ou o avistamento de elefantes em pleno sertão paraibano.
Em Ingá do Bacamarte, onde se localiza a pedra, os moradores dão versões ingênuas e hilárias para a origem das inscrições. Além da natureza, a música exerce grande força no documentário. O próprio Paêbirú serve de trilhas sonora, mas foram feitas cenas musicais exclusivas.
Em uma delas, Lula e seu tricórdio (espécie de cítara popular marroquina, instrumento que ele dominava e está por todos os quatro lados do LP) acompanham, em espontânea sintonia, Alceu Valença em uma música inédita do compositor de Tropicana e Coração bobo.
Em um dos depoimentos, Lula fala sobre o futuro, a vontade de construir uma nova casa no terreno que ganhara de um amigo. O músico se foi, mas permaneceu seu legado. E com Nas paredes da pedra encantada, permanece também um registro vívido desse incrível personagem da música brasileira.
Assista um teaser do filme: