domingo, 4 de janeiro de 2009

mARILENE: "pAPAI aDORAVA cRIANÇAS e cÃES"

Estar na presença de Marilene Gonçalves, a "Leninha", filha de Nelson Gonçalves com a primeira esposa, Elvira Molla, um pouco é estar com o próprio cantor. Sangue do mesmo sangue...

Na casa de Leninha, escritora e estróloga em Jacarepaguá, Rio de Janeiro, Nelson está por todos os cantos - lugar em que ele próprio, tantas vezes, também esteve.

O Cantor do Brasil não está somente nos inúmeros retratos ou nos relicários espalhados pelos recantos da agradável residência: indisfarçavelmente, está nos traços de Marilene e na grave voz herdada do pai. Dá pra dizer que ela é uma "xerox" feminina do Metralha - seja no jeito de falar, na maneira de gesticular ou no modo como enche a boca para soltar um bom palavrão. Como o indefectível: "Porra!".

Marilene está lançando o livro O Canto que me Embalou - Poemas Para meu Pai, Nelson Gonçalves e adiantou um trecho, que coloco após a entrevista que segue. É sobre o fraco - ou será o forte do astro? As mulheres, claro.

Marinele Gonçalves - Dia desses levei o carro à oficina e fui atendida por um rapaz novo. Eu estava ouvindo um disco do meu pai no carro. O mecânico foi olhar o extintor de incêndio e, com porta-malas aberto, ouviu o som dos auto-falantes. E me perguntou: "Nossa, que voz linda. Quem é?" Eu falei: "Você não sabe quem é, meu filho?! É um dos maiores cantores que o Brasil já teve. Chama-se Nelson Gonçalves". Aí ele disse: "Um momento, um momento!" Saiu correndo e foi buscar o tio. Trouxe o tio, um cara mais velho, óbvio, e ficaram escutando a música durante um tempo. No final deram parabéns. Isso me fez um grande bem. Prova que a voz dele continua linda.

Vai no nordeste e norte pra ver se não o conhecem Nelson Gonçalves por lá. Todo mundo conhece. Agora, quem não conhece é a mídia...Hoje em dia, ela faz o cantor que ela quer. O cara não canta nada, desafina, não pronuncia direito as palavras, não tem dicção correta. Tudo bem: eu nem sou contra isso. Aliás, acho que a mídia tem que andar pra frente. Mas, pelo amor de Deus, que se faça reverência. Já viu alguma reverência a Carlos Galhardo, Francisco Alves? Ninguém fala nada. Porque ninguém faz um reportagem dessas com desses também?

Se a lógica for essa, Nelson Gonçalves vai morrer também, cara! Enfim, desculpe minha franqueza, mas...Eu conto pro meu neto quem era esse cara, quem foi seu bisavô: "Olha meu filho, essa música foi o maior sucesso. Essa outra foi assim. O que tem que ser valorizado, também - já que o público não gosta desse tipo de música, tão sentimental, é que não tem mais ninguém mais com uma voz como a dele. Se tem, me cita um pelo menos.

O que se modificou, hoje, na forma de se sentir a música de Nelson?

Marinele Gonçalves - A forma de sentir é que foi modificada. Agora só tem essa coisa de música eletrônica: o que que é a aquilo? Você vai dizer que sou contra... Não. Não sou. Mas, só isso?! E o resto? O Roberto Carlos é o único cantor que canta canções de amor, e canções sentimentais, e o grande público gosta.

Quer dizer que o sentimento, esse, não morreu. O que morreu, de fato, foi o interesse geral da mídia por alguns de seus grandes artistas do passado. Não só Nelson Gonçaves, mas Orlando Silva, Francisco Alves, entre tantos outros.

Me fala de seu pai.

Marinele Gonçalves - Dentro dele sempre morou um menino. Antes de morrer, quando esteve doente no hospital por causa de um semi-enfarto, papai foi internado, mas não avisou pra nínguem. Eu e Margareth, imediatamente, fomos pro hospital quando soubemos pelo médico dele, porque ele não nos contava...Chegando no hospital fui direto pro quarto em que ele estava.

Quando abri a porta e entrei ele ficou muito bravo. Porque: tinha vergonha de mostrar fraqueza, de mostrar sensibilidade e por eu ver que ele tinha sido abandonado. Aí ele ficou de costas pra mim, bravo como um touro. Então eu disse pra ele: "Olha aqui, rapaz, eu te amo! Não vou te deixar sozinho. Não vou te abandonar. E não quero saber se você tá bravo ou se não tá bravo". Quando ele se virou de frente pra mim, era um menino.

O que falei tocou tão fundo nele que sabe o que ele me disse? "Filha, vai lá embaixo comprar uns pastéis pra gente comer?" Era o jeito dele. (muitos risos).

Ter largado o pó foi sua maior vitória. Você acompanhou esse dias?

