terça-feira, 16 de outubro de 2007

o gRANDE sONHO dO cÉU

Existe uma grande vantagem quando se compra livros em hipermercados: o etiquetador de preços – sorte nossa – não tem noção alguma do valor verdadeiro de certos títulos. E não tem mesmo. A impressão é que está se livrando dos livros como se livra de carregamentos de lingüiça calabresa com data de validade expirada.
A mais-valia praticada nas livrarias de supermercados (coisa um tanto pós-moderna) é tão pragmática quanto "a resposta" que o leitor do gênero auto-ajuda aguarda na próxima página. Se está faltando alguma coisa na despensa da sua vida, simples, você vai ao mercado, como de costume, e lá pode escolher entre os mais sortidos modelos de bengalas encadernadas disponíveis no varejão editorial. Se sempre há um problema, o livro com a sua solução já foi lançado - nem que seja para resolver o problema do bolso do PHD espertalhão que o escreveu.

Foi assim que, na noite do domingo, fiz algumas aquisições num hipermercado da capital federal por deliciosos e confortáveis dez reais. Na hora de pagar, o caixa do supermercado me veio com a seguinte observação: “É raro alguém comprar livros de ficção. O pessoal só quer saber de auto-ajuda”. Detritos como o Monge e o Executivo, O Poder da Paciência e, no topo das listas, o best-seller dos volúveis, O Segredo. Calafrios...Como me disse sabiamente uma nova amiga, “a boa literatura de ficção é a única e verdadeira auto-ajuda”. Não sei se fiquei mais pasmo com a observação do caixa ou com a arrepiante visão na gôndola dos livros: “100 Clássicos da Auto-Ajuda”.
Em meio ao entulho editorial, encontrei duas jóias. O relançamento da literatura cut-up de Almoço Nu (Ediouro), de William Burroughs, com a adição de trechos e fragmentos dos originais do escritor datilografados, e O Grande Sonho do Céu (Editora Arx), do escritor, ator e roteirista Sam Shepard. Quem já se deparou com os escritos de Shepard, como Cruzando o Paraíso (Mandarin), sabe o quão gratificante é a leitura de um dos seus livros. Literatura cheia de predicados que prima por concisão, simplicidade e sintaxe despojada.
O Grande Sonho do Céu reúne 18 contos, oscilantes entre a calamidade humana e a redenção individual. Impossível não ser cooptado ao sentimento de amor que Shepard dedica à solidão e – como sempre – aos cenários desolados do interior dos Estados Unidos. No conto Vivendo o Cartaz, o homem induz um jovem balconista a refletir sobre a existência a partir da visão de uma mensagem manuscrita, dependurada num gordurento restaurante de beira de estrada. Absurdo filosófico-prosaico, verdade, que não serve para apaziguar as lamentações das almas afoitas em torno dos manuais de autocomiseração soltos à venda por aí.
Vencedor do Pulitzer, além de escritor Sam Shepard é um desses grandes atores, de maravilhosa plástica e atuações salvadoras - até dos piores filmes. No cinema, seu grande feito é o roteiro de Paris, Texas, do diretor alemão Win Wenders, laureado com a Palma de Ouro em Cannes.
Um excerto de Sam Shepard em Crônicas de Motel, escrito em um dos moquifos que o autor habitou à beira das estradas:
Sentia um parentesco menos com a música do que com a voz da rádio. A sua qualidade sintética. A sua voz única, distinta das vozes que a atravessam. A sua capacidade de transmitir a ilusão de gente a grande distância. Dormia com o rádio. Falava para o rádio. Discordava do rádio. Acreditava numa Terra Longínqua do Rádio. Como achava que nunca encontraria esta terra, reconciliou-se consigo mesmo limitando-se a ouvir rádio. Acreditava que tinha sido banido da Terra do Rádio e condenado a errar eternamente pelas ondas sonoras, ansiando por um posto mágico que o devolvesse à sua herança há muito perdida.
22/12/79 Homestead Valley, California.

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