CRISTIANO BASTOS
Poucos lugares no Brasil são tão climáticos quanto Brasília para se ouvir folk. Sim, Brasília, Distrito Federal. Na capital do país não existe cena ou fenômeno musical "country", como em outras metrópoles, mas tem o cenário quase perfeito: o cerrado que, no inverno, despe o Centro-Oeste deserticamente.
Juntando Chapada dos Veadeiros, Minas Gerais e Goiás é o mais próximo que teríamos de uma paisagem das pradarias norte-americanas.
Durante o dia, a dinâmica do inverno em Brasília é sol e calor. À sombra é gelado e, à noite, frio seco e cortante. As dimensões continentais do Brasil são fabulosas - seja na diversidade cultural ou nas problemáticas brasileiras. No setor climático é igual.
Ringe o telefone do escritório. O módulo mostra que a chamada é de Porto Alegre, a três mil quilômetros...É minha mãe do outro lado do país: "Aqui a umidade está 100%, guri", ela me conta. O barulho da chuva possante batendo forte do outro lado da linha atrapalha a ligação. Eu: "Mãe, 10% aqui!". Com matriarcal sabedoria, ela sugere: "Bem que podia trocar um pouquinho, né?".
Seria uma boa mesmo, mãe.
O inverno com chuva, que caracteriza a estação gaúcha (capítulo que não me traz saudades), também é a temperatura que inspira a tal "estética do frio" sulista. De preferência, sem chuva . É quando fica perfeito para ouvir obras-primas como Something Else By The Kinks, a fase psicodélica dos Beach Boys ou os The Byrds descascando bergamotas ao sol. Beatles não.
Essa é a estética que se reflete na música jovem urbana do Rio Grande do Sul, o rock, por excelência. Que o rock sulista é sempre "engraçadinho" (pecha que traquitanas malinformadas da imprensa não cansam de repetir) não é verdade absoluta; mas que o frio meridional afeta o som, afeta, sim.
As influências platinas históricas (os discos vinham da Inglaterra, entravam pela Argentina e Uruguai e chegavam ao Rio Grande do Sul, na década de 60) até hoje dão a matiz britsh (mas não plúmblea) que agita o ânimo dos roqueiros nativistas.
Uma estadia de dois meses no nordeste, entre Pernambuco e Paraíba, filmando o documentário Nas Paredes da Pedra Encantada, sobre o álbum Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho, fazem-me pensar noutra coisa: Rio Grande do Sul e Pernambuco são os estados mais geoculturalmente adequados para o surgimento de uma "folkulture" (sacou?) no Brasil.
Simples: nos dois lugares a cultura campeira é sólida e tradicional. Folk vem da raiz (folclore), portanto trata-se, sobretudo, de uma música que sem tais pressupostos - os telúricos - não existe inteiramente.
Não pense que estou querendo acabar com o hype de outrem, com essa conversa. Mas arrisco dizer que, nesse sentido, "Amigo Punk" é ótimo exemplo "telúrico": alia rock e milonga (quer algo mais folk? Falta só o churrasco assando no espeto de chão) redondamente num gênero novo: a Graforréia Xilarmônica.
E os Cowboys Espirituais, alguém lembra deles? Em 1998, chegaram a ganhar prêmio de "melhor vídeo country" num concurso realizado em São Paulo.
Na época, eu trabalhava na Rádio Atlântida, em Porto Alegre, era redator-júnior. Lembro como se fosse hoje, dez anos após. Pressionado por enlouquecidos ouvintes, o programador da rádio estava a um passo da morte: o quanto antes, precisava colocar representantes da produção pop local no playlist apertado da emissora. O povo lá fora clamava.
Fenômeno que trouxe a seguir Bidê ou Balde e Video Hits, por exemplo. "Jovem Cowboy", dos Cowboys Espirituais, foi a primeira que entrou na programação. "Melissa", da Bidê, se não me engano emplacou depois. Os cowboys, com Julio Reny na linha de frente, tinha Frank Jorge e Marcio Petracco como os dois outros bandidos. O single "Jovem Cowboy" ousava pela amálgama de hip-hop e country-rock a la Byrds e...folk.
De meu apartamento, no final da Asa Norte, em Brasília, a janela do escritório enquadra pedaços desocupados do cerrado original - remanescentes espaços da construção do plano-piloto. São como enclaves da natureza rústica & rasteira desse ecossistema; logo serão ocupados pela exploração imobiliária selvagem do centro do país.
