sábado, 29 de maio de 2010

a mARCHA dOS bONECOS

POR CRISTIANO BASTOS - especial para O Estadão

Banda gaúcha só se apresenta com máscaras e se comunica com o público por meio de um gravador. Seria bizarro se o som não fosse tão bom
Uma banda que jamais mostra a cara de seus integrantes nem revela suas identidades. Apresentam-se com o rosto coberto por uma meia-calça e cartolas com lanternas de minerador. Seria ridículo se a música fosse ruim, o que não é o caso do som feito pela banda porto-alegrense Procura-se Quem Fez Isso.
E o sentido de tudo é: a música, não os indivíduos, devem ser o mais importante. Até a entrevista ao Estado é dada por um robô, programado para dizer frases como "as aparências costumam levar a associações, rótulos e estereótipos que atrasam o desenvolvimento da linguagem musical livre."
As mensagens foram enviadas ao repórter em MP3.
A banda, que já possui o EP Não Tivesse Coisas Novas Pra Lhe Dizer, gravado em 2005, com quatro músicas, também não fala com o público - a não ser pela música. No palco, a comunicação é possível por meio de um gravador que transmite mensagens, cuja voz não pertence a nenhum dos integrantes.
Antes de cada apresentação, um programa com o repertório do show é entregue. O objetivo é que cada apresentação seja levada a sério como espetáculo musical. "É como um teatro", afirma a lacônica voz digitalizada.
Arnaldo Baptista e Os Mutantes são duas das maiores inspirações da PQFI, assim como Arnold Schoenberg, Flaming Lips, Francisco Alves, Captain Beefheart e Mothers of Invention. Burt Bacharach, Beach Boys, Beatles e a musicalidade circense complementam a fórmula.
"É praticamente um clássico da música experimental moderna brasileira ainda sem lançamento", aposta o editor do site Senhor F e produtor da banda Superguidis, Fernando Rosa.
Arnaldo Baptista ouviu o grupo a pedido do Estado. Suas palavras: "A música alcança-me poeticamente", disse sobre a canção A Marcha dos Bonecos.
Em seu estúdio-ateliê em Juiz de Fora, Minas Gerais, o homem que concebeu Loki? também escutou outras duas canções: Bagdá (She''s My Baby) e Ele Quer Todo Mundo a Seus Pés. Com a candura que lhe é peculiar, Arnaldo metaforiza a letra que fala da "política dos homens-bonecos":
"São aqueles indivíduos que trabalham cinco meses por ano só para pagar impostos. As letras reclamam o certo", diz.
De passagem pelo Brasil, em novembro, a surf-garageira The Mummies, da Califórnia, se apresenta em São Paulo (Clash Club) e, depois, no festival Goiânia Noise, em Goiânia. Menos niilista que os Mummies, a Procura-se quer "romper com as barreiras superficiais que possam atrapalhar o caminho da música".
Apesar da estranheza, a aceitação do público tem sido muito boa. Foi o que se constatou na última edição do Festival Bananada, em Goiânia. O público se sintonizou no sério, mas lúdico, espírito do grupo.
Um dos fundadores do selo Monstro Discos, Fabrício Nobre, revela que a PQFI foi uma das melhores bandas que ouviu recentemente. "A Procura-se Quem Fez Isso é uma das minhas apostas para 2010", diz Nobre, que cita ainda a acreana Caldo de Piaba e a paulista Pélico.
Em Porto Alegre, a PQFI abriu para Os Mutantes e ganharam elogios rasgados de Sérgio Dias, irmão de Arnaldo.
O guitarrista e produtor mineiro John Ulhoa que, em 2004, produziu Let It Bed, mais recente álbum de Arnaldo Baptista, também ouviu a PQFI. João conta que gostou muito do que ouviu.
"Me pareceu uma banda de som quase progressivo. Ao mesmo tempo divertida, o que é quase impossível de se achar por aí." O grupo tem um pé em Mutantes, mas, no entanto, mais minimalista. Fora a complexidade dos acordes. "Um belo achado. E o visual é muito bom!", diz Ulhoa.
Outro item que desperta curiosidade do público é o antigo órgão vermelho de fabricação brasileira usado pela banda. O som é ainda "acolchoado" por sintetizadores modernos, guitarras e um pouco de samba.
As letras, diz "a voz", concentram-se na "essência de um refrão e na sua repetição."
Em alguns momentos, o formato assemelha-se à poesia haicai, que chamou a atenção do poeta e tradutor gaúcho Paulo Neves, que passou a contribuir com as letras. Conhecido por suas parcerias com Zé Miguel Wisnik, Neves escreveu trechos de A Marcha dos Bonecos.
Ele também trouxe duas canções que, em breve, estarão no repertório: Minhas Coisas Favoritas, versão aportuguesada do clássico My Favorite Things, de John Coltrane, e a instrumental Isabel (Bebel), de João Gilberto, que foi letrada por Neves.
A canção é mais conhecida na interpretação dos Novos Baianos. Outra mensagem digitalizada informa: "Idolatramos os provérbios. Antes eram os ditos populares e agora é o Twitter. A verdade é que adoramos refrões".

Bagda (She's My Baby)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

eNTREVISTA rOLLING sTONE: zÉ rAMALHO

POR CRISTIANO BASTOS
Camuflado numa alameda do bairro do Flamengo, o ex-cadete do exército José Ramalho Neto encravou em solo fluminense um QG de raízes paraibanas: a produtora Jerimum. As simbologias agrestes são marcas constantes e profundas na obra de Zé Ramalho.
Sob a umidade tropical do Rio de Janeiro, a aridez do sertão ainda é metáfora-chave para ingressar nos numerosos códigos – místicos, psicodélicos, ufológicos e de velhos ícones do rock'n'roll – cifrados em suas composições.
Ele conta que "desceu ao mundo" em março de 1949, em Brejo do Cruz, nos confins da Paraíba. Depois da morte do pai, poeta, afogado num açude do sertão, foi criado pelo avô para ser médico.O avô-pai, após uma viagem lisérgica do neto envolvendo cogumelos, extraterrestres e mensagens telepáticas, virou a canção-hino "Avôhai".
Numa conversa animada que levou a tarde inteira de uma segunda-feira, Zé Ramalho falou sobre o disco novo, Canta Bob Dylan – Tá Tudo Mudando e a facilidade que encontrou para liberar canções do velho Zimmermann – o exato oposto ocorreu com as canções assinadas pela dupla Raul Seixas e Paulo Coelho no projeto Zé Ramalho Canta Raul Seixas.
O paraibano abriu suas vivências químicas, sem pudores e em dois capítulos: primeiro, com os cogumelos alucinógenos; depois, com a cocaína. E explicou sua negação para se manifestar sobre o álbum que fez com o Lula Côrtes, Paêbirú: "Por que tantos anos depois? Deviam ter falado sobre isso há 30 anos!"

