Marco Mazzola está na conta dos maiores produtores fonográficos do Brasil. É responsável pela qualidade técnica e artística de muitos discos de Gal Costa, Ney Matogrosso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Elis Regina e Caetano Veloso.
O carioca recebeu quatro Discos de Diamante (vendas acima de 1 milhão) - por "The Rythm of the Saints", Paul Simon; "Rádio Pirata ao Vivo, RPM; o compacto "Não Chore Mais", Gilberto Gil; e "Vou de Táxi", Angélica.
Para lembrar Raulzito - de quem foi produtor de muitos discos importantes -, Mazzola editou o kit 20 Anos Sem Raul (MZA), no qual resgatou "Gospel", gravação inédita de 1974 - cuja letra Raul e Paulo Coelho escreveram para a trilha-sonora da novela O Rebu, da Rede Globo.
Nessa entrevista, Mazzola contou sobre a façanha que era gravar discos no Brasil, nos anos 70. Falou das picardias de Raulzito em estúdio, e não deixou escapar Paulo Coelho.
Pouca gente sabe que Raul, a seu exemplo, também era homem de estúdios.
Raul era um cara de sensibilidade muito grande. Cuidava dos artistas que vinham de uma nova geração, que começavam a ir para o cast da CBS, como Jerry Adriani, por exemplo. Foi assim ele que aprendeu a fazer uma coisa muito difícil, que é administrar um disco numa gravação.
Na época em que fomos apresentados, Raul não foi a Phillips para "mostrar seu trabalho". Na realidade, foi levar Sérgio Sampaio, que tinha vencido o Festival Internacional da Canção com "Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua".
Lembro do Raul vestido de terno; estava todo arrumado. Ele disse:
"Tenho umas músicas bonitas que eu faço na CBS".
O levei à minha sala e ele cantou "Let me Sing" e "Eu Sou Eu, Nicuri é do Diabo". Quando interpretou ''Let me Sing", tirou a gravata e se posicionou como artista de rock. Cruza de Luiz Gonzaga com Elvis Presley.
Fiquei sem entender nada. Fui à sala do Roberto Menescal: "Nós temos um puta artista aqui!". "Aonde?", ele perguntou. "Está lá na minha sala. Se inscrevermos essas músicas no FIC, ganhamos". "Então cuida dele e contrata", disse o Menescal.
O contratei. Uma semana depois, fomos imediatamente pro estúdio.
Como foi produzir discos da "fase áurea" do Raul?
Fiz todos os seus álbuns, até sua carreira começar a declinar. Também o levei, como artista contratado, para Warner. O Dia Em que a Terra Parou foi seu último LP produzido por mim. Antes de trabalhar com Raul, eu era requisitado para mixar discos do pessoal exilado: Caetano, Gil, Gal.
O tipo de mixagem de som que eu fazia, era muito diferente daquela feita, na época, no mercado fonográfico brasileiro. A Phillips contatou-me para que eu fizesse exclusivamente isso. Percebi que o importante era primar pela boa qualidade nos arranjos, pelas letras e pelos acabamentos.
De que forma trabalhavam a criatividade no estúdio?
Tem uma história que eu conto em meu livro, Ouvindo Estrelas. Fui um dia a uma reunião, na qual Raul projetava o álbum Gita. É importante frisar que o formato de gravação, há 30 anos, nem de longe era como hoje em dia, onde se tem 120 canais à disposição.
Nos anos 70, eram só quatro canais. Entrei no estúdio, só com velas acesas, e rolava um "ritual satânico". Paulo Coelho estava junto. "Estamos pensando em pôr uma orquestra sinfônica no disco", me disseram. Mas só tinham quatro canais. Falei: "Deixa pra mim que eu faço!".
Desde, no entanto, que eu trabalhesse nos arranjos. Assim, poderia fazer o que fosse preciso em estúdio. Escutando Gita com atenção, ouve-se até sons de sinos de catedrais. Em 1973, segui para os Estados Unidos, a convite da Phillips, para fazer curso numa máquina de oito canais.
