A gente nunca sabe como vai reagir a essas coisas, mas não posso dizer que fiquei tão surpreso quando a NBC interrompeu seu "Tonight Show" para anunciar que John Lennon estava morto. Sempre achei que ele seria o primeiro dos Beatles a morrer, porque sempre foi o que mais viveu no limite existencial, seja mergulhando de joelhos na inconseqüência de esquerda ou simplesmente por calar a boca durante cinco anos, quando decidiu que não tinha mais muito a dizer. Mas eu sempre imaginei que seria com as próprias mãos. Que ele tenha sido a mais recente celebridade a ser assassinada por um provável psicótico apenas reforça a banalidade em torno de sua morte.
Veja bem: não creio que eu esteja sendo insensível ou rabugento. Em 1965, John Lennon era uma das pessoas mais importantes do mundo. É só que hoje eu me sinto profundamente alienado do rock'n’roll e do que ele significou ou poderia significar, alienado de meus amigos e amigas mais próximos, de seus sonhos e aspirações.
Não sei o que é mais patético, as pessoas da minha geração que se recusam a deixar sua adolescência nos anos 60 morrer de morte natural, ou os mais jovens, que irão arrancar e devorar qualquer pedaço, qualquer migalha de um sonho que alguém declarou acabado há mais de dez anos. Talvez os jovens sejam os mais tristes, porque ao menos os meus companheiros ainda têm alguma memória nostálgica das longas e frias lembranças que hoje eles se ajoelham para reavivar, enquanto que os garotos têm de se virar com coisas tipo o show de beatlemania e uma lista de mercadorias de consumo.
Não consigo ficar de luto por John Lennon. Eu não conhecia o cara. Mas sei bem que, depois de tudo que se fez ou falou, isso é tudo que ele era – um cara. Essa recusa de seus fãs, de jamais deixá-lo ser ele mesmo simplesmente, foi por fim quase tão letal quanto seu "assassino" (e, por favor, vamos parar com esse papo de "assassinato político", e não o chame de "mártir do rock'n roll"). Você assistiu aos especiais de TV na terça à noite? Viu todas aquelas pessoas paradas na rua em frente ao edifício Dakota, onde Lennon vivia, cantando "Hey Jude"? O que você acha que o John Lennon real - o cínico, indolente, sarcástico, convulsivamente perspicaz e iconoclasta – teria dito disso tudo?
John Lennon, nos seus melhores momentos, desprezava sentimentalismo barato e teve que aprender da maneira mais difícil que, uma vez que você deixou sua marca na história, aqueles que não o conseguiram ficarão tão agradecidos que vão transformá-la numa jaula para você. Aqueles que escolhem falsificar suas próprias memórias – que anseiam por uma terra-do-nunca de uma década de 60 que nunca aconteceu daquela maneira em primeiro lugar – insultam o Éden retroativo que eles idolatram.
Assim, nessa hora de hipocrisias de gelar as tripas a respeito de ícones supremos, espero que você agüente minhas próprias considerações por tempo suficiente para me deixar dizer que os Beatles foram com certeza muitíssimo mais que um grupo de quatro músicos talentosos que podem muito bem ter sido os melhores de sua geração. Os Beatles foram acima de tudo um momento. Mas a geração deles não foi a única geração na história, e insistir em manter a brasa daqueles sonhos acesa de qualquer maneira, com a esperança de que a ela voltará de alguma forma a arder novamente nos anos 80, é uma busca tão fútil quanto tentar transformar as letras de Lennon em poesia. É por aquele momento – não para o homem John Lennon – que você está de luto, se é que você está de luto. Em última instância, você está de luto por si mesmo.
Lembra-se daquele outro sujeito, um velho amigo deles, que disse uma vez, "Não siga líderes"?(1) Bem, ele estava certo. Mas as mesmas pessoas que pegaram essas palavras e as transformaram em bandeiras estavam violando o slogan que endossavam. E continuam fazendo isso até hoje. Os Beatles de fato comandaram, mas eles fizeram isso com uma piscadela de canto de olho. Eles podem ter sido mais famosos que Jesus, mas não creio que quisessem ser a religião mundial. Isso teria barateado e tornado cafona o que era especial e maravilhoso a respeito deles. John Lennon não queria isso, de outra forma não teria se retirado por toda a segunda metade dos anos 70. O que aconteceu na noite de segunda-feira foi só a extensão mais extrema de todas as forças que o levaram a se comportar daquele jeito.
Em alguma das suas últimas entrevistas antes de morrer, ele dissera, "O que eu percebi nesses cinco anos longe de tudo é que, quando eu disse que o sonho havia terminado, fiz uma separação física dos Beatles. Mas mentalmente ainda tem essa coisa enorme nas minhas costas, que é o que as pessoas esperam de mim". E também: "Nós éramos os bacanas dos anos 60. Mas o mundo não é mais como nos anos 60. O mundo todo mudou". E: "Produza seu próprio sonho. É bem possível fazer qualquer coisa... o desconhecido é que é o lance. E ter medo disso é o que leva todo mundo a se arrastar por aí caçando sonhos, ilusões".
