Se a Igreja Católica inspirasse obras tão magníficas quanto certos livros, quadros ou monumentos juro que eu me convertia. Mas não é assim. Na sucessão dos séculos, o "estado da arte católico" tornou-se mais crível do que a própria fé - o que, pelo princípio religioso, está errado.
Não é?
A fé é divina, mas a arte, embora ostente a aura superior dos grandes mestres, tem beleza profana. A arte é Deus&Diabo trabalhando juntos por intermédio do homem. Sagrada ou profana, toda Renascença está guardada sob eterna vigilância dos padres.
Concílio de Trento, Banco do Vaticano, palacetes lambuzados de ouro e sangue, Santas Cruzadas, venda de indulgências, o silêncio do holocausto, Opus Dei. Passado estranho, para cujos pecados é complicado conceder remissão.
Hoje, a cruzada católica contra o ser humano é farmacêutica: fogueira e impalação são coisas do passado. Na proibição da pílula anticoncepcional e do preservativo, o cajado apostólico romano ainda tenta se impor. No final das contas, de pouco adianta.
Dogmas que nunca darão para entender e, na pior das hipóteses, resultam em explosão demográfica, doenças e tristeza sem explicação. Claro que um pouco de educação global também daria aquela mãozona ao mundo.
E, já que o Brasil é um "país católico", a Igreja deveria preocupar-se mais é com a educação, não só extensiva como ostensiva. Se não há grana, o que é uma injúria, que poupem nos milionários sapatos italianos do Bento 16.
Como nada tem só um lado "ruim" (e a questão leva mais do que um purgatório inteiro para ser debatida legitimamente), que, justamente, é uma das boas facetas do catolicismo que gostaria de explorar: a arte.
O que restou de bom no catolicismo pode ser apreciado na produção artística em mais de dois milanos de história pós-Cristo. Tal mostra a história, a arte sobreviveu a tudo: modas, política, egos, enchentes, mecenato e, até mesmo, abalos sísmicos.
Sobreviveu à religião e, muitas vezes, graças à ela.
Na literatura, um livro muito bonito escrito por Charles Dickens (1912/1870), especialmente para os seus filhos, passou 85 anos sem edição porque o caçula do romancista falecera pouco antes do natal de 1833, quando deveria ser publicado. Se lançada nos obscuros tempos do cristianismo, com certeza a obra seria considerada profana - de tão singela.
A Vida de Nosso Senhor (Editora Francisco Alves) é a daptação na qual Dickens refaz com sua prosa popular o nascimento e o calvário de Jesus Cristo; e, feito para os pequeninos, não carrega o angustiante sofrimento com que o desígnio do Salvador sempre é narrado.
Mel Gibson envergonharia-se desse livro.
Dickens pegou a maior história da humanidade e fez com ela o que sabia de melhor, isto é, suavizou-a e, com poesia, enlevou a crueldade que marca a passagem da crucificação de Cristo. Sofrimento que, para os católicos, fez-se necessário para "livrar-nos dos pecados do mundo".
Se bem que versejou por todos nós, os "outros", a poetisa punk Patty Smith: "Jesus died for somebody's sins but not mine" (Jesus morreu pelos pecados de todos, menos os meus).
Arrematei a edição de A Vida de Nosso Senhor num sebo em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, provavelmente "calhau" que restara da disputada Jornada Literária que, anualmente, toma a cidade.
Na ocasião, comprei outros dez títulos, entre os quais, O Baphomet, de Pierre Klossowski (1905/2001). Baphomet é o "inimigo de Deus". Por sinal, segundo consta na biografia de Klossowski, o escritor, amigo de Gide e Bataille, fora "acometido por uma crise religiosa que o levou a abandonar a vida pública".
O que viria a ser "crise religiosa"?
Superada a crise, Klossowski virou noviço dominicano e estudou nas universidades católicas de Lyon e Paris. Depois largou o catolicismo de mão e regressou, então, à vida laica em 1945. Dois anos depois escreveu seu primeiro livro: Sade Meu Próximo. Como percebe-se, sua "reconversão" foi ultraradical.
A edição de A Vida de Nosso Senhor, que voltei a topar num empoeirado sebo de Brasília, traz uma seleção de gravuras (a imagem que ilustra o post é uma delas) do contemporâneo de Dickens, um tal Julius Schnorr von Carolsfeld.
As gravuras de Julius têm o estilo de ilustração que os filhos de Dickens gostavam e conheciam por causa das bíblias domésticas da era vitoriana. Ao dedicar a obra aos filhos, Dickens pensou até mesmo nas ilustrações.
Isso que é pai!
LENDAS DO SUL - O catolicismo também batizou a literatura gauchesca com bastante água benta, diga-se de passagem, mas produziu passagens tão belas quanto as planices pampeanas.
O escritor pelotense João Simões Lopes Neto (1865-1916) fez de "O Negrinho do Pastoreio" o definitivo conto dessa antiga e sincrética lenda. Foi publicado originalmente no volume Contos Gauchescos & Lendas do Sul, de 1912.
É dessas leituras na qual as lágrimas, por vezes impossível de detê-las, rolam salgadas pelas maçãs do rosto. Se você estiver num dia meio "sensível" - um dia "emo" - deixa para ler depois.
Mais bonito, contudo, é o jeito como Neto junta literatura rio-grandense valendo-se da paisagem típica do Sul e do pitoresco linguajar para tecer seu regionalismo. Perfeito para se ler em voz alta na volta da fogueira, tomando chimarrão amargo e carneando uma costela gorda.
O livro é dividido em duas partes: Contos Gauchescos ("O Negro Bonifácio", "O Boi Velho", "Jogo do Osso") e Lendas do Sul ("Amboitatá", "A Salamanca do Jarau")".
A biografia de Simões de Lopes Neto é curiosa: nascido em Pelotas, para ganhar a vida envolveu-se numa série de negócios: de uma fábrica de vidros à uma destilaria. Os negócios, porém, fracassaram.
Vitimada pela guerra civil no Rio Grande do Sul, a Revolução Federalista, a economia do Estado fora duramente abalada. Cessada a beligerância, Lopes Neto ergueu uma fábrica de cigarros. Os cigarros ganharam o nome de "Diabo", ou melhor, "Marca Diabo", o que gerou protestos religiosos e a expressão que - até hoje - designa "produto de qualidade duvidosa".
A audácia empresarial de Lopes o levou a montar uma firma de torrar e moer café. Ele também desenvolveu uma fórmula, à base de tabaco, para combater sarna e carrapatos. Fundou, ainda, uma mineradora com a meta de explorar prata em Santa Catarina.
Empobrecido, em certa fase da vida sobreviveu como jornalista em Pelotas. Como escritor, Lopes Neto valorizou a história do gaúcho e suas tradições.
Todavia, o conto "A Lenda do Negrinho do Pastoreio" não se trata, exatamente, de "cultura gauchesca" (um código quase fechado para o resto dos brasileiros).
A lenda é meio africana/meio cristã, era contada no final do século retrasado pelos defensores do fim da escravidão, mui popular no Sul do Brasil, particularmente no Rio Grande do Sul.
João Simões Lopes Neto descreveu-a magistralmente: mais do que lenda, um libelo de fé redentora, a fé que salva. Foi escrito para os que nada possuem, senão a fé.
Pode chorar à vontade.