Essa foi a primeira do país. Depois passou para 16, 24 e 48 canais.
Acredita que, hoje, Raul ficaria feliz com mais canais à sua disposição?
Na época de Krig-há, Bandolo!, a gente queria botar uma guitarra do cara do Toto, Steve Luckater. Peguei a fita, em quatro canais, e levei pros Estados Unidos, onde os estúdios de 16 pistas eram realidade.
Viajei com a voz de Raul gravada no Brasil. Botei vocais, teclado, guitarra e sopro. Daí pra frente, a Phillips foi obrigada a se modernizar. Não dava para gravar bateria junto com bumbo e com baixo; era assim que se gravava até então.
Os técnicos da época eram verdadeiros maestros. Hoje, os discos perderam parte desse calor.
E Paulo Coelho?
Paulo Coelho enfiava muita coisa na cabeça do Raul, aquele negócio de Sociedade Alternativa, por exemplo. Eu convivi com isso. Botava loucuras na cabeça dele; Raul acreditava. Por volta de 1977, Paulo largou a loucura, mas Raul prosseguiu.
Foi uma alquimia que funcionou, porém, Raul não soube parar. Paulo Coelho soube muito bem.
E as loucuras do Raul?
No estúdio, uma vez Raul me pediu: "Não dá pra botar um bebedor aqui?". Instalaram um bebedor dentro do estúdio pra ele, que estava "parando de beber". Ele chegava normal pela manhã e, ao longo do dia, ia se transtornando.
"Porra, que água esse que você tá bebendo?!". Ele só ficava rindo da minha cara.
O garoto que limpava o estúdio, colocava duas garrafas de vodca dentro do bebedor. Outra vez, ele veio com a conversa de "saquê era feito de arroz", milenar especiaria. Portanto, não fazia mal para a saúde.
"O problema não é o saquê, mas tudo o que você consome junto".
Vocês conheceram-se pouco tempo depois de Raul gravar Sessão das Dez?
Foi. "Eu preciso de um salário; preciso viver!", seguidamente ele reclamava pra mim. Aconselhei: "Cara, você é um artista. Pode ganhar muito mais dinheiro como cantor do que como produtor". Tanto que ele foi gravar como "Raulzito" e recomendei a ele:
"Esse nome não é legal. Como é todo seu nome?". "Raul Santos Seixas". Sugeri: "Raul Seixas". Então tá, daqui em diante você não é mais Mazzola. É 'Mazzolêra", ele falou.
Época em que a inteleligência brasileira não engulia Raul Seixas.
De forma alguma. Ele me dizia: "Não consigo entender. Sou baiano, mas ninguém me dá mole". Um dia, levei o Gil numa gravação, para ver se eu conseguia quebrar o gelo. Gravamos "Que Luz é Essa", na qual Gil toca violão. Mas os dois não continuaram tendo relação.
Uma coisa que muito lamento, deu-se por volta de 1985. Eu estava dirigindo meu carro, e não via o Raul há muito tempo. Eu não compatilhava mais das loucuras. O vi com um violão, num ponto de ônibus.
Dei a volta pra tentar pegá-lo; queria conversar com ele. Quando consegui fazer o retorno, Raul havia partido. Tentei ir atrás do ônibus, mas não consegui. Fiquei meio desesperado: tentei ligar pra Kika Seixas pra saber dele.
Um dia, a mãe dele ligou-me e disse que ele precisava muito falar comigo. Raulzito estava muito doente. Falei que estava indo a Salvador e seria bacana reencontrá-lo pra conversarmos. Ele me telefonou cobrando:
"Você vem a Salvador ou não, nego?".
Quando decidi ir, Raul estava em São Paulo, vivendo com outra pessoa. Na época, eu estava gravando o disco do RPM. Recebi outra ligação, avisando-me de seu falecimento. Consternado, liguei pra Dona Eugenia.