Onde sua história começa?

Zé Ramalho - Apesar de eu ter nascido em Brejo do Cruz, e não "da" Cruz, como muita gente confunde, por causa da música do Chico Buarque, depois de dois meses meu avô conduziu a família pra Campina Grande, onde ficamos até 1960. É lá que, pela primeira vez, eu escuto rádio, com 5 anos de idade. As rádios AM eram a única novidade, as novelas do rádio e os programas de auditório ao vivo. Na Rádio Borborema vi show de Marinês e sua Gente, Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Lembro que tivemos que ir pra João Pessoa, porque meu avô sofria de pressão alta e Campina Grande fica em cima da Serra da Borborema. Aos 13 anos, quando o intelecto foi se abrindo, a música ganhou mais força. A Jovem Guarda começou a aparecer para mim. Especialmente, Roberto Carlos e Renato & Seus Blue Caps. Eu estudava no colégio Pio X, dos Irmãos Maristas, em João Pessoa. E, nesse colégio, de educação extremamente fina, nos jograis que a gente tinha que fazer uma vez por mês, um dos trabalhos era organizar um grupo musical em cada classe. Depois fazer uma espécie de concurso entre os alunos. Eu já sabia dar três acordes no violão. Juntaram outros dois colegas. Fizemos uma apresentação que fez muito sucesso. Aquilo criou uma chispa. Acendeu em mim a chama dos grupos de baile, pode-se dizer. Dali, logo depois passei a procurar os músicos que tocavam nos bailes pela cidade de João Pessoa. Eram muitos.

Como era esse grupo de baile?

Zé Ramalho - Fundamos uma banda chamada Elis & os Demônios, com mais três colegas da escola. Começamos a ser contratados para tocar em bailes, para as pessoas dançarem. Bailes de quatro horas. Eu tocava guitarra e, aos poucos, fui me incumbindo dos solos. Eu copiava. Isso me trouxe uma riqueza muito grande. Porque você toca de tudo. A formação mais famosa que integrei tinha um vocal fenomenal: Os Quatro Loucos, que, antes, se chamava Four Crazy's, numa tradução errada – o certo seria Crazy Four. A gente tocava músicas em inglês, então eu levava as letras pro professor traduzir, pra entendermos o que estávamos cantando. Foram experiências importantes pra me dar noção sobre comportamento de palco, remuneração e profissionalismo. Comecei a pensar nessas coisas.

Você era muito jovem?

Zé Ramalho - Muito. Eu tinha 16, 17 anos. Agora, encostei nos 60. Estou em "cinco ponto nove", companheiro. São 42 anos de carreira. Mas as coisas ainda estão muito frescas na minha cabeça. Os grupos de baile tocavam, basicamente, Jovem Guarda, e quase nada de forró, quase nada de samba. A gente tocava guitarra pra conquistar as meninas e ter uma chance de colar nelas. Até que, com 18 anos, chegou a hora de servir o quartel. Pior que eu tinha fama de cabeludo por causa dos grupos.

Fama de cabeludo?

Zé Ramalho - Eu era muito cabeludo! [risos] E era xingado: "Cabeludo! Viado! Vá tomar banho! Vá cortar o cabelo!" Eu ouvia isso o tempo todo. Como me propus a tudo isso, no entanto, aguentei no osso. Hoje em dia quem liga pra isso? Quando o barbeiro do exército me viu, disse: "Vou logo cravar esse cara". Ele me pegou mesmo. Não consegui me livrar. Meus estudos passaram pra parte da noite e, nos fins de semana, eu botava uma peruca pra tocar. Foi nessa fase "militar" que comecei a fazer música.

O que se passava em sua cabeça na época?

Zé Ramalho - Final dos anos 60, contracultura explodindo no mundo: eu estava atento a tudo isso. Woodstock! Quando saí do cinema, depois de ter visto esse filme, minha vida mudou. Vi in loco no Brasil. O cinema lançando pela primeira vez, em 1970, Rio de Janeiro. Depois, vi em Recife, na Paraíba. Em diversos lugares. Woodstock foi importante pra eu ver aquela atitude, o comportamento, a cultura hippie: sexo, drogas, nego fumando sem haver nenhum tipo de confusão. Eu achava aquilo uma espécie de "utopia mágica" – música que dava uma sensação de você estar vivendo num "planeta amor". Em Recife encontrei novo horizonte. Comecei a frequentar shows e, num desses, conheci o grande guitarrista Paulo Rafael, que ainda hoje toca com Alceu Valença. Na época tocava na banda Phetus.

Como você conheceu Alceu?

Zé Ramalho - Ele estava fazendo o filme A Noite do Espantalho. Eu namorava uma menina que morava em Recife, na praia de Boa Viagem. Glauce, o nome dela. Ela me disse: "Se você quiser conhecer um cara legal, Alceu Valença é o nome dele. Ele namora minha irmã. Alceu tem umas músicas ótimas". Uma tarde, fui à casa dela e Alceu estava lá. Nos demos bem de cara. A empatia foi imediata. Foi daí que também conheci Geraldo Azevedo, que tocava com ele. Isso era 1974. Em 1975, chega a história do Festival Abertura da Rede Globo, em São Paulo, produção do Augusto César Vanucci. O Alceu reuniu os melhores músicos que tocavam em Recife, na época, caras da banda Ave Sangria. Um bandão.

Era a abertura política?