O cerrado é forte: sobrevive como os chaparrais. Entra em combustão natural para, quando a primavera chegar, as espécies, submersas na terra, desabrocharem com a chuva. A natureza, mesmo a artificial, grassa em Brasília. Sem ela seria impossível viver neste lugar.
Natureza que, aos sábados e domingos, se encerra para quem tem poder aquisitivo maior, é verdade. Para não encher a capital brasileira com o populacho, o metrô cidades-satélite/DF fecha aos domingos...
Na terra da política, a seleção é natural: no inverno, sobrevive apenas o que for regado e hidratado; mas só vive, o ano todo, quem tem $. Custo de vida que, no Brasil, só perde para São Paulo.
Definitivamente, a cidade é muito melhor ao dia. Não há indústrias no perímetro urbano, daí o céu, de brigadeiro, à noite é de serenata: estrelado como só no planetário da sua cidade industrial você poderá ver um igual.
O Paranoá, lago projetado que irriga o plano-piloto, nem artificial pode ser considerado mais a essas alturas. Depois de 50 anos na paleta, o ecossistema (transferido de um lado para outro pela homérica força de trabalho candanga) declarou sua independência.
Perto de casa tem um parque muito verde e agradável. Lá, a alma do cerrado manifesta-se numa riqueza de fauna e flora. Só não vê quem não tem olhos de ver. Do chão, no parque Olhos D’'água brota um límpido filão de água.
O filão vai desembocar num lago dourado no qual trutas coloridas nadam alegremente e ociosas tartarugas, que passam o dia a tomar sol, parecem até que estão chapadas.
Meditando na ensolarada manhã do sábado brasiliense, ao sabor desses pensamentos, o vento soprando na janela e sacudindo as árvores lá fora, instintivamete saco da prateleira o disco perfeito para o momento: Afther The Gold Rush (1970), de Neil Young.
Uma frase para Neil Young: "Homem colocado por Deus no mundo para edificar as almas elevadas e pusilânimes". Sou quem está dizendo isso.
Reverenciá-lo ouvindo é sempre assim: se estás bem, escute para ficar ainda melhor ainda; agora, se o fundo do poço é a única saída, dê chance à sensibilidade do canadense para tocar-lhe fundo o coração.
Há vagalhões de inquebrantável nobreza no espírito desse sujeito. E não adianta dizer que ele já gravou álbuns ruins antes. É como dizer que Hemingway escreveu um ou dois livros ruins.
Aliás, na arte, nunca há a diferença - somente a certeza: existem os discos bons e os ruins; os livros bons e os ruins, basicamente. Isso foi Oscar Wilde, eu acho, que disse. After the Gold Rush vai pra 40 anos e nem dá sinais de envelhecimento. É o Dorian Gray dos discos.
Neil Young canta o amor como ninguém (como ele, só Tim Bucley e Nick Drake) e com o coração. Só que tanto o norte-americano Buckley quanto o inglês Drake eram corações despedaçados. Vasilhames sem retorno. Young é o - eternamente - esperançoso "coração de ouro".
After the Gold Rush tem um antecedente para fazê-lo melhor ainda: o sublime Déjà vu, álbum gravado um ano antes com o trio Crosby Stills & Nash. Tanto que Stills aparece para fazer os vocais, na parceria After the Gold Rush.
"Tell Me Why", por pouco não é uma arrastada melopéia de amor & solidão. Ela inicia o disco. É bela e modorrenta. Na faixa-título, "After the Gold Rush", parece que o jovem Young, em pleno despertar orgiástico dos anos 70, vai se afundar sem volta no romantismo incurável. Foi o que aconteceu. A introspecção da música não é fria, aliás, é redentora.
"Only Love Can Break Your Heart" traz uma mensagem de esperança na letra e uma levada charmosa no som. A parte final é tocante, quando canta: "I have a friend/ I've never seen/ He hides his head/ inside a dream/ Yes, only love/ can break your heart/ Yes, only love can break your heart".
E as guitarras?! Na real, não é um disco de muitas guitarras: também de muitos violões, pianos e garbosas vocalizações. Em "Southern Man", Young e Danny Whitten duelam com a classe do Crazy Horse. No piano, Jack Nitzsche.
A curta "Till the Morning Comes" tem compasso alegre para sair assoviando pela rua feliz da vida, pegar a estrada ou para iniciar as preliminares do amor. "Oh Lonesome Me" é exatamente ao contrário: para se curtir na letargia pós-love.
