sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

gOLIN: "o rS eSTÁ cONDENADO pELO cIVISMO pILCHADO"

[[DESORIENTAÇÃO]] – Bahia e Rio Grande do Sul são Estados cujas tradições culturais têm alta força em seus territórios. Ambos têm produção musical forte, particular, original – deve-se dizer.
Mas com a grande diferença: a música baiana também é nacional, ouvida e consumida como água no Brasil, enquanto a gaúcha, seja pop ou nativista, sempre encontrou algum tipo de resistência do público. O que explica a sina?
Tau Golin – No geral, o RS está condenado pela maldição do civismo pilchado, nucleado pelo Movimento de Tradições Gauchescas, porém bem mais espraiado. Existe um dirigismo, como se a estética fosse uma ilustração da história oficial, ainda muito de elogio à oligarquia, aos heróis, etc. Tudo deve estar “coerente” com o discurso oficial.
É incrível como a própria esquerda entrou nesta, mesmo sendo um fenômeno de apenas meio século, no âmbito do Estado, da mídia e da indústria cultural. Alguns dos seus inventores ainda estão vivos. Aos poucos, as manifestações regionais espontâneas foram sendo disciplinadas para um folclorismo artificial e de caserna.
Em diversos lugares do mundo, as manifestações espontâneas ou dos grupos sociais legaram os elementos para a cultura popular e, inclusive, erudita, se ainda usarmos essa divisão problemática. Conseqüência, o civismo não permitiu que surgisse uma cultura popular no RS, que se equalizasse com o Brasil, que tivesse pontos substanciais de diálogo, sentimentos, lúdicos.
Estou convencido de que essa cultura cívica de massa é invenção de intelectuais médios, que somente se sustenta nos rituais do Estado, nos programas ufanistas da mídia e pelo calendário de eventos das entidades, o qual se introduziu inclusive na educação. Sua linguagem é especializada, precisa de auxílio de vocabulário, ser iniciado; para dançar, precisa-se de professor. É a velha herança barroca da oligarquia regional transformada em método cultural. O meu livro A Expedição (Sulina) revela um pouco isso.
Ninguém agüenta exclusivamente essa música, nem mesmo os tradicionalistas... Tradicionalista é um ser fragmentado que se mostra como “unidade” somente nos eventos cívicos-gauchescos e para os outros...Eles estão interessados no controle cultural e não com a cultura; são os senhores dos sentidos, os arautos do RS heróico.
A danação toda é se tomarmos os ritmos e o estilo oligárquico, inventados recentemente, como “cultura gaúcha”. Não tem saída, pois seu nexo é cívico e identitário, não está preocupado com modo de vida, modo de existência, com a tragédia e o deslumbramento humano.
Acho que a ausência de uma cultura popular - de sentido, conteúdo popular -, não de massa, abre possibilidade de reflexão nessa comparação. Na Bahia, você entra na festa, partilha, vive junto; no RS, eles se apresentam, você assiste.
Fui em alguns festivais de folclores em que a festa comia solta, com representações de diversos países tocando e comandando; as delegações se alternando, sinergia total. Aí vinham os “gaúchos” - os malas. Parava tudo para eles se apresentarem, se exibirem... E terminar a festa... Ninguém agüenta.
[[DESORIENTAÇÃO]] – Se dependesse de certos gaúchos, o que é feito no Estado não deveria sair de lá. A cultura autofagista gaudéria parece bastar para alguns...
Tau Golin – Acho que no Manifesto tem um indicativo importante para isso, como no meu Identidades. Eles não estão interessados em se relacionar. Consideram-se uma força “aculturadora”, especialmente depois da hegemonia dos brigadianos e dos “italianos”.
[[DESORIENTAÇÃO]] – Porque o Brasil não se interessa pela música do Rio Grande do Sul? São os nossos códigos que são extremamente fechados?
Tau Golin – São códigos para o civismo e para a construção da identidade. Uma cultura popular tem o cotidiano e seu tempo como conteúdo. É algo além do tempo do verbo. A hegemonia cultural do RS está alicerçada no passado; digamos, um passado duvidoso, pois é uma interpretação dele, com recorte oficialista, chapa branca.
[[DESORIENTAÇÃO]] – Em 2006, o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG)proibiu músicos da chamada Tchê Music de usarem pilcha (bota, bombacha, guaiaca), por não considerarem "a legítima música gaúcha". Alegaram que grupos como Tchê Garotos e Tchê Barbaridade, além de alterarem o ritmo da música tradicional, estavam ofendendo a vestimenta.
