sábado, 10 de janeiro de 2009

uMA vIVÊNCIA cOM nELSON gONÇALVES

Paulo Malaguti conta histórias sobre seu convívio como tecladista ao lado de Nelson Gonçalves numa temporada de shows

30/07/98


Chego ao aeroporto à hora marcada sem grandes expectativas. Vou substituir o Fernando Merlino, titular da "guigue", por uma tabela do sindicato num show em Belém do Grão Pará no sábado.

Vamos na sexta e, portanto, teremos tempo para nos divertir e quem sabe ensaiar.

- Tem partitura? pergunto eu, o incauto.
- Tá tudo escrito, me diz o Fernando, mas não dá pra ler nada.

A formação é quarteto: Fernando Carvalho de guitarra, Pantico na batera, Jorjão no baixo e eu no teclado. Alguém me informou que não precisava levar o meu instrumento pois a casa forneceria. Aceito incontinente, pois não terei que carregar o trambolho em táxis desproporcionais e ainda protejo meu teclado de mais uma viagem de avião. Portanto, vou de encontro ao mito despreocupado pois muito pouco me foi exigido.

Margareth Gonçalves, produtora e filha do Nelson, me recebe simpaticamente e se surpreende com a falta do teclado. Me desculpo contando a informação errada que me foi transmitida e ela não esquenta:

- Tudo bem. A gente aluga um teclado lá. Deixa eu te apresentar ao Nelson.Surge a figura pequena e sorridente do Frank Sinatra brasileiro. Magro, seco e corado com o cabelo num curioso tom alaranjado. Me olha e diz:

- Olha o novo tecladista! Vem cá meu filho.

E se aproxima ternamente para me dar um abraço. Logo compreendi a razão para tal efusão: sua protuberante prótese peniana encosta acintosamente na minha coxa direita provocando imediata reação da minha parte.

- Porra , seu Nelson!

É o máximo que consigo exclamar para delírio dos outros músicos que já haviam sido "batizados" em outras ocasiões . Ele está de ótimo humor dando autógrafos, contando vantagens em estórias sobre brigas e mulheres e, para meu conforto, sem uma sombra de preocupação com o tecladista substituto.

UM VÔO TERRIVELMENTE INESQUECÍVEL

Então vamos ao vôo de quatro horas até Belém, onde uma noite livre nos espera. Estou tão à vontade que resolvo que vou tomar um porre bem "relax" no avião. A viagem é longa, não temos compromisso nessa noite e eu me garanto, nunca dei vexame.

Fernando Carvalho é dos caras mais engraçados que eu conheço: tem o dom e a inteligência necessários para sacanear qualquer ser vivo sem insultá-lo, por isso conto com ele para dar boas risadas. Muitas pessoas me consideram um carioca típico, espirituoso, mas o Fernando dá de dez na minha pessoa.

Fui tomando uísque Tchitchers atrás de uísque Tchitchers, conversando sobre as agruras e alegrias da nossa profissão sem perder o humor básico e procurando à volta possíveis conquistas românticas, feliz e despreocupado. Nelson ficou lá na frente do avião, junto à Margareth, e dormiu durante todo o vôo.

Se arrependimento matasse, eu já esticaria as canelas com três horas de viagem. Comecei a ficar enjoado, meio com fome e misturei o lanche do avião com um maldito bombom que me arremessou à ressaca antes mesmo do pouso em Belém.

Tudo deu errado. O João Bosco estava fazendo show numa casa noturna com o Vítor Biglione e o Jamil Joanes, todos meus velhos conhecidos, e assistir ao espetáculo seria o melhor pretexto para uma gandaia noturna.

Nada disso! Fui para o hotel tentar dormir e passei das piores noites da minha carreira de músico itinerante tentando expelir sem sucesso Tchitcheres, lanche e o famigerado bombom. Nesse processo, fui apresentado a uma curiosa teoria que prega que a pressão da cabine do avião amplifica o efeito da birita, ainda mais um valente Tchitchers, fazendo com que cada uísque valha por dois e assim por diante em implacável progressão geométrica.

Por fim consegui dormir, mas ainda acordei péssimo e desci para tentar algum café da manhã que domasse minha fauna estomacal. Consciente do tom amarelo esverdeado do meu sofrido semblante, agüentei tranqüilamente o Fernando me descascando publicamente em pleno restaurante:

- Pauleira tá melhorzinho, hein! Garoto sabe beber!