Zé Ramalho -
O Festival Abertura já era uma sugestão do General Figueiredo pra abertura política que se prenunciava. Os artistas do festival estavam sendo lançados pela Som Livre. Quase todo o cast do festival, na verdade, era da gravadora: Alceu, Luiz Melodia, Jorge Mautner, Hermeto Pascoal. Um festival de luxo. Iniciante, me encantei vendo aquele povo todo e comecei a ficar por aqui, no Rio, depois que passou a coisa toda com o Alceu. Como eu ainda não tinha as músicas que estreei no meu primeiro disco, fiz algumas tentativas pelo Sul que não deram em nada. O repertório era basicamente de músicas de rock, mas não chamava público. Sem ter disco gravado, uma carreira, na vida artística você é considerado aspirante. Contudo, tive de voltar ao Nordeste e preparar-me mais. Nessa volta, fiz um trabalho com a cineasta Tânia Quaresma, importantíssimo para encorpar de vez meus conhecimentos. Ela filmou Nordeste, Cordel, Repente e Canção e me convidou pra participar do projeto. Eu conhecia o universo dos cantadores e violeiros, mas ainda não tinha me aprofundado. Tânia me contratou para servir como espécie de rastreador de violeiros, nas locações das filmagens.

Você atuaria no filme?

Zé Ramalho - Caso necessário, eu completaria algumas passagens tocando viola. Eu já era muito elogiado pela minha técnica. Nos shows do Alceu eu tocava viola de 12 e de dez [cordas]. A experiência do filme foi importante demais, pois veio uma camada de cultura popular, legítima, invadindo meu corpo e cérebro inteiros. Foram 17 dias de viagem a bordo de uma Kombi: Ceará, Pernambuco, Paraíba e uma parte de Sergipe. Fomos às varandas das casas dos violeiros, onde tinha as pelejas, nas oficinas dos cordelistas. Eu estava absorvendo essa cultura de uma maneira que nunca eu tinha pensado ser possível.

O que aprendeu?

Zé Ramalho - Entendi algo muito preciso: as leis da cantoria, principalmente, a fórmula de se fazer os versos. Uma forma que você tem que entender. Não adianta decorar. Quando volto para a Paraíba, também faço minhas primeiras experiências com outra turma: a dos cogumelos alucinógenos. Preciso contar essa história pra explicar o link que, depois, acontece na minha vida. Pra começar: acho que nem deveria chamar cogumelo de droga. Não há o contato da mão humana. É tudo direto. Quando descobriram que tinha isso nos pastos do Nordeste houve uma espécie de busca por parte de minha geração. Tem um tipo de cogumelo específico que não vai intoxicá-lo. Nós, porém, éramos loco ma non troppo – antes, realizamos estudos com fotografias dos cogumelos para saber quais eram comestíveis e quais eram venenosos. No meu caso, foi uma coisa que me deu uma iluminação muito grande. Foi quando recebi a mensagem do "Avôhai".

Como foi isso?

Zé Ramalho - Eu descrevo na música uma parte dessa experiência: "Amanita matutina / E que transparente cortina ao meu redor" [canta]. Amanita é nome científico dos cogumelos. Quando senti isso, eu estava numa fazenda linda, pasto maravilhoso. Sensação de liberdade – "Transparente cortina ao meu redor" [recita]. Era como se fosse a aurora boreal. Seu olho fica muito preciso. Todas essas coisas estão muito presentes na música: o encantamento, a espiritualidade que as pessoas sentem de imediato. "Avôhai" é minha única música que posso dizer que teve uma espécie de mediunidade envolvida. Porque eu não pensei nela, ela me foi soprada: "Avôhai... Avôhai..." [sussurra]. E a forma como a letra veio, veloz. Depois, voltando pra casa, nessas ondas de psicodelia, num retrato da parede tinha a imagem de uma pedra de turmalina. Saiu a letra todinha: "O Velho cruza a soleira" – "Avôhai, avô e pai". Escrevendo os acordes sem parar, eu sabia pra onde ir, cara. Foi de uma rapidez impressionante e nunca mais aconteceu algo parecido em minha vida. O que é "Avôhai"? Por toda a minha vida, eu tenho que responder essa pergunta quase semanalmente. Tenho o maior prazer em falar sobre isso. Nunca me cansarei.

Você acha que a lisergia desabrochou tudo isso?

Zé Ramalho - Essas experiências eu chamo de "A Semana da Iluminação", os dias que sucederam "Avôhai". Eu morava em João Pessoa numa casa chamada Vila do Sossego, tinha uma plaquinha na porta. Nos dias que se seguiram a essa viagem aconteceram todas essas músicas: "Chão de Giz", "Vila do Sossego", "Jardins das Acácias". Meu primeiro disco é muito espiritualista. E muito lisérgico. Não há conotação política nas músicas. Separei as que tinham e deixei de lado pra preservar esse lado viajante e, principalmente, meio regional. É um disco sem bateria. Tem a participação do [tecladista] inglês Patrick Moraz, do Yes. Só "Avôhai" pra conseguir uma coisa dessas.

Como foram as gravações de "Avôhai"?

Zé Ramalho - Foram de uma precisão incrível. Moraz estava no Brasil gravando o disco The Story of Eye com o Carlos Alberto Sion. Calhou que o destino configurou Sion pra ser produtor do meu primeiro álbum. Chegou na hora de gravar algumas partes instrumentais e perguntei quem iria fazer. E ele: "Patrick Moraz. Vamos mandar uma fitinha sua pra ele". Enviamos uma fita cassete pra ele ouvir. Na época, ele estava substituindo Rick Wakeman no Yes. Quando escutou a música, bateu algo nele. E eu fiquei bobo na hora em que entramos no estúdio. Ele me pediu pra passar alguns acordes a fim de completar o arranjo. Eu, ingênuo, ao lado daquele cara, side by side: "Rapaz, como é que pode?!" Patrick observando os movimentos de minha mão. Sacando os acordes. Chegou o Ivinho e fez aquela viola ultrarrápida. Até o final de 1977, quando eu registrei meu primeiro álbum, foi uma sobrevivência séria que passei no Rio. Eu não tinha dinheiro. Não tinha onde ficar.

E você foi se virar como michê?

Zé Ramalho - Não cheguei a ser michê, mas tinha umas meninas que dormiam comigo. A canção "Garoto de Aluguel" é autobiográfica por causa disso. Essas meninas eram estudantes que eu conhecia do tempo em que tocava com o Alceu. Eu era rato de show aqui no Rio de Janeiro. Elas gostavam dos cantores nordestinos, do jeitão da gente, meio desengonçados. Era mais a inspiração da música. Elas viam a situação em que a gente estava. Eu passei fome. Várias vezes dormi em frente ao Copacabana Palace. Mas teve uma camarada lá no Bar da Glória que, durante uns quatro meses, me deixou dormir num quarto de empregada, aquele cubículo miudinho. Era o tempo dos militares, em que assassinos, estupradores e bandidos não existiam. Existiam hippies e malucos, mas eles diziam: "Esse pessoal deixa em paz porque não é subversivo". "Nordestino sofredor" – chamavam a gente assim. Depois de servir o quartel, cheguei ao Rio preparado. As coisas que eu passei no quartel não foram moles. Antes de partir fui pra frente do espelho e disse: "Olha, cara, se você acha que é tão espertinho, vá pro Rio de Janeiro, sozinho, sem depender de ninguém". Fui com isso na cabeça. Sabia, no entanto, que com o pacote de canções alguma coisa iria acontecer. Disso eu tinha plena certeza, senão não viria.

