quinta-feira, 29 de outubro de 2009

lOLLIPOP, cALCINHAS & cOLEÇÕES

A farra gratuita dos downloads romantiza as clássicas dificuldades que o colecionador de discos da velha estirpe dos analógicos tinha de passar até que um dos bons pousasse no seu "aparelho de som".
Os que restaram dessa espécie - virtualmente extinta - seguem a perscrutar o globo terrestre, entre sebos e ultramegastores, no encalço do Grande Álbum Perdido. A memória do velho colecionador deve ser preservada para as novas gerações. Seus dias estão contados.
Logo essa busca de fé ficará sob o domínio especializado de confrarias. É bonito, mas o compartilhamento de arquivos sonoros pela internet (que de novo não tem nada) é mais lindo ainda: o maior milagre realizado no século passado.
O obcecado colecionador não apenas comprava o disco na loja. Com direito a transporte naval ou aéreo até a porta de sua casa, ele empreendia destemida caça ao tesouro.
Encomenda variável entre o fino da pirataria e a mais rebuscada edição oficial catalogada. Epopéia grega, se comparada às facilidades oferecidas por zilhões de enclaves que entregam de lambuja o mapa da mina musical nos mares da web.
Há uma década (um século, porém, na senda do progresso) conseguir aquele disco raro daquela sua banda favorita que nunca-foi-lançado-no-Brasil-e-nunca-o-seria significava a eternidade.
Eternidade com elevado custo para bolsos juvenis vazios, só compensada pelo inigualável deleite místico que vinha como garantia total do produto. O fetiche acalentado por meses materializava-se, afinal, com a chegada da sonhada encomenda.
Mercadoria entregue, o ritual fetichista. Primeiro, fase de excitação: o desembalar do disco, desnudado de seu invólucro como a calcinha que se libera gentilmente das pernas da fêmea pelo ávido controle de suas mãos.
Em seguida, o aguardado momento de abrir a delicada caixinha: olhos fechados para sentir a flagrância evolada pela sedutora química erótico-serigráfica. Que somente as delicadas circunferências têm – que os discos rígidos nunca terão.
O mínimo a fazer é amor com a música, como se fosse a mulher amada. Você esperou aquela música cruzar oceanos revoltos de tempo, imensidões e profundezas abissais para estar com você na intimidade lhe sussurrando melodias ao pé da cama.
Entregue-se. Se fuma, vá em frente: acenda um cigarro. Se ainda fumasse, certamente eu acenderia um Marlboro. Deve ser apenas por causa de sexo & música, além da Primeira Grande Guerra, que inventaram os cigarros.
Veneno de luxo - O colecionador que se criou chafurdando nas lojinhas de discos do bairro ou do centro da cidade (e de todos os lugares pelos quais pisavam seus pés) ainda demorará para ser extinto.
Nas colônias de férias dos colecionadores das antigas nunca faltará uma reedição do In-a-Gadda-da-Vida ou uma versão mono remasterizada do The Piper at the Gates of Dawn. Já os colecionadores modernos têm acesso à praticamente tudo produzido na música do Planeta.
Pela lógica, sem mais ter mais o que colecionar, a raça dos analógicos seria consumada. Os downloaders convictos, todavia, nunca vão sentir o inigualável prazer que é pagar do próprio bolso por uma obra, seus direitos autorais e incontáveis impostos embutidos.
Isto é, prazer livre de culpas.
Por outro lado, também nunca saberão o que é ter o bolso ardendo em cerca de R$ 100 a menos por um disco importado. Com tanta dor, o prazer da compra é facilmente sublimável.
Nunca vou esquecer das inúmeras fases de encomenda e esperas por discos na minha adolescência. Em Porto Alegre, entre outras lojinhas, comprava-os na acolhedora Toca dos Discos, que resiste até hoje na Rua Garibaldi.
Lembro bem que numa brilhante manhã de inverno sobre o bairro BomFim arrebatei poderosa edição da coletânea Sladest!, do Slade, que escutei muito.
Na Toca comprei Too Much Too Soon, dos New York Dolls, ouvido duzentas mil vezes para ver se percebia novos detalhes na guitarra do Johnny Thunders. Mesmo sabendo que grandes detalhes não era, exatamente, o que se podia esperar daquele disco.
O que se podia esperar era uma dose de energia sonora capaz de te fazer levantar, se estivesse sentado e pular, se estivesse de pé.
Too Much Too Soon era encomenda dos festejados tempos em que o dólar valia one by one com o real, por volta de 1997, quando muitos obstinados aproveitaram para completar suas intermináveis coleções.
