Cena esquizofrênica do recente clássico de Terry Gillian, Fear and Loathing Las Vegas: esparramado na banheira, o narcotizado advogado Dr. Gonzo (Benício Del Toro) implora para que Raoul Duke (Johnny Depp) arremesse o toca-fitas na água quando a canção que ringia dos alto-falantes atingisse o seu clímax.
A voz feminina é imperativa: "Feed your Head! Feed your Head! – estrofes finais de "White Rabbit", música banida das rádios em 1967 pela apologia que faz as viagens alucinógenas. A voz retumbante que emposta candura & potência para cantar as aventuras de Alice in Wonderland depois de lanchar alguns cogumelos psicodélicos é de Grace Slick - a um só tempo a bela, talentosa e posicionada vocalista do Jefferson Airplaine (na célebre foto).
Em "White Rabbit", espécie de Bolero de Ravel embalado numa canção de ninar com movimentos circulares que virou um dos hinos da head music, Grace pincelou tonalidades ainda mais dietilamídicas a já lisérgica obra de Lewis Carrol. Ela também escreveu "Somebody to Love", peça sonora não menos simbólica do período. As duas músicas estão no álbum fundamental do Airplaine, Surrealistic Pillow, que marca o debut de Slick nos vocais da banda.
Musa do acid rock de San Francisco, Grace Slick não foi a única fêmea talentosa da cena do rock psicodélico que prevalecia na Califórnia – e no mundo – no auge do Summer of Love. Mama Cass e Michelle Phillips (dos Mamas & The Papas), Nico e Janis Joplin eram grandes vozes, só que nenhuma delas juntava, como Grace, uma beleza intraduzível, habilidade nata para song writter e domínio sobre a complicada matemática construtora de canções lindamente pop.
O jornalista gonzo Hunter Thompson sempre assumiu seu fetiche por Grace Slick. Cansou de afirmar que música - além das drogas - sempre fora um "combustível" para ele:
"Pessoas sentimentais chamam isso de inspiração, mas o que elas realmente querem dizer é combustível. Isso acontece de novo, e de novo, e cedo ou tarde você é fisgado, e fica viciado. Toda vez que ouço 'White Rabbit', estou de volta à meia-noite viscosa de San Francisco, procurando por música, dirigindo uma motocicleta vermelha veloz ladeira abaixo em direção ao Presidio, me curvando desesperadamente nas curvas através dos eucaliptos, tentando chegar ao Matrix a tempo de ouvir Grace Slick tocar sua flauta".
No rock dos anos 70 e 80, é clara a linha condutora que parte do estilo vocal de Grace Slick e atinge outras roqueiras: da chata (pra burro) Alanis Morrisete à chata (pra caralho) Dolores O'Riordan, da poetisa punk Patty Smith à runaway Joan Jett, todas reverenciaram – da melhor à pior forma – sua força vocal. Alcoólatra, vegetariana e defensora dos animais, com o fim do Jefferson Airplaine Grace Slick encarou a insipidez do Jefferson Starship, um Airplaine diluído numa receita enjoada de hard rock ufológico, teclados e sintetizadores. E, por fim, o que restara do Jefferson Airplaine original reduziu-se à corruptela Starship e seu rock inofensivo, perfeito para rodar no easy listining boco-moco das rádios adultas.
A beleza de Grace Slick arrebatou muitos corações. Apaixonado, o cantor folk Country Joe McDonald compôs a balada "Grace" em seu louvor. Jim Morrison teve um rápido affair com ela encharcado em bourbon. Em 1998, Grace confessou que, de todas as pessoas com quem sempre desejara ter um caso amoroso, só faltaram duas: o guitarrista Jimi Hendrix e o ator inglês Peter O'Toole.
Em 1994, após reclamação da vizinhança, um policial vai até a casa de Grace Slick, em Tiburon, Califórnia, para ver o que estava acontecendo. É surpreendido pela cantora completamente embriagada e por uma arma carregada apontada para ele. Sua sentença foram 200 horas de prestação de serviços comunitários, além de ser obrigada a comparecer aos Alcoólicos Anônimos por três meses. Hoje, a amadurecida Grace Slick jura que sua garganta está longe da bebida. O fabuloso canto de antes, porém, não se fez mais ouvir como naqueles dias em que a vida era onírica e as cores vibravam intensamente.