Você já tinha essas músicas no bolso?

Zé Ramalho - O Augusto Cesar Vanucci fez muito esforço pra me colocar na Som Livre, só que não houve como. Percorri um longo caminho. O Durval Ferreira, após ouvir a letra de "Avôhai", fez uma cara de quem não gostou e a atirou no chão. Ele dizia que uma letra daquelas nunca iria funcionar. Talvez, apenas, se eu a mudasse. "Se você mudar para uma coisa mais comercial..." Sempre eles faziam uma proposta. Eu nunca aceitei. Passei pela Odeon, Fonogram, depois Polygram. Até que cheguei na CBS. Era final de 1977. Raimundo Fagner tinha um disco que havia saído pela gravadora e começava a fazer sucesso para um artista nordestino. Na CBS só existia o Roberto Carlos que vendia. Notaram que havia uma coisa expressiva: os nordestinos vendiam discos. Foi o que aconteceu. Alceu já estava despontando.

Vanusa gravou "Avôhai" antes de você, não é?

Zé Ramalho -
Gravou. Não chegou a estourar, mas eu participo da gravação, por conta do Vanucci. Ele chegou pra mim: "Tem uma pessoa que eu gostaria que gravasse uma canção sua. Você autoriza? Quer participar?" Eu: "Claro que quero". Os arranjos de viola sou eu que faço. O fato é que a minha gravação teve uma magia pessoal que a Vanusa não tinha como passar, afinal era uma experiência muito pessoal. Mais a participação de músicos como Dominguinhos passando pelo estúdio, com sua sanfona, foi um feitiço. Altamiro Carrilho, sumidade de flauta da época de ouro do choro. E também Paulo Moura. Havia uma configuração de músicos. Tudo acontecia de maneira muito espontânea. Pela primeira vez, tive a chance de ficar no Rio de Janeiro, confortavelmente, sem precisar dormir ao relento. Me colocaram num hotel. Ô, como adorei! Foi maravilhoso poder comer e dormir.

Sua geração revelou um Nordeste musical moderno ao Brasil.

Zé Ramalho - Certamente, sem aquela coisa tradicionalista-purista do Nordeste. Essa reciclagem da música nordestina aconteceu por aquela geração – ou seja, o forró elétrico, como chamavam, os "violétricos", mistura dos violeiros com o rock de guitarras. As pessoas estavam acostumadas com a música nordestina por causa da dimensão muito forte que Gonzaga, Jackson, Martinez e Genival Lacerda cravaram. Historicamente, algo bem pouco referendado. Verdade. Nunca tive vergonha de dizer minhas influências, meus mestres. Quem são meus mestres? Começando pela primeira camada que veio: aqueles astros de Woodstock, Jovem Guarda, Renato & Seus Blue Caps, Roberto e Erasmo. Aí entra a descoberta do Nordeste: Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, os violeiros Otacílio Batista e Oliveira de Panelas, que foram mestres profundos que tiveram paciência e uma generosidade muito grande pra me passar as leis e obrigações da cantoria. Isto é, onde a rima entra. Doze modalidades da cantoria de viola que me foram ministradas por esses dois mestres, um já falecido. O Oliveira de Panelas ainda está vivo. O Otacílio me permitiu musicar: [recita] "Mulher Nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor". Depois Beatles, Stones, Dylan, Santana. Tudo isso absorvi profundamente. Não só de botar um disco e ficar ouvindo. Eu procurava tirar a harmonia das canções, queria entender a arquitetura musical. E olhe só: estou falando do privilégio da minha geração que era o de comprar esses discos quando eles estavam saindo. No tempo real desses discos. Este é o caldeirão que estou mexendo até hoje. Quando lanço, vira Zé Ramalho. Não faço cópia de nada.

E a canção "Mistérios da Meia-Noite"?

Zé Ramalho - Novela Roque Santeiro, 1985. Eu tinha me separado do segundo casamento. Morava em Fortaleza, na época, e voltei pro Rio de Janeiro. Me instalo num apartamento no Leblon e recebo um telefonema do Mariozinho Rocha falando dessa novela, que precisava de uma música pra um personagem do Professor Astromar. À meia-noite ele virava lobisomem. Essas crenças populares. Desliguei o telefone, fui pro quarto e fiz a música em meia hora. Liguei de volta: "Tá pronto”. E ele: "Ficou maluco?" E eu: "Escuta aí pra você ver". Daí ele: "Tá ducaralho!" Tem barbado que, até hoje, vem me dizer que quando era menino ouvia a introdução e saía da sala correndo porque ficava com medo. O videoclipe foi ao ar pelo Fantástico. Eu apareço tocando. E tem Luiza Brunet também, esperando. Era um luxo, extremamente sofisticado pra época, o cenário feito no Teatro Fênix. Adorei fazer aquilo.

Você cursou dois anos de medicina em João Pessoa. Se alguém tiver um troço na sua frente, ainda sabe o que tem de fazer?

Zé Ramalho - Até um determinado limite. Dr. Ramalho! [risos]. No 2º ano de medicina minha cabeça latejava de música. Eu tinha que tomar uma atitude. Não suportava mais viver daquele jeito. Fui pra casa e comuniquei: "Vou abandonar a faculdade". Tem que ter muita coragem. Foi a decisão de minha vida."Estou abandonando a faculdade, vou me dedicar só à minha carreira de músico e compositor." Foi um escândalo, mas foi a decisão certa. Eu iria passar mais três anos da faculdade aprendendo cada vez menos e me frustrando cada vez mais. No fim, minha família me deu a passagem pro Rio. Só de ida. "É só o que preciso", disse a eles. Meu avô quase morreu, o velho Avôhai. Quase teve um ataque quando viu que eu estava decidido. Algumas horas na vida você tem que decidir o que quer fazer.