Marinele Gonçalves - Sim, praticamente o tempo todo. Do início ao fim...

Divide essa experiência conosco...

Marinele Gonçalves - Eu morei com ele dois anos no Rio quando ele se separou da Lourdinha Bittencourt. Ele completamente drogado. Só eu e ele no duplex que era deles. Um dia ele ficou três dias sem sair do quarto! Meu quarto era colado ao dele. Tinha uma palhazinha no armário do meu quarto, que dava para o dele. Eu subia em cima da cômoda e botava o ouvido em cima daquela palinha para escutar se ele ainda estava respirando.

Uma vez ele saiu e foi ao banheiro e eu fui olhar no basculante, ver se ele estava bem. Ele se virou e disse assim: "Sai daí, palhaça, maluca!". Daí falei pra ele: 'Pai: tem certeza que você é meu pai?' E ele: "Olha no espelho, idiota". Era uma jeito amoroso que le tinha de falar com a gente. Eu sou muito parecida com ele...Para você ver como foi. Ele fez tudo pra eu sair. Até que um dia eu fui. Ele não me queria lá tão perto daquilo. Eu tinha a chave do quarto, mas nunca abri.

Conversávamos muito, mas, a maioria do tempo ele passava trancado dentro do quarto. Ele estava no auge da droga. Uma vez tocou a campainha e – juro pelos meu filhos – entraram 8 homens - todos fumando maconha. Os caras disseram: "Queremos falar com Nelson Gonçalves!". Meu pai estava lá em cima trancado, dormindo, coisa que raramente fazia. Botei os pé no primeiro degrau da escada, apoie-me no corrimão e disse pro mal-encarados: "Aqui ninguém sobe. Só se me matar!". Eu tinha 17 anos!".

Os caras ficaram ali parados. E eu: "Não adianta. Tá dormindo e não vou acordá-lo". Ele não dormia. Os caras, todos com aquelas caras de bandido. Pegaram e foram embora. Até hoje páro e penso: "Será que foi um filme que passou na minha vida e não consigo esquecer?".

Como ele ficava quando estava drogado?

Marinele Gonçalves - Ele ficava bravo. Capaz de qualquer besteira. Por isso que se trancava no quatro, provavelmente. Para não ficar perto de mim.

Ele perdia a linha?

Marinele Gonçalves - Bom, ele foi de tudo. Primeiro, alcóolatra, mas, segurou - porque ele quis. Depois foi jogador de pif-paf. Chegou a peder um partamentro no jogo de pif-paf. Depois foi a droga.Sua superação é um exemplo pro Brasil e pro mundo. Outra coisa: naquele tempo não tinha ajuda que tem hoje. Hoje, se tem terapeuta, psiquiatra, naquele tempo não tinha nada. Então ele segurou a onda sozinho.

Você lembra dos primeiros tempos da recuperação dele?

Marinele Gonçalves - Cada vez mais foi parando, parando e parou.

O que fazia seu pai chorar?

Marinele Gonçalves - Se batessem numa criança, num bicho, num cachorro ele chorava. Ele adorava criança e cães.

Música lhe fazia chorar?


Marinele Gonçalves - Muito. Ele vinha aqui para casa e meu marido colocava o CD dele direto pra gente ouvir. Ficávamos aqui na varanda. Ele cantava, o olho enchia d'água. Era uma loucura... Esse foi o grande drama dele: a sensibilidade. Porque a maioria das pessoas não entendia isso. Quando eu falo a maioria eu digo os amores todos. Ele não falava sobre isso abertamente. Ele não demostrava seu amor. Ele demostrava seu amor com algum gesto.

Você era criança quando seu pai se envolveu com Betty White. E ele ainda era casado com sua mãe, Elvira Molla.

Marinele Gonçalves - Meu pai estava curtindo a farra nessa época. Álcool, princicipalmente. Lembro vagamente da silhueta da Betty. Me parecia uma mulher muito legal e bonita.

Ele sentiu-se culpado pela morte dela?

Marinele Gonçalves - Lógico.

Depois teve o caso Nancy Montez, que ganhou os jornais.

Marinele Gonçalves - Aquele também foi brabo, né. Essa também usava droga da braba. Até hoje, a maioria dos artistas usa droga, né?

Os mais loucos não usam...Mas a maioria faz é droga, o que é pior... (risos)

Marilene Gonçalves - Essa pessoa que você ouviu eu falar nesses textos, aparentemente complicada, ele era assim. Por exemplo: já no final, ele chegava e dizia assim: "Filha, por favor, traz para mim...um "espelho", sei lá, qualquer bobagem, coisa que se podia se comprar ali no shopping da esquina. Mas, o que importava ali era o ato da coragem de pedir e de ser cumprido aquilo que se pediu com amor.