Perguntei-lhe se sabia o que Raul queria falar comigo. Me contou que Raul queria passar a limpo tudo o que vivemos juntos.
*Trio Paradadura: Gil, Mazzola e Raul.O carioca recebeu quatro Discos de Diamante (vendas acima de 1 milhão) - por "The Rythm of the Saints", Paul Simon; "Rádio Pirata ao Vivo, RPM; o compacto "Não Chore Mais", Gilberto Gil; e "Vou de Táxi", Angélica.
Para lembrar Raulzito - de quem foi produtor de muitos discos importantes -, Mazzola editou o kit 20 Anos Sem Raul (MZA), no qual resgatou "Gospel", gravação inédita de 1974 - cuja letra Raul e Paulo Coelho escreveram para a trilha-sonora da novela O Rebu, da Rede Globo.
Nessa entrevista, Mazzola contou sobre a façanha que era gravar discos no Brasil, nos anos 70. Falou das picardias de Raulzito em estúdio, e não deixou escapar Paulo Coelho.
Pouca gente sabe que Raul, a seu exemplo, também era homem de estúdios.
Raul era um cara de sensibilidade muito grande. Cuidava dos artistas que vinham de uma nova geração, que começavam a ir para o cast da CBS, como Jerry Adriani, por exemplo. Foi assim ele que aprendeu a fazer uma coisa muito difícil, que é administrar um disco numa gravação.
Na época em que fomos apresentados, Raul não foi a Phillips para "mostrar seu trabalho". Na realidade, foi levar Sérgio Sampaio, que tinha vencido o Festival Internacional da Canção com "Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua".
Lembro do Raul vestido de terno; estava todo arrumado. Ele disse:
"Tenho umas músicas bonitas que eu faço na CBS".
O levei à minha sala e ele cantou "Let me Sing" e "Eu Sou Eu, Nicuri é do Diabo". Quando interpretou ''Let me Sing", tirou a gravata e se posicionou como artista de rock. Cruza de Luiz Gonzaga com Elvis Presley.
Fiquei sem entender nada. Fui à sala do Roberto Menescal: "Nós temos um puta artista aqui!". "Aonde?", ele perguntou. "Está lá na minha sala. Se inscrevermos essas músicas no FIC, ganhamos". "Então cuida dele e contrata", disse o Menescal.
O contratei. Uma semana depois, fomos imediatamente pro estúdio.
Como foi produzir discos da "fase áurea" do Raul?
Fiz todos os seus álbuns, até sua carreira começar a declinar. Também o levei, como artista contratado, para Warner. O Dia Em que a Terra Parou foi seu último LP produzido por mim. Antes de trabalhar com Raul, eu era requisitado para mixar discos do pessoal exilado: Caetano, Gil, Gal.
O tipo de mixagem de som que eu fazia, era muito diferente daquela feita, na época, no mercado fonográfico brasileiro. A Phillips contatou-me para que eu fizesse exclusivamente isso. Percebi que o importante era primar pela boa qualidade nos arranjos, pelas letras e pelos acabamentos.
De que forma trabalhavam a criatividade no estúdio?
Tem uma história que eu conto em meu livro, Ouvindo Estrelas. Fui um dia a uma reunião, na qual Raul projetava o álbum Gita. É importante frisar que o formato de gravação, há 30 anos, nem de longe era como hoje em dia, onde se tem 120 canais à disposição.
Nos anos 70, eram só quatro canais. Entrei no estúdio, só com velas acesas, e rolava um "ritual satânico". Paulo Coelho estava junto. "Estamos pensando em pôr uma orquestra sinfônica no disco", me disseram. Mas só tinham quatro canais. Falei: "Deixa pra mim que eu faço!".
Desde, no entanto, que eu trabalhesse nos arranjos. Assim, poderia fazer o que fosse preciso em estúdio. Escutando Gita com atenção, ouve-se até sons de sinos de catedrais. Em 1973, segui para os Estados Unidos, a convite da Phillips, para fazer curso numa máquina de oito canais.