Você enfrentou problemas com a liberação das músicas de Raul Seixas e Paulo Coelho para o disco Zé Ramalho Canta Raul. Como foi com o Dylan?

Zé Ramalho - No disco sobre o Raul houve aquela polêmica toda: o escritor não autorizou que eu gravasse as músicas que ele também assinava. Não sei se foi algum tipo de inveja – inveja de magos, de entidades... Seja como for, a atitude antipática, com certeza, não foi a minha. De qualquer maneira, tive que recomeçar outro álbum. O disco já estava gravado quando houve essa decisão final, irrevogável, dele. Mas eu jamais recuaria. A gravadora quis cancelar o projeto. Eu disse: "Que nada! Vamos fazer o seguinte: 'Vou fazer um disco só de músicas assinadas pelo Raul'". Peguei a discografia inteira dele e escolhi.

É irônico que você não tenha conseguido a autorização do Paulo Coelho, mas tenha conseguido a do Bob Dylan.

Zé Ramalho - Pois é. Foi uma surpresa. O Aluizio Reis, da minha equipe, levou esse pacote de versões, pessoalmente, pra explicar à equipe do Dylan quem era Jackson do Pandeiro, o que é candomblé, o que são "balas perdidas". Tem várias situações brasileiras encaixadas nas versões. Levaram pra Dylan, que lê tudinho e dá uma aprovada geral – sem tirar nada. Pelo contrário, aprovado com louvor.

Como escolher as canções de Dylan, entre as milhares que ele gravou?

Zé Ramalho - Você olha pra cima, fecha os olhos e a lembrança do que gosta de Dylan vem à cabeça. É preciso se apoderar de um canal de sentimento pra colocar num trabalho desses que, certamente, vai bater em vários lugares. Pelo mundo todo, porque os fãs de Dylan vão querer ouvir. Eles ouvem tudo.

Você conheceu a Joan Baez. Como foi?

Zé Ramalho -
Com ela, tive um encontro polêmico em 1980, em São Paulo, quando ela estava visitando o Brasil. Eu estava lançando meu disco, A Terceira Lâmina, e a gravadora propôs: "A Baez está em São Paulo. Está fazendo um documentário sobre direitos humanos na América Latina. Você quer fazer uma apresentação do seu show com ela?" Fui pessoalmente ao hotel onde ela estava. Muito simples, ela me recebeu em seu apartamento. Ensaiei eu e essa mulher, sozinho, com um violão. A gente ensaiou a música de Geraldo Vandré, "Vou Caminhando", em português. Mas a censura não liberou. Veio um documento da Polícia Federal impedindo a apresentação dela nesse show: "Proibida de cantar". Isso eu tenho guardado no meu arquivo. Ela estava aqui pra se encontrar com Lula, sindicalista. O Senador Eduardo Suplicy, ainda vereador, foi quem a levou. Com Baez tive a sensação de estar muito próximo ao universo de Dylan. Tenho no meu arquivo uma gravação, eu cantando com ela essa música do Vandré e "Imagine", no quarto do Hotel. Ela foi impedida de cantar, mas subiu ao palco e disse apenas: "Não posso cantar...". A platéia delirando. Ela entrou sem me avisar. Entrou em "Admirável Gado Novo", dançando, e disse: "Não posso cantar. Estoy proibida". Depois que acabou o show filmamos, em seu camarim, essas duas canções. Depois mandamos uma cópia do VHS pra ela. Já faz quase 30 anos. Se eu botar esse vídeo no YouTube pega fogo. Está guardado. Isso não morreu.

Como foi sua experiência com a cocaína?

Zé Ramalho - Como experiência, durou 12 anos de minha vida, até esgotar. Houve um período, no início, que a cocaína me despertou muita criatividade. Por exemplo: "Frevo Mulher", hit há 30 anos. No carnaval de Salvador, não existe uma banda que não toque. Essa música foi feita numa madrugada, num quarto de hotel. De repente dá aquela chispa. Eu estava tão agoniado, a cabeça latejando de tanto pó que tinha entrado, e fui tomar um banho para relaxar. Quando saí do banho, a música saiu junto. E fiz rapidamente. Foi feita para a Amelinha gravar. Eu estava tão excitado, a energia era tanta que eu poderia fazer muito mais músicas nessa madrugada. Mas tem o velho problema: você bebe e fuma muito. No meu caso, sempre teve mais música envolvida. Adorava ficar cantando, tinha essas viradas violentas, ficava a noite inteira e emendava no dia seguinte. Agora, quando você começa a ficar embotado, lhe tira o brilho. Celso Blues Boy, que é a sublimação blues no Brasil, tem uma música que diz: "Cantarei na escuridão / Nessa treva sem fim / As coisas são assim / Pra que se lamentar / Se dentro de nós sempre brilhará". Eu escutava isso e achava uma coisa tão bem-feita. Me identificava. Nessa época, o Rio vivia um inferno de cocaína no ar. A Colômbia colocando pó de grande qualidade a preço de banana, o Cartel de Medellín investindo pesado pra todo mundo gostar e querer mais.

Você se sentia viciado?


Zé Ramalho - Não, me sentia preso. As últimas sensações que eu tive com cocaína foram muito ruins, organicamente falando. O day after era uma coisa cada vez pior. Ao ponto de, na última vez que tentei pegar num canudo, veio um pensamento: "Olhe, cara, você vai começar de novo. Você sabe bem o que sentirá amanhã!" Quando lembrei disso, joguei o canudo fora e nem comecei. Era tão ruim a sensação que deu medo. Depois tive que "desempoeirar" minha carreira. Não havia ninguém sentado no meu lugar. Ele permanecia ali. Empoeirado, mas ainda ali.

Por que você não quer mais falar sobre o álbum Paêbirú?

Zé Ramalho - As coisas são muito simples. Não vou citar aqui razões pessoais, particulares. A minha recusa em falar é assim: quando Paêbirú foi lançado, há mais de 30 anos, na época em que saiu, apesar da cheia que aconteceu, ninguém falou nada sobre ele. Alguns álbuns foram mandados aqui pro Rio de Janeiro. Por que tantos anos depois? Deviam ter falado sobre isso naquela época! Eu acho apenas incrível que se vislumbre tudo isso em torno de um trabalho que já foi feito há muito tempo.

Qual sua relação hoje com a Pedra do Ingá?