Foi a época do regozijo - fenômeno que nunca mais se repetiu no Brasil. Quando a moeda americana voltou a estabilizar o naufrágio se abateu sobre o negócio dos colecionadores.
Outra loja que ainda está no ramo dos "venenos" - nem sempre baratos - em Porto Alegre é a Boca do Disco. O comércio de discos pertence ao lendário Getúlio, cuja irmã é casada com Cid Moreira (de onde -vejam só - saiu o capital inicial pro negócio).
Até hoje, Getúlio vende seu peixe - ou melhor: seu "churrasco de raridades". Sem desfazer-se do bordão pelo qual ficou conhecido: "Leva que é costela gorda, magrão!".
Não era fácil montar uma coleção de respeito. Houve o tempo em que, por telefone (!), eu consultava catálogos de lojas paulistanas, como a London Calling.
Com a ressalva de ter que suportar o atendimento ultrablasé do cara na outra extremidade da linha – um sujeito que, contrariando todos os preceitos universais da mais-valia, não dissimulava o ciúme pela perda de suas jóias.
Ressaltando que, na época, a London Calling vendia as edições mais especializadas do ramo. Com preço e antipatia idem. Os venenos eram trazidos diretamente de quebradas londrinas pra lá de confirmadas.
Só em Alvorada - Nos tempos pré-download, só fui ouvir um disco dos Dead Boys por causa de um amigo que tinha uma banda punk, a Unidos pelo Ódio. O nome dele era Julinho. Um cara que morava em Alvorada, lugar tipo New Jersey, na região Metropolitana de Porto Alegre.
Território ideal para a legitimação de um "status quo punk". Julinho calçava sapatos comprados no varejo popular do centro de Porto Alegre, cujas modelagens ficavam penduradas em fieiras com jaquetas de nylon e calças de moleton.
Pra fazer a cabeça do Julinho, trago de cachaça, cigarros Derby e sua parceria com William Caveman. A dupla arrebentava atacando versões para Heartbreakers, Clash e Sham 69.
Fanta Uva, só com pinga.
Antes do Julinho surgir com Young, Loud and Snotty, os Dead Boys, eram para mim apenas um mistério do rock. Se podia ler tudo sobre eles em Please Kill Me, entretanto, era praticamente impossível era ouví-los.
Só em Alvorada.
Na faculdade de jornalismo da PUC teve um cara que quase ficou famoso. Tão quase famoso que ficou conhecido como "O Cara das Fitas". Jamais se soube seu verdadeiro nome. Sua fama, no entanto, precedeu-lhe.
Virou personagem de tira de HQ criada pelo Nik Neves na finada revista ZE. Chegou a ser personagem do livro Gauleses Irredutíveis. Para quem o conheceu, hoje o Cara das Fitas é o paradigma tecnológico vivo.
Nos corredores da Famecos, fazia vítimas como velociraptor. Em grupos ou individualmente, abordava com a persuasiva - e inesquecível - pergunta:
"Querem dar uma olhada na minha lista de fitas?".
Sua lista de fitas (dita seja a verdade) tinha um monte de coisas legais. O Carlinhos Carneiro comprou uma Basf 90 com os dois Kinks psicodélicos, Village Green e Arthur, um de cada lado. Ficou impressionado com Blur lembrava Kinks. Todos queriam xerocar sua fitinha.
Por volta de 99, o Cara das Fitas foi obrigado a adaptar seu negócio aos novos tempos:
"Querem dar uma olhada na minha lista de fitas? Agora com cd's gravados", reformulava - sem, claro, mudar o famoso bordão-base.
Para os colecionadores convertidos aos novos tempos, a internet é o Jardim do Éden. Dádiva do Deus do Rock (Elvis?) aos seus súditos.
Mas é bom aproveitar: a mamata dos downloads - como tudo o que é bom - não deve durar para sempre. Pra variar, tem muita grana em jogo.
Contudo, levando em conta a areia movediça sobre a qual a indústria discográfica se debate, o orgasmo promete ainda se prolongar: Let's get it on Let's get it on.
Dos álbuns que "algum dia ainda tinha de ouvir" (coleção, aliás, que todo mundo deve ter a sua), Psychedelic Lollipop (1966), do quinteto novaiorquino The Blues Magoos, é desses que haviam ficado para trás.
Sem preliminares; só dois pontos: Psychedelic Lollipop abre com a fenomenal "(We ain't got) Nothin' Yet", que entrou no top 10 EUA e, por lá, descansou de dezembro de 66 a fevereiro de 67. O single vendeu um 1 milhão de cópias.
Enquanto "Tobacco Road" desfecha em sinuosos ruídos, as colantes batidas de "Gotta Get Away" e "One by One" explicam o sucesso nas paradas.
"Love Seems Doomed" (a-t-e-n-ç-ã-o para as iniciais!) é uma viagem de amor por paragens lisérgicas. Não se acanhe e baixe Psychedelic Lollipop. Não é como baixar as calcinhas da garota que você ama, mas a diversão é garantida.
Vai por mim.

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