POR CRISTIANO BASTOS
Estamos onde, de fato, tudo começou - há 64 anos atrás (sic). No centro antigo de Salvador, capital da Bahia, a Praça da Piedade oculta vicejantes episódios da ancestralidade e da modernidade nacional. Um dos mais antigos logradouros, no período monárquico, a "Piedade" era sítio usado para execuções públicas. No século 20, converteu-se numa espécie de parque de diversões da classe média.
E, de outro flanco, no ambiente que agremiava o Centro Popular de Cultura (CPC), o qual alistava uma fração da inteligência baiana. Promissores nomes, como Waly Salomão, Tom Zé, Gilberto Gil e Caetano Veloso, labutaram no CPC. A principal avenida que serve a velha Piedade é a Sete de Setembro - primeiro endereço do personagem mais emblemático do rock brasileiro: Raul Santos Seixas, filho de Dona Maria Eugenia e do engenheiro Raul Varella Seixas.
Antes de metamorfosear-se Raul Seixas, ele era Raulzito. "É apelido de família. Meu avô se chamava Raulzão, meu pai Raulzinho. Eu tinha que ser Raulzito, menor ainda. Meu filho vai ser Raulzitinho, no mínimo", contou o próprio em uma gravação do raro LP Let Me Sing My Rock and Roll. Aparado nas mãos de uma parteira, Raul Seixas nasceu às 8h da manhã do dia 28 de junho de 1945. Partiu para outra dimensão às 7h da manhã de 21 de agosto de 1989, aos 44 anos.
Foi encontrado morto em seu apartamento, na capital paulista, pela empregada Dalva Borges. Causa mortis: pancreatite aguda causada pelo excesso de álcool. A brevidade de sua vida, porém, é abissal contraponto frente à poderosa mitologia que incendiou em volta de si.
Guiado pelo amigo de infância de Raulzito, o infatigável Thildo Gama - no alto de seus 65 anos -, percorremos os principais pontos de Salvador, onde essa história flamejou suas primeiras chamas. Thildo e Raulzito se conheceram em 1959, nos tempos do Colégio Ipiranga. Três anos depois formaram seu primeiro grupo, Os Relâmpagos do Rock, embrião do conjunto Os Panteras.
"Lembro-me de Raul matando aula e chegando em minha casa todos os dias, às 7h da manhã. Acordava com ele ao lado da minha cama, com um violão, cantando rocks dos discos importados que ganhava de seus amigos estrangeiros", conta Thildo, enquanto cruzamos a Piedade em direção à Sete de Setembro.
Vou conhecer a casa onde Raul teve suas fraldas trocadas. A residência localizava-se em cima de uma loja de consertos de refrigeradores que pertencera ao tio de Raul - o "Lulu Geladeira". No ponto, hoje funciona uma confecção de roupas.
Foi na antiga loja que, brincando de "ver quem demorava mais", o irmão de Raul, Plininho, cinco anos mais novo, deixou Raulzito trancado dentro da Frigidaire. Salvou-lhe a mãe, mas o guri virou claustrofóbico.
"Eu suava, todo apertado. De repente, acordei na cama", escreveu no seu diário, aos nove anos. Atravessando a rua, fica o Clube Comercial, onde Os Relâmpagos do Rock embalaram a edição do concurso Miss Bahia de 1961.
Distante dali alguns quilômetros, o Largo de Roma, na Cidade Baixa, abriga os escombros do Cinema Roma - o "Templo do Rock na Bahia". O prédio está interditado para reformas. Desde 1983 não é mais o palco sobre o qual cintilaram estrelas da constelação de Jerry Adriani, Wanderléa e Roberto Carlos - além do próprio Raul.
No dia 6 de junho de 1965, Roberto Carlos estreou na Bahia cantando no Cinema Roma acompanhado de Raulzito e Seus Panteras, que se firmava como o melhor conjunto de baile da capital. Thildo tocou nesse dia.
Ele aponta a porta de acesso nos fundos do Roma: "Roberto Carlos chegou de táxi. Raul e eu o ajudamos a descer com a guitarra e um amplificador Phelpa. Ficamos com Roberto no camarim até a hora do show".
Comandadas por Waldir Serrão, mais tarde conhecido como Big Ben, as sessões de jovem guarda animavam as matinês de domingo em Salvador. Na trincheira inimiga, ficavam os opositores, "beócios, comunistas baratos", segundo Thildo.
Era uma guerra: Teatro Vila Velha contra Cinema Roma. "A turma do rock frequentava o Roma e o Vila Velha era o lugar dos intelectuais: Caetano e Gil, meus inimigos", contou Raul a seu diário.
Você lê esta matéria na íntegra na edição 35 da Rolling Stone. Fotos: Conceição Almeida.