Essa foi a primeira do país. Depois passou para 16, 24 e 48 canais.
Acredita que, hoje, Raul ficaria feliz com mais canais à sua disposição?
Na época de Krig-há, Bandolo!, a gente queria botar uma guitarra do cara do Toto, Steve Luckater. Peguei a fita, em quatro canais, e levei pros Estados Unidos, onde os estúdios de 16 pistas eram realidade.
Viajei com a voz de Raul gravada no Brasil. Botei vocais, teclado, guitarra e sopro. Daí pra frente, a Phillips foi obrigada a se modernizar. Não dava para gravar bateria junto com bumbo e com baixo; era assim que se gravava até então.
Os técnicos da época eram verdadeiros maestros. Hoje, os discos perderam parte desse calor.
E Paulo Coelho?
Paulo Coelho enfiava muita coisa na cabeça do Raul, aquele negócio de Sociedade Alternativa, por exemplo. Eu convivi com isso. Botava loucuras na cabeça dele; Raul acreditava. Por volta de 1977, Paulo largou a loucura, mas Raul prosseguiu.
Foi uma alquimia que funcionou, porém, Raul não soube parar. Paulo Coelho soube muito bem.
E as loucuras do Raul?
No estúdio, uma vez Raul me pediu: "Não dá pra botar um bebedor aqui?". Instalaram um bebedor dentro do estúdio pra ele, que estava "parando de beber". Ele chegava normal pela manhã e, ao longo do dia, ia se transtornando.
"Porra, que água esse que você tá bebendo?!". Ele só ficava rindo da minha cara.
O garoto que limpava o estúdio, colocava duas garrafas de vodca dentro do bebedor. Outra vez, ele veio com a conversa de "saquê era feito de arroz", milenar especiaria. Portanto, não fazia mal para a saúde.
"O problema não é o saquê, mas tudo o que você consome junto".
Vocês conheceram-se pouco tempo depois de Raul gravar Sessão das Dez?
Foi. "Eu preciso de um salário; preciso viver!", seguidamente ele reclamava pra mim. Aconselhei: "Cara, você é um artista. Pode ganhar muito mais dinheiro como cantor do que como produtor". Tanto que ele foi gravar como "Raulzito" e recomendei a ele:
"Esse nome não é legal. Como é todo seu nome?". "Raul Santos Seixas". Sugeri: "Raul Seixas". Então tá, daqui em diante você não é mais Mazzola. É 'Mazzolêra", ele falou.
Época em que a inteleligência brasileira não engulia Raul Seixas.
De forma alguma. Ele me dizia: "Não consigo entender. Sou baiano, mas ninguém me dá mole". Um dia, levei o Gil numa gravação, para ver se eu conseguia quebrar o gelo. Gravamos "Que Luz é Essa", na qual Gil toca violão. Mas os dois não continuaram tendo relação.
Uma coisa que muito lamento, deu-se por volta de 1985. Eu estava dirigindo meu carro, e não via o Raul há muito tempo. Eu não compatilhava mais das loucuras. O vi com um violão, num ponto de ônibus.
Dei a volta pra tentar pegá-lo; queria conversar com ele. Quando consegui fazer o retorno, Raul havia partido. Tentei ir atrás do ônibus, mas não consegui. Fiquei meio desesperado: tentei ligar pra Kika Seixas pra saber dele.
Um dia, a mãe dele ligou-me e disse que ele precisava muito falar comigo. Raulzito estava muito doente. Falei que estava indo a Salvador e seria bacana reencontrá-lo pra conversarmos. Ele me telefonou cobrando:
"Você vem a Salvador ou não, nego?".
Quando decidi ir, Raul estava em São Paulo, vivendo com outra pessoa. Na época, eu estava gravando o disco do RPM. Recebi outra ligação, avisando-me de seu falecimento. Consternado, liguei pra Dona Eugenia.
Perguntei-lhe se sabia o que Raul queria falar comigo. Me contou que Raul queria passar a limpo tudo o que vivemos juntos.