Um dia falei pra ele assim, de sacanagem: "Pai, me dá um dinheiro aí, pô! Tu dá dinheiro pros mendigos, dá dinheiro pra todo mundo... Dá um dinheirinho pra mim e pra Margareth! Daí ele: Tu quer é? Abriu a carteira e tirou uma nota de cinqüenta e deu pra nós duas (risos). Pô, tu nunca nos dá dinheiro. Nós duas: O que a gente vai fazer com essa merreca?! Até as brincadeiras eram assim. Mas eu nunca pedi dinheiro a ele. Sou tão orgulhosa quanto ele.

Você é astróloga...

Marilene Gonçalves – Eu fiz o mapa astrológico dele. Eu vi sua morte. Eu avisei a Margareth que o papai ia morrer. Em março, a Margareth comentou comigo: "Papai está esquisito". Eu falei: "O papai não passa de maio". Morreu em abril. Mas ele não acreditava nessas coisas, não. Ele não ligava.

Podemos falar mais sobre o período de recuperação dele. Você o acompanhou naquela fase em que ele se internou com a Maria Luiza?

Marilene Gonçalves - Na época, eu tinha filho pequeno, então, não podia vistá-lo o tempo todo. Mas lembro nitidamente de tê-lo visto internado naquele quarto. Assim que saiu de lá fui visitá-lo e ele estava bastante sedado, com médico, sendo medicado. Muito relaxado. Sedado mesmo. Depois ele foi melhorando cada vez mais. Numa das vezes meu noivo foi junto.

Ele gostou muito dele. Agora, sei que foi dramático e, nesse particular, ele aguentou firme porque, naquela época, volto a repetir, não existiam os recursos que existem hoje. E não é brincadeira a abstinência de uma droga dessas. É muito séria. Então deve ter dado bastante trabalho.

Me fala um pouco sobre sua mãe, Elvira Molla.

Marilene – Minha mãe sempre foi o grande amor da vida dele e, ele, o grande amor da vida dela. Mas a carreira os separou. Ele começou a seguir outro caminho. Começou a estudar, a ler muito. Aí você sabe: era um safado. Garanhão, passou a ficar famoso, comia um monte de mulher. Depois eles voltaram uns tempos. Acho que tinham uma ligação sexual muito forte. Negócio muito forte. Mas daí papai conheceu a Lourdinha, cantora do Trio de Ouro, e se apaixonou.

Ele gostava de ler, é?

Marilene Gonçalves – Sim, papai lia muito. Um dos textos que escrevi para ele, que está no meu livro se chama "Eu lia muito". Eu aprendi a ler com ele.

E sobre os irmãos adotivos e os com as outras mulheres? É difícil ter de se relacionar com tanta gente?

Marilene Gonçalves – Eu o Nelsinho, meu irmão, nunca fizemos diferença com os filhos adotivos. Como te disse, tudo que aprendi foi com meu pai. Quando criança, nunca me esqueço, perguntei pra ele. Eu era pequena, estávamos indo ao dentista e acho que tive ciúmes de algum deles, dos irmãos adotivos. Então perguntei: "Papai, porque você adotou essas crianças?". E ele respondeu: "Para me redimir diante de Deus pelo que eu faltei para você". Nunca mais comentei nada.

Vocês levavam uma vida luxuosa, Marilene?

Marilene Gonçalves – Sim, gozávamos da vida que ele levava. Morávamos num duplex na Avenida Atlântica, tinha Cadillac e motorista. Estudei nos melhores colégios da época. Essas coisas.

Mulheres*

Por Marilene Gonçalves

As mulheres foram o seu fraco, mas nunca foram o seu forte. Como num bom declarado machão, você disfarçava a ternura. Mas ela sempre esteve lá, no seu olhar. Nas maõs que se mexiam inquietas e até nos socos de mentirinha que você desfechava nos meus braços. Tudo demonstrava o quanto você desejava tocar no objeto amado. Você era também um crítico mordaz, implacável. Poucos passavam no crivo da sua "competência". No entanto, as mulheres não eram seu alvo preferido. Você achava fraquezas em cada uma. Se você era viciado em mulher? Acho que sim. E esse foi um vício invencível, indominável. Dependia delas em um nível muito profundo e inconsciente. O jeito que as tratava oscilava entre o ardor feroz do garanhão e a mínima falta de tato. Você era impaciente, bruto até um limite quase imprevisível. Mas, quando esse limite vital que vinha delas imperava, o charme aperecia, o carisma reinava, a sedução seduzia (...) A traição é a marca dos traidos. O carinho não nasce da força. O desvelo não vem da troca. A fidelidade não se compra com apartamentos. (...) Você amou então só a música, o seu tom, e foi só o que você amou. Mas você não sabia, era inocente. Sempre foi inocente. Você veio só para cantar.

*O Canto que me Embalou - Poemas para meu Pai, Nelson Gonçalves (ed. BookLink)

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