Para piorar, nas apresentações do gênero, ritmos como axé, lambada, frevo e até mesmo rock foram incorporados ao crossover da TM. Sem entrar no mérito musical: a atitude de um movimento forte como o MTG não tem o caráter negativamente conservador? A história da cultura mostra que, em nome da evolução, é preciso se passar por todas transformações possíveis...
Tau Golin – Em tese, a TM deriva do mesmo campo tradicionalista. É mais uma variação de estilo, não chega a ser um rompimento, uma estética de negação. São coisas de um mesmo universo. Tanto que nunca se apresentou como superação. Muitos retornaram ao tradicional como terneiros fujões, quietos, acovardados.
Somente artistas talentosos e com convicções firmes podem se posicionar contra algo que transparece bem mais forte que um pobre músico. Passar por “estrangeiro”, traidor, etc. é algo muito forte para eles. Precisaria de uma discussão estética, política, histórica, que os músicos não têm condições intelectuais de realizar. Exceto alguns, mas se se exporem vão perder mercado.
O Yamandu talvez seja um dos poucos. E, assim mesmo, fala mais no âmbito particular e não para sustentar debate público. É impressionante a covardia dos músicos. Tem muito a ver com limites culturais e intelectuais, falta de informação. A maioria deles são artistas menores, que existem inclusive porque estão sustentados em um “sistema capacitador” do mercado da indústria pilchada. O manifesto possui diversos apoios “particulares”.
De outro lado, o fato da música do sul não ter espaço nacional não significa que não tenhamos uma boa quantidade de compositores e artistas talentosos, com obras que fazem representações aceitáveis, complexas, do universo rio-grandense, etc. Apenas não conseguem espaço no domínio dos meios de massa da vulgata pilchada.
[[DESORIENTAÇÃO]] – No Rio Grande do Sul, tal qual a Argentina, o rock é a música jovem urbana por excelência. Não existe Estado brasileiro – isso ainda é fato – em que o rock seja mais presente. Não é como em Recife, por exemplo, onde o Mangue Beat pegou o Maracatu, algo local e popular e deu dimensões nacionais.
Hoje, o Brasil inteiro dança o maracatu por causa da influência que foi o som de Chico Science e Mundo Livre. A Graforréia Xilarmônica pode continuar misturando à sua fórmula pop perfeita a milonga e o vanerão, que a legião de fãs que a banda tem no Brasil vai continuar a amá-la – mas é provável que nunca se interessarão pelos nosso ritmos regionalistas. Complexo, não?
Tau Golin – Talvez porque depende de códigos especializados, no sentido de treinados, inseridos em rituais, etc. Não vejo muito o problema na música, no ritmo, e sim no temário e no uso de um vocabulário campeiro, que nem os homens do campo entendem. É preciso fazer curso e ter um vocabulário gauchesco à mão.
Como as palavras possuem historicidade, inserem-se em um meio e mundo da pecuária, possivelmente não tenha encanto, em especial na versão tradicionalista. Cultura musical popular se sustenta mais nas composições música-letras. Talvez esse paradigma possa auxiliar na explicação de que apenas os nossos músicos alcem vôos mais distantes e possuem maior reconhecimento – Boghetino, Yamandu, Borges, Tio Bilia.
[[DESORIENTAÇÃO]] – Qual é a "cultura e a estética correspondentes à memória e à história do Rio Grande do Sul" que o Manifesto contra o Tradicionalismo reinvindica?
Tau Golin – Em especial, condenamos o uso do passado como valor exclusivamente positivo, como faz o civismo gauchesco do MTG, criando um nexo de que eles próprios constituem sua herança legítima (essa é uma instrumentalização, uma armação muito eficiente). Defendemos representações estéticas que tomem o humano dentro de sua tragédia e complexidade.
Enfatizamos a multiculturalidade do Sul e nos colocamos contra a visão laudatória do passado, dos heróis sublimes, como se não tivessem interesses e causas. Indicamos uma força central do dirigismo cultural, o qual legitima uma legião de funcionários que usurpa os espaços públicos, domina as verbas do Estado e cria, inclusive, departamentos de governo de uso exclusivo.
Na nossa visão, a estética e a cultura precisam ter a liberdade de criação para darem conta, minimamente, da complexidade histórica e dos temas do cotidiano. Nos colocamos em um campo radicalmente republicano.

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