Surge o Nelson e o meu vexame é iminente, mas ele ignora a minha situação e resolve contar um caso dele com um homossexual numa termas em que ele realmente mais uma vez provou que espécie de macho gaúcho ele sempre foi.

Fiquei ouvindo aquilo perplexo, ressacado, zonzo e sem saber como interagir com a figura, pois teríamos logo mais à noite show numa casa grande e importante e eu jamais havia tocado nenhuma de suas músicas. Na verdade, eu não conhecia nada do Nelson Gonçalves e estava sendo apresentado não só à sua obra artística mas a todo universo que cerca esse grande cantor brasileiro.

Voltei mais uma vez para o meu quarto e dessa vez consegui dormir e espantar o meu mal estar alcoólico definitivamente. No lugar deste, entra em campo o mal estar profissional ao me deparar com partituras absolutamente ilegíveis dos sucessos de Nelson Gonçalves.

Nomes como "Maria Betânia", "Meu vício é você", "Caminhemos" passavam pela minha frente e o pavor ia aos poucos se instalando em meu ser Jorjão, baixista muito experiente, se apressou em me tranqüilizar, indicando algumas saídas honrosas para as arapucas musicais.

Minha função era bem delicada pois eu substituia o, se é que se pode chamar assim, diretor musical e várias introduções e contagens seriam feitas por mim.

Finalmente chega a hora do confronto e tudo sai como era de se esperar: uma bagunça musical sem eira nem beira. Os finais das músicas não aconteciam, elas iam como que desmoronando ("falling apart") e eu, usando um velho DX7 alugado, cansado e estropiado de outras desventuras musicais, procurava dividir minha atenção entre o papiro hieroglífico à minha frente e o ímpeto musical do nosso chefe.

Nelson e seu público já estavam num momento onde o que menos importava eram acordes certos em compassos determinados: ele queria cantar logo e o público vê-lo e ouvir sua poderosa voz. O resto não importava absolutamente.

ANTI-AUTÓGRAFOS

Essa foi a primeira de uma série de jornadas que trabalhei com o Nelson entre 94 e 95 e sua postura era idêntica, fosse num palanque mambembe no interior do Espiríto Santo ou no Imperator no Rio de Janeiro para lançamento de seu desabutinésimo LP-CD-cassete.

Dizem, inclusive, que o Nelson vai gravando discos que garantirão lançamentos até depois do ano 2000 e lá vai fumaça. Em Santos, por exemplo, o motorista da van que nos transportava para o show lhe pediu que autografasse um disco seu que ele tinha. Nelson olhou o disco com desdém e exclamou:

- Porrrra, meu filho. Esse aí não sou eu não. Esse é o cara que me imita.

Era verdade. Tem um clone vocal do Nelson que grava discos com seus sucessos em outra gravadora e, por isso, para tristeza e sem gracisse do motorista, o astro não cedeu autógrafo nenhum.

Esse caso revela uma faceta divertidíssima do Nelson que é um aparente e constante mau humor desaforado que aparece em quase todas as situações. A mais frequente é na hora de dar autógrafos segurando a caneta do fã e reclamando em voz alta:

- Porrrra , eu não aguento mais ! Pronto, taí teu autógrafo meu filho.

Em outra ocasião, voltávamos de um show em Pancas, interior do Espírito Santo e, após 4 horas de viagem numa caminhonete, me senti à vontade para botar uma certa "pilha" no Véio. Ciente da sua condição de gaúcho macho mandei essa:

- Jorjão! Pergunta aí pro Nelson com quantos anos ele saiu de Pelotas!

Ele se vira pro Nelson e diz que o Paulinho tá perguntando tal e coisa.

- Pergunta pra mãe dele, porrra!

Continuava em forma o nosso astro.

SABIÁ E O CONSTRANGIMENTO

Nessa mesma, viagem ficamos hospedados na casa de um fazendeiro e assistimos uma cena emblemática e inesquecível. Nelson detesta, com toda razão, ficar hospedado em casa de particulares pois tal expediente só serve pro dono da casa se mostrar pros outros e o assédio fica insuportável.

Pois bem. Lá chegamos e era, obviamente, uma casa grande com piscina, familiares e crianças numa algazarra infernal que enfureceu o Nelson de imediato. Nós, os músicos, tratamos de tomar umas cervejas e jogar uma sinuca simpática que ali ficava enquanto aguardávamos o almoço prometido. Nosso programa era beber, jogar, almoçar e "bodar" antes de ir para o show.