Zé Ramalho - De vez em quando faço visitas à Pedra do Ingá. É uma relação curiosa porque ela me dá projeções de como imagino certas coisas: a criação do mundo, os primeiros habitantes da terra, as criaturas do espaço que vieram aqui. Eu sou agnóstico, como John Lennon: imagino o mundo sem religiões. Aceito a explicação, que cada vez é mais permanente, que foram criaturas do espaço que vêm nos visitar. Faço parte dessa legião de ufólogos que têm grande esperança numa revelação. A experiência de "Avôhai", que contei sobre a viagem de cogumelos, "as cortinas", tem uma presença alienígena. A visão que tive das cortinas, na verdade, foi uma nave gigantesca que estava em cima de mim, enorme. Por entre as nuvens dava pra ver a sombra da nave – imensa, gigantesca. Havia uma presença alienígena, com certeza, naquele momento. E, quando olhei pro chão, estava repleto de olhos de gente a me observar. Isso aconteceu perto de Recife, num pasto chamado Rio Botafogo, uma fazenda enorme onde os malucos descobriram as amanitas que nasciam por lá. Essa experiência lisérgicafoi definitiva pra toda minha vida.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

a sEREIA dO mAR*


(...)

E o Dom Tronxo, que tocou aquela guitarrona em "Raga dos Raios", do Paêbirú?

Zé Ramalho – Dom Tronxo tornou-se, depois, grande compositor. Ele tem discos gravados com selos alternativos. O encontrei em Caruaru, cerca de um ano atrás, morando numa fazenda. Fui ver um show que ele estava fazendo. O nome dele, na verdade, é João Fernando. Ele tinha um grupo chamado Dom Tronxo & As Borboletas Cor de Leite. Aí você pensa que vai entrar um cara com a banda, e entra o cara sozinho. Ele se chamava assim. Dom Tronxo era um cara muito loucão. Nas experiências de cogumelo ele sempre tava no meio. No encarte de Paêbirú ele aparece recebendo um cogumelo de uma criança. Quando ele ficava doidão, ele dizia assim pra gente: "Vem aqui. Vou mostrar que consigo mexer a lua com o dedo". (muitas risadas)

E a Pedra do Ingá?

Zé Ramalho – Essa pedra é o seguinte: de vez em quando faço visitas à Pedra do Ingá. É curiosa porque ela me dá projeções de como imagino certas coisas: criação do mundo, primeiros habitantes da terra, criaturas do espaço que vieram aqui. Eu sou agnóstico, como John Lennon: imagino o mundo sem religiões. Eu aceito a explicação, que cada vez é mais permanente, que foram criaturas do espaço que vêm nos visitar. Faço parte dessa legião de ufólogos que tem grande esperança numa revelação. Me sinto privilegiado em ser contatado por cientistas e ufólogos. A experiência de "Avôhai", que contei sobre aquela viagem de cogumelos, "as cortinas", tem uma presença alienígena. A visão que eu tive, na verdade, foi de uma nave gigantesca que estava em cima de mim (Ramalho diz mirando o teto), enorme. Por entre as nuvens dava pra ver a sombra da nave – imensa, gigantesca. Havia um apresença alienígena, com certeza. E quando olhei para o chão, estava repleto de ollhos de gente a me observar. Isso aconteceu perto de Recife, num pasto chamado Rio Botafogo, uma fazenda enorme onde os malucos descobriram as amanitas que nasciam por lá. Essa experiência lisérgica foi definitiva para toda minha vida.

A Elba, sua prima, se deu mal com as declarações dela...

Zé Ramalho – Ela deu mole com aquela história de dizer que foi "chipada". A Elba, da mesma forma que fala de UFO, fala de santas. Não pode.

Ela fez um "sincretismo espacial".

Zé Ramalho – Muito louco isso. Uma coisa dilui a outra. Se bem que até o Vaticano já mandou dar o seguinte recado: "A Santa Igreja aceita todas as criaturas do espaço porque são todas filhas de Deus" (risos). Mas algo importante está criptografado no painel da Pedra de Fogo. Ela está ligada com Machu Pichu e o Caminho da Montanha do Sol passa pela Pedra do Ingá. Foi uma criatura só que fez tudo aquilo... A Pedra do Ingá do Rio de Janeiro, onde o pessoal solta de asa delta, tem a forma de uma cara gigante. Todas essas inscrições foram feitas numa mesma "caminhada", que algum ser, numa nave gigantesca, fez pelo planeta milhares anos atrás.

Você tem o Paêbirú?

Zé Ramalho – Sim, o vinil pirata alemão.

O que planeja daqui pra frente?

Zé Ramalho – Antes, passar férias na Paraíba, na casa de praia que tenho em João Pessoa, à beira do mar, em Areia Vermelha. O melhor lugar do mundo. Eu passo um mês em contato com a natureza lá. Eu fico na praia com a minha mulher e os filhos, e me sinto muito bem com as pessoas que passam e acenam pra mim. Eles vão lá e ficam me cumprimentando o dia inteiro.

Agora não não tem mais aquele negócio de: "Vá cortar o cabelo! Vabundo! Viado!".(risos)

Zé Ramalho – Não, não! Deixaram de falar. Minha relação com o meu estado jamais foi tão boa.

*Extra da entrevista com Zé Ramalho na Rolling Stone. Entre outros temas, Ramalho fala sobre Paêbirú - Caminho da Montanha do Sol (1975), primeiro álbum gravado por ele na mocidade, cuja inspiração foi a Pedra do Ingá (monumento pré-histórico que ilustra o post) .

eNTREVISTA: mARK aRM




POR CRISTIANO BASTOS - REVISTA BIZZ


Todo mundo sabe que Mark Arm ( foto) é um fissurado colecionador de discos de rock. Na sua terceira vinda ao Brasil, com o Mudhoney, ele abriu o jogo sobre os seus álbuns prediletos, o que anda ouvindo e destacou, entre os seus dez mais, a banda carioca Os Brasões, um registro raro da psicodelia brasileira.


Qual álbum da primeira era piscodélica não sai nem a pau do seu player?


ARM - Escuto um monte de coisas diferentes e, uma hora ou outra, todas acabam deixando o meu toca-discos. Mas, Safe As Milk, do Captain Beefheart & the Magic Band é um grande álbum da primeira fase do piscodelismo. Assim como The Psychedelic Sounds, o primeiro do 13thFloor Elevators.