Adeus, baby, e amém.
- Los Angeles Times, 11 de dezembro de 1980
1- "Don’t follow leaders/ and watch the parking meters”; trecho da música "Subterranean Homesick Blues", de Bob Dylan. (N. T.)
* Lester Bangs em Reações Psicóticas (Conrad Editora)
Veja bem: não creio que eu esteja sendo insensível ou rabugento. Em 1965, John Lennon era uma das pessoas mais importantes do mundo. É só que hoje eu me sinto profundamente alienado do rock'n’roll e do que ele significou ou poderia significar, alienado de meus amigos e amigas mais próximos, de seus sonhos e aspirações.
Não sei o que é mais patético, as pessoas da minha geração que se recusam a deixar sua adolescência nos anos 60 morrer de morte natural, ou os mais jovens, que irão arrancar e devorar qualquer pedaço, qualquer migalha de um sonho que alguém declarou acabado há mais de dez anos. Talvez os jovens sejam os mais tristes, porque ao menos os meus companheiros ainda têm alguma memória nostálgica das longas e frias lembranças que hoje eles se ajoelham para reavivar, enquanto que os garotos têm de se virar com coisas tipo o show de beatlemania e uma lista de mercadorias de consumo.
Não consigo ficar de luto por John Lennon. Eu não conhecia o cara. Mas sei bem que, depois de tudo que se fez ou falou, isso é tudo que ele era – um cara. Essa recusa de seus fãs, de jamais deixá-lo ser ele mesmo simplesmente, foi por fim quase tão letal quanto seu "assassino" (e, por favor, vamos parar com esse papo de "assassinato político", e não o chame de "mártir do rock'n roll"). Você assistiu aos especiais de TV na terça à noite? Viu todas aquelas pessoas paradas na rua em frente ao edifício Dakota, onde Lennon vivia, cantando "Hey Jude"? O que você acha que o John Lennon real - o cínico, indolente, sarcástico, convulsivamente perspicaz e iconoclasta – teria dito disso tudo?
John Lennon, nos seus melhores momentos, desprezava sentimentalismo barato e teve que aprender da maneira mais difícil que, uma vez que você deixou sua marca na história, aqueles que não o conseguiram ficarão tão agradecidos que vão transformá-la numa jaula para você. Aqueles que escolhem falsificar suas próprias memórias – que anseiam por uma terra-do-nunca de uma década de 60 que nunca aconteceu daquela maneira em primeiro lugar – insultam o Éden retroativo que eles idolatram.
Assim, nessa hora de hipocrisias de gelar as tripas a respeito de ícones supremos, espero que você agüente minhas próprias considerações por tempo suficiente para me deixar dizer que os Beatles foram com certeza muitíssimo mais que um grupo de quatro músicos talentosos que podem muito bem ter sido os melhores de sua geração. Os Beatles foram acima de tudo um momento. Mas a geração deles não foi a única geração na história, e insistir em manter a brasa daqueles sonhos acesa de qualquer maneira, com a esperança de que a ela voltará de alguma forma a arder novamente nos anos 80, é uma busca tão fútil quanto tentar transformar as letras de Lennon em poesia. É por aquele momento – não para o homem John Lennon – que você está de luto, se é que você está de luto. Em última instância, você está de luto por si mesmo.
Lembra-se daquele outro sujeito, um velho amigo deles, que disse uma vez, "Não siga líderes"?(1) Bem, ele estava certo. Mas as mesmas pessoas que pegaram essas palavras e as transformaram em bandeiras estavam violando o slogan que endossavam. E continuam fazendo isso até hoje. Os Beatles de fato comandaram, mas eles fizeram isso com uma piscadela de canto de olho. Eles podem ter sido mais famosos que Jesus, mas não creio que quisessem ser a religião mundial. Isso teria barateado e tornado cafona o que era especial e maravilhoso a respeito deles. John Lennon não queria isso, de outra forma não teria se retirado por toda a segunda metade dos anos 70. O que aconteceu na noite de segunda-feira foi só a extensão mais extrema de todas as forças que o levaram a se comportar daquele jeito.
Em alguma das suas últimas entrevistas antes de morrer, ele dissera, "O que eu percebi nesses cinco anos longe de tudo é que, quando eu disse que o sonho havia terminado, fiz uma separação física dos Beatles. Mas mentalmente ainda tem essa coisa enorme nas minhas costas, que é o que as pessoas esperam de mim". E também: "Nós éramos os bacanas dos anos 60. Mas o mundo não é mais como nos anos 60. O mundo todo mudou". E: "Produza seu próprio sonho. É bem possível fazer qualquer coisa... o desconhecido é que é o lance. E ter medo disso é o que leva todo mundo a se arrastar por aí caçando sonhos, ilusões".
Adeus, baby, e amém.
- Los Angeles Times, 11 de dezembro de 1980
1- "Don’t follow leaders/ and watch the parking meters”; trecho da música "Subterranean Homesick Blues", de Bob Dylan. (N. T.)
* Lester Bangs em Reações Psicóticas (Conrad Editora)