quinta-feira, 1 de abril de 2010

gUITARRAS (e bAIXOS) eM pEDAÇOS

POR CRISTIANO BASTOS

É incerta a origem da Mail Art (Arte Postal), mas a peça de Marcel Duchamp, "Pode Bal Duchamp" - um telegrama postado em primeiro de junho de 1921, de Nova York para Paris, consagra o dadaísta como desbravador na apropriação do sistema de correios para a difusão artística.

Intraduzível, o texto do telegrama traz a mensagem "Peau de balle et balai de crini", um comunicado a Tristan Tzara no Salão Dadá, que se realizava na galeria parisiense Montaigne.

A complexa rede de Arte Postal, que se formou ao redor do mundo, despontou somente na década de 1960. A maioria dos participantes eram egressos do grupo novaiorquino Fluxus, do qual fizeram parte nomes como George Maciunas, Yoko Ono e o músico experimentalista John Cage.

Liderados pelo lituano Maciunas, o fluxistas defendiam o fim da cultura comercial e conservadora e da arte dos museus. Se a proposta do Fluxus era a insurgência contra o stablishment artístico, o fluxista Geoffrey Hendricks, porém, acredita que, com sua chegada, a arte não foi afetada, tampouco mudou.
A arte, nas suas palavras, estará eternamente subordinada a uma "maquiavélica" força: Great Art Structure - a Grande Estrutura da Arte:
"Essa estrutura tem o poder de cooptar idéias, de acomodá-las, obscurecê-las, negá-las e destruí-las. Não só o Fluxus, mas muitas das grandes forças artísticas radicais do século 20 foram mortas por essa entidade".

As conclusões do norte-americano são respaldadas pela crítica de arte francesa Muriel Caron. Conforme Muriel, vanguardas como Dadá e Futurismo, que acreditavam poder revolucionar a arte, assim como as neovanguardas dos anos 60 - a exemplo do próprio Fluxus e da arte conceitual -, ainda tentaram escapar ao estigma de simples produtos culturais.

Todas, entretanto, foram reabsorvidos pelos museus e pelo mercado das artes: "Cedo ou tarde, essas rupturas foram reintegradas à história oficial da arte e às instituições culturais", ela situa.

O dilema da obra de arte, hoje em dia, entende Muriel, é claramente colocado. Tendo se perdido ou se afastado de sua aura original, ela tornou-se item dentre tantos do "entertainment":

"A única margem de subversão que as obras possume, atualmente, é a possibilidade de se posicionarem de forma diferente, principalmente lá onde não se espera: no imprevisível".

MAIL ARTE - No Brasil, o artista multimídia pernambucano Paulo Bruscky foi reconhecido "trabalhador" na filamentada teia de Arte Postal, com ramificações pelo mundo todo. Bruscky guarda o maior acervo Fluxus do país, com mais de 150 obras.

Ligado às ações vanguardistas e ao experimentalismo desde os anos 70, o artista manteve correspondência regular – ainda que patrulhado pela ditadura – com os excêntricos ativistas da Correspondence School. Dentre eles, Ana Banana, Genesis P. Orridge (um dos inventores da acid house) e Pauline Smith – essa perseguida por liderar na rede um fã-clube de Adolf Hitler.

O que melhor identifica a Arte Postal, explica Brusky, é seu caráter não tradicional: um processo evolutivo decorrente da veloz mutação dos meios de comunicação. No princípio, com os correios (telex, telegramas, cartas, postais, selos e assemblagens); em seguida também nos formatos de Arte Telefônica, Fax Arte, Arte Computadorizada e outras "ultrapassadas" mídias.
Para o pernambucano, a Arte Postal conseguiu romper mundialmente todas as barreiras institucionais da arte e da cultura e levou à tona o subterrâneo:
"A Arte Postal é anti-sistema, anti-comercial e anti-burguesa. Tanto que quase toda 'crítica de arte' passou às brancas nuvens, ignorando sua existência por muito tempo. Agora corre em busca do tempo perdido", provoca.
Substituiu, também, os museus e as galerias, espaços de exposição, na opinião de Bruscky, caducos: "A Arte Postal surgiu num momento em que a arte oficial estava cada vez mais comprometida com a especulação do mercado capitalista e com a exploração do artista. Uma realidade que beneficiava uns poucos: marchands, críticos e galerias".

NERVO ÓPTICO - Em Porto Alegre, a conjuntura retratada por Paulo Bruscky (da busca de linguagens e de novos locais para exibição de arte contemporânea) foi contestada por um grupo formado por jovens artistas: o Nervo Óptico.

Na década de 1970, o Nervo Óptico chegou a utilizar expedientes da Arte Postal como alternativa de veiculação artística. Surgido em 1976, em encontros realizados no Museu de Artes do Rio Grande do Sul (Margs), o Nervo Óptico, esclarece o fotógrafo e artista plástico Clovis Dariano, "confluia pessoas em comum, que tentavam fazer algo para romper o vicioso círculo de amostragem da época".

