Mais um capítulo da eterna reinvenção sonora de um estilista cuja obra desafia categorizações
POR CRISTIANO BASTOS
Em 1956, Donato e seu regional entraram em estúdio para o registro de Chá Dançante, o acetato de 12 polegadas no qual Tom Jobim empresta sua sotisficação ao piano em quase todas as faixas, embora o importante dado tenha sido omitido na época. Mas o disco noticiava na contracapa: "O mestre do acordeon João Donato num repertório de primeira".
Dois anos depois, quando o LP suplantou o formato anterior de 78 rotações, o acriano adotou, definitivamente, a execelência do piano como instrumento. Só em 1962, porém, ano de grandes álbuns de jazz, como Tamba Trio, Go, de Dexter Gordon e Samba Jazz, de Stan Getz & Charlie Bird, Donato lançou com o trio formado por Tião Neto, Milton Banana e Amauri Tristão seu primeiro disco autoral, Muito à Vontade.
Gravado na norte-americana Pacific Jazz, lar de Chet Baker, Bud Shank e Gerry Mulligan, a produção ganhou nos states o jingado nome de Sambou, Sambou. Foi a bolacha que flechou o coração dos grandes jazzistas para a bossa nova e projetou Donato para o mundo.
Sambolero, o novo de João Donato, persegue a mesma doutrina instrumental de Sambou, Sambou, mas não é tão somente um simulacro da "álgebra" que lhe consagrou planetariamente. O disco excursiona por uma fração de sua obra selecionada, literalmente, a dedo pelo pianista: entre outros gêneros, navega do samba ao bolero e aporta na velha bossa-nova e na eternidade do jazz. O resultado apruma-se entre o fino e popular.
Galvanicamente unidos estão o compositor, o pianista e o arranjador – indissolúvel trindade. À menor frase sacada de seu piano lustrado em Debussy, o senso rítimico prodigioso de Donato põe o ouvinte para "balançar" em Sambolero.
"Amazonas" abre o disco com sua melodia nascida de um sonho que João teve na temporada que passou nos EUA. Posteriormente letrada (duplamente) por Lysias Ênio e Arnaldo Antunes, em no disco a música foi vestida instrumentalmente apenas. "Lugar comum", também batizada de "Índio Perdido", é a primeira menção que Donato fez, nos anos 40, à terra natal, o Acre.
O próprio tema que dá nome ao álbum, "Sambolero", conta uma história: remete à curiosa "Chombo Lero", originalmente uma homenagem ao sax tenor cubano José "Chombo" Silva. O piano de Donato também flana cristalino por standarts de seu repertório, como "Bananeira", "Brisa do mar", "Jodel", "A rã" e a bossa com jazz afro-cubano de "Nasci para bailar".
"Sambou, Sambou" (a única que apresenta letra), malemolente dueto com Zeca Pagodinho, cuja gravação havia sido registrada em Prova de Amor, último álbum do pagodeiro. É séria candidata à hit do disco. Para tocar no álbum, João escalou a dupla de ouro Robertinho Silva, na bateria e Luiz Alves, no baixo acústico, dois dos mais hábeis ritmistas com militância no círculo das boates cariocas. O trio toca há 30 anos e, juntos, rodaram o globo terrestre.
Às vésperas de gravar Sambolero, João Donato andava de um lado para o outro, sem ter bem certo o repertório e o conceito do álbum. O produtor João Samuel queria cancioneiro novo combinado ao antigo. Era madrugada e a esposa e empresária de Donato, Ivone Belém, receitou: "O disco que te mostrou ao mundo e tem o genuíno toque donatiano é Muito à Vontade. Vai beber nessa fonte!". Assim ele fez.
Aliás, "muito à vontade", na gíria da época significava que o cara tinha fumado um "cigarrinho do diabo" e ficado muito descontraído. Não se sabe se foi o que aconteceu em Sambolero, mas que dá vontade de relaxar ouvindo, isso dá.
*Rolling Stone. Na foto, João Donato e João Gilberto flanam muito à vontade pelas ruas de New York City, 1957.