Nelson veio, deu umas tacadas, sacaneou-nos um pouco e retirou-se para o seu quarto. Ficamos lá jogando, Jorjão e eu, com um cara estranho, desdentado e meio maltrapilho, que respondia pela alcunha de "Sabiá". Era o seresteiro da cidade.

Diziam que imitava o Nelson com perfeição e era habilidoso na sinuca, fazendo questão de nos derrotar sistematicamente no tapete verde. Fiquei intrigado com aquela figura pensando em pessoa talentosas que vivem no interior e por ali ficam, meio artistas, meio bêbados perdidos na ignorância local e pessoal.

Seguimos nosso roteiro e bebemos o suficiente para ficarmos à vontade e prontos para a comilança que se anunciava. Dito e feito: um belo almoço se nos apresentou, consistindo de um frango ensopado muito saboroso, um arroz com uns vegetais temperados, torresmos, lingüiças e um feijão mulato grosso e consistente.

O Nelson comeu um pouco, falou umas barbaridades para nosso divertimento, escarrou no chão da sala e rapidamente escafedeu-se, aporrinhado com os autógrafos. Logo em seguida, Sabiá se senta à mesa e dá o seu show particular. Se serve de tudo muito à vontade (devia ser freqüentador da casa) e começa a comer com as mãos.

Pegava um punhado de arroz melado de feijão, fazia uma espécie de bolinho e mandava pra dentro com fúria e naturalidade.Aquilo foi nos dando um constrangimento profundo e sem saída, pois éramos convidados da casa. O ensopado do frango escorria pelos braços do Sabiá e ele chupava os dedos com um prazer indescritível.

Sua dentição apodrecida salientava ainda mais o grotesco daquela cena e procuramos dar o fora daquela mesa o mais rápido possível. Margareth não cabia em si de indignação e repetia milhões de vezes que era por isso que não gostava de ir pra casa dos outros e que o seu pai tinha toda razão para estar fulo.

À noite, o show transcorreu normalmente, com o Nelson chamando o Sabiá para imitá-lo, para delírio da comunidade, e ele correspondeu apresentando boa voz e afinação. Estava penteado e arrumado num traje simples e elegante, na medida do impossível, pois sua grande e inesquecível atuação havia sido na refeição e nada suplantaria aquela primeira impressão.

Na chegada à casa, uma surpresa nos aguardava: o portão estava trancado e o chefe da casa ficara na festa com a chave. Margarete espumava de ódio, Nelson dava bicos no portão de ferro fazendo grande estardalhaço e eu guardava a cena na memória para contar pros meus netinhos.

A minha experiência tocando com o Nelson foi enriquecedora, principalmente por esse aspecto sociológico que eu sismo em observar e analizar. O Nelson é um artista realmente popular, querido por todos os segmentos da pirâmide social.

Ricos e pobres se revezam na veneração ao velho cantor e ele, apesar de aparentar desdém por seus fãs, sabe muito bem porque é querido e como fazer uso desse poder. Sua voz máscula e as histórias que ele cultiva são verdadeiras e ele não precisa fazer esforço nem pra cantar daquele modo ou para agir como o machão boxeur que ele é.

AVENTURAS NO NORDESTE

Nelson deu provas de poderosa resistência física numa grande excursão que fizemos ao nordeste, onde num espaço de uma semana fomos à João Pessoa, Sobral e Fortaleza. Para Sobral, fomos de carro, numa viagem muito incômoda pelo sertão, e fizemos show num palanque de feira de gado absolutamente mambembe, num som horroroso.

Nada disso abalou o velho. Em Fortaleza, tinhamos à nossa disposição um som poderosíssimo dentro do ginásio de um clube. Nessa ocasião, batizei o conjunto formado por Pantico batera, Jorjão baixo e eu no teclado de "Nelson Gonçalves Power Trio" por conta do volume e qualidade de som que tinhamos à nossa disposição.

Pro Nelson, isso é absolutamente indiferente. Fez o mesmo show de sempre, resmungando e encantando jovens e coroas.

Nessa ocasião, estávamos no quarto do hotel Jorjão e eu, em Fortaleza, quando irrompe nossa estrela a fim de conversar, contar casos e tal. Deduzi que queria dar uma descansada da sua namorada do nordeste que estava em seu quarto.