Dertre os quais, Carlos Asp, Mara Alvares, Telmo Lanes, Carlos Pasquetti e Vera Chaves Barcellos. Na capital gaúcha, recorda Dariano, o acesso à galerias era privilégio exclusivo de obras que tivessem "alguma possibilidade de venda".

Situação paradoxal, na opinião do fotógrafo, se levado em conta que toda a tendência do período seguia uma linha não comercial: "O Nervo Óptico protestou contra a lógica da arte de mercado, o sistema de artes dirigido e o circuito de galerias, onde quaisquer manifestações modernas eram excluídas", conta Dariano.

O manifesto Nervo Óptico, de dezembro de 1976, fala pelo grupo: "Não somos contra a venda da obra de arte. Não aceitamos, isto sim, que o mercado dirija o movimento artístico. A venda não é medida de qualidade da obra de arte, como prova a história".

Artisticamente, a ação do Nervo Óptico era centrada na publicação de cartazetes homônimos, mensais e colecionáveis – "abertos a divulgação de novas poéticas visuais" – enviados por um mailling à instituições de ensino e para artistas do Brasil e de outros países.

Algumas edições, que tinham a fotografia como linguagem principal, chegaram a ser encartados na revista dadaísta sueca Ephemera, com marcante atuação no circuito internacional de Arte Postal.
NO FLUXO DO FIM (DOS BEATLES) - Quando John Lennon conheceu Yoko Ono, em 1966, ela já era conceituada artista Fluxus, o grupo vanguardista criado, em Nova York, por Geoge Maciunas a partir de idéias do compositor John Cage.
O beatle foi ver a exposição de Yoko, "Ceiling Painting" (instalação em que uma escada conduzia o observador até um vidro no teto. No alto, uma lupa ampliava a pequena inscrição: "Yes!"), e ficou encantado com a obra da futura esposa.
A rigor, o começo do fim dos Beatles foi tudo culpa do Fluxus...
Se o Fluxus fez o favor de enterrar os Beatles (pois era hora de alguém pará-los mesmo), ao menos a natureza bizarra e destrutiva de certas atuações, como as chamadas Música de Ação, deixaram "lições simbólicas" para o rock.

A performance "Peça de Guitarra", do fluxista Robin Page, apresentada durante o Festival de Desajustes, foi uma das mais impactantes, como descreve Victor Musgrave no livro The Unknown Art Movement.
A ação lembra a cena do filme Blow-Up, de Michelangelo Antonioni, na qual Jeff Beck arrebenta guitarra&amplificador numa espelunca da swinging london tocando "Stroll On" (assista no post abaixo) - cena que, originalmente, fora concebida para o The Who interpretar:
"Vestido em um reluzente capacete prateado e segurando sua guitarra pronta para tocar, Robin esperou alguns minutos antes de jogá-la no palco violentamente e chutá-la na direção do público, pelo corredor e escada abaixo, até sair na rua Dover. O efeito foi dramático, os espectadores levantaram-se e correram atrás dele enquanto ele dava voltas no quarteirão chutando o que ainda sobrava da guitarra".

O guitarrista do The Who, Pete Towshend, transformou a destruição da guitarra numa poderosa alegoria para a juventude hippie, em Woodstock e, em igual medida, num emblema ainda mais legítimo para os punks dez anos depois.

O instantâneo perfeito, no entanto, é a imagem congelada do baixista Paul Simonon, do The Clash, na cultuada capa do álbum-testamento London Calling (foto do post). A fotógrafa Pennie Smith - numa sublime hora de felicidade fotográfica - capturou o exato momento em que Simonon, irritado com a péssima do equipamento, imola seu baixo num show nos Estados Unidos.
Os fluxistas foram longe demais e perderam-se na loucura das extravagâncias performáticas. O cúmulo foi a "Missa-Fluxus", uma divertida deturpação até mesmo para os pioneiros do Fluxus. Insanidades ainda maiores, como os Esportes-Fluxus, o Casamento-Fluxus, o Divórcio-Fluxus e até o Funeral-Fluxus decretaram a morte do grupo.
O inglês Stewart Home, autor do revelador Assalto à Cultura - Utopia, Subversão e Guerrilha na Antiarte do Século 20 (Conrad Livros), traz um divertido relato sobre a bizarra "Missa Fluxus":

"Na cerimônia, de liturgia semelhante à católica, os coroinhas trajavam fantasias de gorila, o vinho sacramental era mantido num tanque e derramado por uma mangueira, as hóstias eram biscoitos azuis recheados de laxante e o pão era consagrado por uma pomba mecânica que cagava sobre ele.

O ritual tinha prosseguimento com o sacrifício de um Super-Homem inflável abarrotado de vinho; tudo acompanhado intermitentemente pela sucessão de uma sonoplastia previamente gravada com sons desconexos como o latir de cães raivosos, assobios de locomotivas, o piar de passarinhos e o estopim de tiros".

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