terça-feira, 16 de março de 2010

lADO B dO rOCK*

Entrevista: Nelio Rodrigues
POR CRISTIANO BASTOS
Se, no século 21, roqueiro brasileiro tem "pinta de emo", nos remotos anos 60 e 70, de fato, demarcou a madrinha Rita Lee, a cara desse tipo underground era de "bandido". Tal marginalidade, porém, não restringia-se ao fenótipo: ditadura, toscos equipamentos, carência de público, mídia e indústria fonográfica sentenciaram as linhagens bárbaras do rock nacional ao segundo escalão.
O livro Histórias Perdidas do Rock Brasileiro Vol. I (Nitpress), do pesquisador Nélio Rodrigues, resuscita a mitologia de bandas como Os Selvagens, Analfabitles, Red Snakes, Sound Factory, Faia e Lodo. Originalmente, os textos compilados no volume foram publicados na revista eletrônica Senhor F.
Um dos gênios revividos é Jorge Amiden (Karma, O Terço), o "Syd Barret mineiro". Reza que Amiden foi o primeiro a empunhar uma guitarra de três braços (a tritarra) – antes de Jimmy Page –, no Festival Internacional da Canção de 1971. O Karma, a propósito, lançou somente um álbum de folk-rock-prog, o qual, desde 1972, hiberna criogenizado nos arquivos da gravadora RCA.

Quais as maiores dificuldades enfrentadas pelas bandas brasileiras nos anos 60 e 70?
Antes, vale ressaltar o sucesso de uma linha do rock brasileiro, nos anos 60, que ficou conhecida como Jovem Guarda. De fato, um rock domesticado, calcado em baladas, muitas delas versões de canções italianas, cantado em português, com letras muitas vezes ao estilo das histórias em quadrinhos e feito por artistas cuja maioria não tinha pinta alguma de roqueiro.
Esse rock teve acesso às gravadoras, televisão, revistas, rádio e a imprensa de modo geral. Era inofensivo.

Já a outra linha, que corria em paralelo a Jovem Guarda, era formada por bandas que se serviam de temas dos grandes grupos ingleses e norte-americanos, cantados em inglês mesmo, e que copiavam a estética difundida a partir de Carnaby Street, um dos epicentros da "Swinging London". As roupas eram coloridas, os cabelos, grandes, e a atitude, pra lá de transgressora.
Essa turma, que tocava mais alto, que possuía instrumentos melhores, que se alinhava com os movimentos contraculturais e que fazia uso da maconha e do ácido lisérgico, ao contrário do pessoal da jovem guarda, sofreu com o desdém das gravadoras, teve muito pouco acesso aos jornais, revistas, rádio e televisão e ainda, em plena ditadura, era vista pela direita como subversiva e pela esquerda como produto de alienados a serviço da cultura imperialista.

Nessa linhagem, de menor visibilidade, podemos citar The Bubbles, Analfabitles, Som Beat, Red Snakes e The Outcasts, entre muitas outras atuantes nos anos 60, e A Bolha, Módulo 1000, Karma, Soma, Os Lobos, Liverpool, entre tantas outras que, nos anos 70, já haviam incorporado o português como idioma principal, servindo-se de um repertório próprio em detrimento dos covers em inglês. Sobre elas, carecem histórias e um justo e devido reconhecimento histórico.

Muitos discos, à época ignorados, lançados no período hoje são preciosidades para colecionadores do mundo todo. O que, na sua opinião, explica a anacronia?

De modo geral, o rock feito no Brasil, sobretudo nos anos 60, estava muito aquém do rock inglês e norte-americano. Já no período pós-tropicalista, quando os Mutantes e os Novos Baianos souberam mesclar o banquinho e o violão com o som eletrificado das guitarras, dando um sotaque tupiniquim ao rock brasileiro, todas as luzes apontaram o foco para essa duas bandas.
Além do mais, havia, sim, preconceito contra o rock feito no Brasil. Isso serve pra explicar o por que de discos antológicos como o dos Brazões, o dos Lobos e o do Karma não terem merecido a devida atenção.

Ao seu ver, qual grande mérito desses guerreiros pré-80's (década do "boom" do rock nacional)?

Guerreiros é a palavra mais adequada pra definir aqueles que tentaram sobreviver de rock no Brasil nos anos 60 e 70. Eles enfrentaram o desinteresse das gravadoras, da imprensa, das rádios; conviveram com as limitações impostas na aquisição de equipamento e instrumentos importados e, consequentemente, com a má qualidade do que era produzido no Brasil, na época; foram acusados de alienados pela esquerda e de subversivos pela direita; tiveram que romper preconceitos, conquistar espaços e formar público; contribuíram com o aprendizado de técnicos de som e com a melhora da qualidade do som nos shows e muito, muito mais.
Apesar de tudo, ainda deixaram como legado algumas obras importantes e algumas portas que os roqueiros dos anos 80 encontraram abertas. Se nem todo o rock produzido no Brasil nos anos 60 e 70 tinha ou tem qualidade, de uma coisa ele não pode ser acusado: a de não ter sido verdadeiro e de não ter sido feito com o coração.


Existe alguma explicação para que, hoje, o Rio de Janeiro não tenha a mesma efervescência rocker que florescia nos anos 60 e 70?

No Rio, o rock é apenas uma parte de um cenário onde floresceu (e ainda floresce!) o samba, o choro, a bossa nova e a MPB. Vale lembrar, contudo, que nas décadas de 1960 e 1970 o rock, no Rio, também teve que se contentar com os pequenos guetos que sobravam nos grandes espaços ocupados por Paulinho da Viola, Cartola, Jobim, Chico, Jorge Ben, Tim Maia, Edu Lobo, Elis Regina e por aí vai.
*Texto original da Rolling Stone 42.

Who's Next?