As trilhas sonoras de Russ Meyer são itens importantes na sua coleção, já que Mudhoney é o nome de um filme do diretor?ARM - Não são tão importantes assim, como se pode imaginar. A única trilha sonora que eu tenho de um filme de Meyer, em minha coleção, é Faster Pussycatt Kill! Kill!, de 1965. 


Qual o mais novo título passou para sua discoteca?ARM - O último foi o álbum do Pissed Jeans, Hope for Men  (SubPop) - a melhor e mais fudida gravação de punk que ouvi em muito tempo.


Cite dez álbuns que uma boa coleção de rock deve ter.


ARM - Não gosto de dizer o que as pessoas devem ouvir e nem de impor o meu gosto para os outros. Mas gosto dos ábuns desses dez artistas: The Stooges (o primeiro), MC5 (High Time), Captain Beefheart (Safe AsMilk), Brian Eno (Here Come the Warm Jets), Bill Withers (Still Bill, Just As I Am), Charles Mingus (tudo), Os Brasões (Os Brasões), Pere Ubu (The Modern Dance), Rolling Stones (tudo até It's Only Rock 'n' Roll), Easy Action (Friends of Rock 'n' Roll).


Qual disco tem a melhor distorção fuzz de todos os tempos?


ARM - Não tenho certeza. Vincebus Ereptum, do Blue Cheer, talvez.

domingo, 23 de maio de 2010

zÉ rAMALHO (1978)*

O primeiro Zé Ramalho nasceu clássico: "Avôhai", "Vila do Sossego", "Chão de Giz", "Meninas de Albarã" e "A Dança das Borboletas" - um punhado de canções de mão-cheia que formam uma obra fabulosa.

Folk, samba-canção, psicodelia, nordestinidade (e rock, claro) amalgamam-se misteriosamente na mistíca de seu álbum de estréia.
Leia no site da Rolling Stone a discografia completa e comentada de Zé Ramalho.

Fique com o videoclipe de "Mistérios da Meia-Noite", tema do Professor Astromar na novela Roque Santeiro.
É a licantropia agrestina.


quarta-feira, 5 de maio de 2010

tRÁGICO e eRUDITO*

Pela primeira vez expondo no RS, Francisco Brennand investe numa arte repleta de simbologia clássica e (mal) classificada como popular