Ele apareceu com uma calça larga que favorecia a visão da silhueta da prótese e não tinha a menor intenção de disfarçar o tal adorno. Começou a contar um caso de sexo anal com uma mulher que berrava e gemia e eu sempre meio sem graça, sem saber como reagir além de rir cúmplice. Nisso, toca o telefone e é um reporter querendo entrevistá-lo por telefone:

- Porrra! Puta merda! Esses caras já me acharam aqui.

Atende o telefone e começa a responder desaforadamente.

- Não, não, não, não! Sou o Nelson Gonçalves brasileiro.

Deduzi que o cara perguntou se ele era o Frank Sinatra brasileiro. E continuou a entrevista com um mau humor brilhante e indisfarçável.

- Esse Roberto Carlos não presta! É um safado, sem vergonha e não faço show com ele de jeito nenhum!

Ficamos intrigados com aquele comentário sobre o Rei que é sabidamente um cara bom, de boa índole e bom caráter. Depois da entrevista, Nelson nos contou um caso escabroso de um acidente envolvendo o Rei em 66, onde ele capotou de carro com um amigo ou primo e depois se recusou a prestar ajuda, e o nosso Sinatra teve que socorrer o cara.

Parece que o Roberto pisou na bola feio e nunca deu um telefonema ou uma força. Na verdade, o que realmente aconteceu pouco a mim interessa. O fato do Nelson considerar o Rei um canalha e dizer isso numa entrevista já basta e muito!

Nesse mesmo fim de semana fomos apresentados à sua namorada, uma moça jovem, muito simples e perdidamente apaixonada pelo nosso herói. Ele a mantinha a uma distancia estratégica, ora dando no couro com sua prótese, ora escorraçando-a e tratando-a mal.

Esse é certamente o procedimento usual de um macho gaúcho setentão a fim de mostrar serviço. Ela própria, não me lembro o seu nome, nos mostrou uma carta que queria que entregássemos ao Nelson e que fez questão que lêssemos. Era uma declaração de amor incondicional, cafona e pateticamente sincera, onde a expressão mais pungente que me recordo era:

- Nelson! Quero ser sua doidivanas! Citando uma de suas canções, creio eu.

Me recordo de outra cena impagável no elevador desse mesmo hotel, onde descíamos Jorjão, Margareth, Nelson e eu para nos dirigirmos ao show quando paramos num andar onde uma mulher embarcou. Ela ficou de costas para nós e o Nelson imediatamente andou em sua direção, sorrindo, curvando-se para frente e apontando a prótese para a mulher.

Margareth o segurava, Jorjão ajudava, eu gargalhava e a mulher nem se tocava do inusitado da cena. A expressão de satisfação estampada no rosto do Nelson tocando aquele rebú dentro do elevador foi algo de sensacional.

INCÔMODOS E ADMIRAÇÃO

O nosso Frank Sinatra tinha também o incomodo costume de escarrar em alto e bom som onde quer que fosse. Avião, estúdio, hall de hotel, tudo era cenário para uma bela exibição de maus modos, que de certa forma compunham o perfil do nosso querido personagem.

Pois não é que uma vez, no lançamento de um de seus discos em pleno Imperator, no Rio de Janeiro, na coxia, depois de uma passagem de som tensa com uma banda grande, esperando a hora de atacar, o Nelson se distraiu e eu pude ouvir a sua tão familiar escarrada amplificada para toda a platéia ouvir em alto e bom som.

Tenho um sentimento ambíguo em relação ao tempo que trabalhei com o Nelson: pelo lado musical, esse trabalho pouco me acrescentou, pois suas músicas não apresentam requintes de harmonia, melodia ou ritmo além do já estabelecido na minha formação musical.

E, como eu já disse anteriormente, o Nelson e seu público pouco exigiam dos acordes, arranjos e levadas. Queriam ouvir sua voz máscula e o resto pouco importava. O que mais me impressionou nestes trabalhos era a sua disposição física, apesar do que gastou de tempo.

Dinheiro, neurônios e saúde com cocaína, e o amor que todos lhe dedicavam sem exceção: gerentes de banco, serventes de aeroporto, jovens loucamente apaixonadas, senhoras que choravam por ele e maridos que o admiravam mesmo sendo virtualmente ou literalmente corneados.

Todos prestavam homenagens sinceras e efusivas ao nosso bardo mor. Através do Nelson Gonçalves, pude me aproximar um pouco da alma brasileira que, terna e machista que é, vibrava e até hoje vibra ao som de suas canções.

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