Para ouvir chapado, deitado no chão, entregando-se confiante nas mãos do Criador é "Don't Let It Bring You Down". Módicos 2:56, porém, das canções mais grandiosas do mestre.
Guitarras! Em "When You Dance I Can Really Love" elas atacam novamente, don't worry.
"I Believe in You" é uma confissão de amor, com todo o sentimento que, além de sentir, o cantor nos passa com o seu cantar. Sinta por você mesmo(a).
After The Gold Rush termina com a classe de um fade-in (!): "Cripple Creek Ferry" e seus minúsculos 1:34. Maneira estranha de se terminar uma grandiosa obra. Somente alguém com o pressentimento do porvir - um prestidigitador -, como Young para dar-se a um luxo desses.
Para terminar, um testemunho meu.
Certa vez, no século passado, acampando em Riozinho (olha que coisa mais country, honney! Little River), onde tem o Parque Nacional dos Condutos, no Rio Grande do Sul, uma experiência psicodélica matinal com uma meiota de LSD, planejada para ser tomada pela manhã e atravessar o dia, revelou-me novos predicados da maestria extra-musical de Neil Young.
A outra metade foi ingerida por um amigo, o qual não convém revelar o nome. Nos preparamos para a trip com um farto café da manhã. No alforje colocamos uma dúzia de laranjas e seguimos a trilha na direção das corredeiras e condutos.
Little River fica onde começa (ou termina) a Mata Atlântica. Sumé, o Deus indígena, provavelmente deve ter passado por ali descerrando a mata até o Peru para soerguer a majestosa triha Pêabirú: o Caminho da Montanha do Sol.
Comemos todas as laranjas, segundo a crendice sobre a qual a acidez da fruta estimula o "lisergismo". Época jurássica pré-mp3 player, nos virávamos com o som de um gravador de repórter, o que acarretava levar, na mochila, fitas e mais fitas. Elas pesavam...Ou, então, poucas (e boas) K-7s. Uma das nossas poucas era Rust Never Sleeps (1979), fita chromo, aquelas meio fedidas.
O som do gravadorzinho mandava na ordem: "My My, Hey Hey (Out of the Blue)", "Thrasher", "Ride My Llama", "Pocahontas"... Dez horas da manhã: o negócio começava a bater às ganhas. Pleno verão no Rio Grande do Sul, o sol brilhava com esplendor. A gente percorria caminhos cada vez mais labirínticos para nosso psicodélico estado juvenil.
Como sempre, eu levava o gravador no bolso da bermuda: o som zunia. Uma caixa de abelhas a vibrar na cabeça e no bolso ao mesmo tempo. Devia tocar "Hey Hey, My My (Into the Black)", pela quarta vez.
Positivamente loucos a cada canção repetida, ao escalar uma pedra o preciso sonzinho escapuliu para as garras da torrencial corredeira. Neil Young se fora cantando e tudo. Suas últimas palavras foram: "Hey"...
A viagem quase parou por ali mesmo. Esperançoso, estiquei o braço para dentro da água: "Ao menos para recuperar o aparelho", cheguei raciocinar, "mesmo que sem a promessa da música de volta".
Apalpei o fundo do rio, entre plantas, pedras, galhos e insetos. Senti algo meio "quadrado": era o bendito gravadorzinho. "Só podia, com esse formato", ainda pensei. Puxei o objeto de volta e, como quem recebe seu troféu, o ergui ao alto - exultante como o neerdental que descobriu a arma de fogo. O guerreiro elétrico continuava a funcionar. Era impressionante!
Mas a música, que era a boa, não saia. Acasalei fita & gravador como dois lagartos enamorado no cimo de uma pedra e deixei o casal secar ao radiante sol de verão. Recordo que ainda fiz uma mandinga qualquer para que a valorosa dupla voltasse ao trabalho.
Despreocupadamente, fui tomar um gelado banho de rio. Depois fiquei curtindo emanações solares.
Na volta, tudo estava seco, como em Brasília. Peguei a fita e, com o carinho necessário, coloquei no compartimento - ato erótico, sem dúvida. Play: "Hey Hey, My My!", o gravador berrou pleno de seus pulmões metálicos.
Coisas mágicas acontecem quando Neil Young está no ar.
*Texto que pretendo reunir, em breve, num livro de reportagens, entrevistas e crônicas.