CRISTIANO BASTOS, de Recife
Entrar na oficina do artista pernambucano Francisco de Paula de Almeida Brennand, no bairro da Várzea, em Recife, é viver uma aventura onírica nos domínios da história, da natureza, dos signos e da existência.
Aventura maior, no entanto, é conhecer o criador no mundo onde habitam suas criaturas.
Uma pequena parte das obras de Brennand não está aqui, no Templo da Várzea, pois integrou em Porto Alegre a exposição itinerante Brennand: Uma Introdução, que pôde ser vista na cidade em setembro, no Museu da UFRGS.
As 33 esculturas, 17 pinturas e nove desenhos do artista pernambucano fazem parte da exposição itinerante que comemora os 200 anos do Banco do Brasil e que percorre outras duas cidades brasileiras até 25 de novembro.
Uma amostra modesta selecionada entre as mais de 1,7 mil peças da oficina do artista, mas ainda assim relevante: Brennand nunca havia exposto no Rio Grande do Sul, embora acumule individuais na França, Alemanha, Itália e Estados Unidos.
Ceramista por excelência, o artista também foi homenageado em 2007 com uma retrospectiva no Museu AfroBrasil, em São Paulo, por conta de seus 80 anos. "Peças de barro são difíceis de transportar, mas mesmo assim trata-se de um artista importante no cenário internacional pela sua originalidade", diz o crítico Elisio Yamada, que auxiliou na curadoria da exposição.
Olívio Tavares de Araújo, mineiro radicado em São Paulo, há quatro décadas, é o curador da mostra, montada especialmente para preencher a lacuna em relação ao artista. "Museus do Rio, São Paulo e Curitiba apresentaram o Brennand verdadeiro em várias exposições grandes nos últimos anos, mas no resto do Brasil ainda sobrevive muito do outro, tido como religioso-nordestino", critica o curador.
A exposição, de fato, não deixa dúvida de que se trata de uma obra que vai muito além do regionalismo nacionalista. "Nem Brennand, nem sua arte, possuem nada de popular. Ambos são inteiramente eruditos", completa Araújo.
Em 1971, Brennand transformou a Cerâmica São João – que fabricava telhas e tijolos, erguida pelo pai em 1917 e abandonada desde 1945 – na Oficina Cerâmica Francisco Brennand, espaço monumental de pórticos, totens e esculturas transfiguradas, cada qual com significado particular: do mítico ao histórico, do humanístico ao heróico, a semiologia avulta-se em cada recanto.
Num quadrilátero, os heróis que expulsaram os holandeses do Brasil: o índio Filipe Camarão, o negro Henrique Dias e os portugueses João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros. A oficina é um dos pontos turísticos mais visitados do Recife. A literatura teve importância primordial em sua escolha pela arte. Na juventude, desfrutou ao máximo da biblioteca da mãe, educada no colégio Sacre Coeur do Rio de Janeiro.
Sua iniciação às letras, portanto, foi feita pelo viés feminino: "A biblioteca de meu pai era diferente da biblioteca de minha mãe. Tive de ler Jane Austin, Virginia Woolf, Sidonie Colette. Uma literatura de liberdade, modernidade e avanço", lembra. Foi lendo a obra Um Gosto e Seis Vinténs, de Somerseth Maughan (biografia ficcional do pintor francês Paul Gauguin) que Brennand confirmou, de fato, sua vontade de se tornar pintor.
"Dos pintores modernos, Gauguin foi o que teve a vida mais aventurosa. E isso me atraía", diz o artista. Do traço à forma Ao dar utilidade às ruínas da antiga fábrica do pai, Brennand se identificou com o que os europeus começaram a chamar, nos anos 70, de arqueologia industrial.
Londres talvez seja o melhor exemplo desse processo ao ter transformado imensos pavilhões de produção metalúrgica em espaços de arte. E ao ter transformado, não sem algum sofrimento, antigos bairros operários em verdadeiros guetos culturais.
Pois no período do açúcar, no século 18, Pernambuco foi a província mais rica do Brasil. Nesse tempo, a região da Várzea, onde o artista tem sua oficina, era cheia de engenhos. Recife é uma cidade que começou a se desenvolver na presença dos holandeses. Olinda, a antiga capital da província, era uma das cidades mais ricas das Américas, conhecida no mundo todo pelas suas igrejas e pelo ouro que enfeitava seus altares.
"São elementos que ainda estão presentes na cultura pernambucana", lembra o artista. Curiosamente, foram os abastados senhores de terra – de quem Brennand é um herdeiro legítimo – que começaram a conspiração contra os holandeses.
No terreno da Várzea começaram as primeiras escaramuças, que inspirariam decisivamente o artista: em 1961, Brennand pintou o seu mais famoso mural, A Batalha de Guararapes, encomendado pelos irmãos Farias, ilustres banqueiros de Minas Gerais.
No mural,um mestiço sustenta uma bandeira republicana. "Era século 17, mas resolvi antecipar a nacionalidade", justifica. Brennand até hoje se diz honrado pela oportunidade que recebeu de fazer o mural. O motivo é a premente necessidade que existe de respeitar – e ressaltar – a história brasileira: "Não vejo nenhum intectual criticando o que está acontecendo na Amazônia", critica ele.
"Não é apenas a possibilidade de invasão estrangeira que aflige as fronteiras. É o crime do desmatamento e das queimadas. São os pretextos de desenvolvimento sustentável. Está todo mundo silencioso, em um silêncio amedrontador", constata. Brennand, entretanto, não ficaria preso às formas planas durante muito tempo.
O curador da mostra explica que a década de 70 já marcou a transição de uma pintura vinculada à religiosidade e à cultura nordestina, casos de Sexta-Feira da Paixão (1959/1961) e Tigre (1965), para uma escultura que destaca figuras da mitologia clássica, formas sensuais e homens e mulheres regidos pelo sofrimento.
São características que se mantêm presentes na sua obra até hoje. "O tema essencial de Brennand foi e continua sendo o destino trágico do homem", lembra Araújo. Ao mesmo tempo, o escultor pratica uma espécie de intuição criativa: "Picasso dizia que sua salvação era fazer obras cada vez piores", lembra o artista – uma forma inteligente de distinguir o bom do certo. "É necessário coincidir com o eixo do mundo, com as forças da natureza e com os elementos intuitivos", filosofa Brennand. É o que, na prática, ele faz na Oficina da Várzea – um imenso work in progress, um projeto de vida, como salienta Araújo.
As esculturas da Oficina da Várzea estão organizadas segundo uma espécie de cosmogonia, onde o artista (ele) é o deus. Num dos pátios laterais, no que é chamado de templo, estão as peças mais identificadas com um caráter totêmico, arquetípico. São imensos seres imaginários, símbolos fálicos, Adão e Eva sobre um espelho d’água. "É como entrar num sítio arqueológico, num templo ou palácio construído há 4 mil anos", descreve Araújo sobre a oficina.
Dentro dos galpões, as peças se enfileiram de forma marcial, solene, como se representassem um exército.Os verdadeiros heróis de Brennand, entretanto, estão na literatura. O russo Fiódor Dostoiévski é a inspiração suprema: portador de epilepsia, foi um dos gênios maiores da humanidade, para o escultor.
"Encostado em Cervantes e em Shakespeare", arremata. O polonês Joseph Conrad, que alguns críticos reduzem a mero "escritor do mar", é outro que inspira o artista. "Ele possuía uma dimensão espetacular", diz. Já Hermann Mellville e sua criatura, a baleia Moby Dick, são "criações portentosas".
As influências eruditas e européias acabaram isolando Brennand no cenário da arte brasileira, especialmente do colega de colégio Ariano Suassuna – pernambucano como ele, escritor, identificado com as raízes sertanejas da cultura nordestina. Idealizador do movimento armorial nos anos 70, baseado no romanceiro popular e no cordel, Suassuna defende uma posição "nativista" em relação à arte e à política.
Algo, para Brennand, "jacobino e radical" demais. "Sob o ponto de vista da pintura, Ariano foi muito mais influenciado por mim do que ao contrário. Em minha arte, sempre tive preferência pelos valores europeus", confessa o escultor. Ainda que, por muitos críticos, seja considerado um artista armorial, o artista abandonou os temas regionais justamente quando o movimento começou a ganhar força.
Aliás, a exposição que iniciou em Fortaleza, passa por Porto Alegre e segue para Belo Horizonte tem este objetivo: limpar os clichês em torno do artista Franciso Brennand, ampliando o alcance dos olhares sobre sua obra e relativizando algumas verdades criadas com a repetição de falsas impressões.
Apesar das divergências, Suassuna jamais criticou o amigo pelas posições ideológicas contrárias às suas. Sabia, naturalmente, da dissidência de Brennand, especialmente quando o escultor começou a investir numa arte na qual, abertamente, expunha a pesada carga sexual de sua produção.
"O Ariano simplesmente me deixou de lado, como quem lida com um caso perdido", diz o artista. Não sem antes lembrar da inexistência de qualquer elemento erótico no movimento armorial. Brennand está mais para marujo do que para matuto."Não tenho olhar sertanejo: minha visão é para fora daqui. Para o mar aberto".
*Revista Aplauso / Foto: Flora Pimentel

pENSATINHAS cOM bRENNAND

Marcel Duchamp: Não foi um tolo. Tolos foram aqueles que o seguiram.

Moby Dick, de Hermann Melville: A Baleia Branca representava o incognoscível.

Mulher: Aquela que nos escapa por estar a serviço da Grande Mãe.

Homem: Aquele que idealiza a mulher para conseguir aproximar-se dela.

Deus: Deuses. Diferentes deuses. Eu amo o Cristo e Dostoievski.

Satã: Entre os demônios conhecidos, o principal é o homem. "O homem lobo do homem".

Vanguardas: Necessárias. Mais do que necessárias para que as novas gerações se sintam vivas, únicas e privilegiadas.

O Século 20: Um estranho carnaval a preparar, sem escrúpulos, as desgraças anunciadas e cumpridas no Terceiro Milênio.

Herói da juventude: Príncipe Míchkin (Personagem do livro O Idiota, de Dostoievski).

Grande Arte: A pintura e a literatura.

Maior Filme de Todos os Tempos: O Morro dos Ventos Uivantes, baseado no romance de Emily Brontë, com direção de William Wyler.

Pernambuco: É a Várzea do Capibaribe. São João da Várzea, onde eu nasci, cresci e sobrevivo

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