quarta-feira, 8 de abril de 2009

o hIPERESPETÁCULO*



"E sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... O que é sagrado para ele, não é senão a ilusão, mas o que é profano é a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que para ele o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado"

(Ludwig Feuerbach, prefácio da segunda edição de A Essência do Cristianismo)

Considerações como essa, que o filósofo alemão Ludwig Feuerbach (1804/1872) postulou em A Essência do Cristianismo, sua obra definitiva, custaram-lhe carreira acadêmica e o condenaram ao ostracismo pelo resto da vida.

A inteligência de Feuerbach amargou a vitória do ilusionismo, mas acabou provando quão perigosas podem ser as tentativas de desvendar noções coletivas consagradas pela sociedade.

Todavia, cerca de século e meio depois, as ponderações de Feuerbach ainda são lúcidas para explicar, no mínimo, a ilusão mágica exercida pelos reality-shows sobre rebanhos de milhões de telespectadores.

No Brasil, eles se acomodam frente ao televisor para "decidir" sobre o futuro dos participantes do programa Big Brother.

Como o catolicismo e o futebol, duas heranças estrangeiras, o Big Brother, cuja franquia pertence à empresa holandesa Endemol, só vingou mesmo - de verdade - no Brasil. Por essas plagas, alimentar a ilusão aparecer na Rede Globo em horário nobre é aspiração além de unânime.

Istoé, de acordo com postulação de Feuerbach, sagrada.

Se fosse organizada uma temporada de plebiscitos, mediados pela TV, tendo o objetivo determinar o destino do dinheiro público, por exemplo, aposto que o mesmo envolvimento dos telespectadores não haveria.

No entanto, quando o tema é um entretenimento em massa, como o final da telenovela, todo mundo tem a sua opinião. Detalhe: os telespectadores ligam (e pagam) para a emissora para participar dos "paredões" do programa.

Cidadania é o que não importa; alienação vouyerística, sim, é o que há.

Vivo, nem um pouco abismado o teórico Guy Debord teria presenciado, nos reality-shows, a materialização de suas previsões apontadas em A Sociedade do Espetáculo (Editora Contraponto, 1997), obra editada em 1967.

Segundo Debord, o espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e... inacessível. Debord chamou o espetáculo de "o sonho da sociedade", que nele encontra sua vontade de fugir da realidade e se entregar à ilusão:

"A alienação do espectador mediante o objeto de contemplação, resultado de sua atividade inconsciente, exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que se apresenta".

Ironia maior é que a mídia, a qual por toda vida ignorou Debord, promoveu -lhe quando morreu: o "espetáculo na Sociedade do Espetáculo". A televisão exibiu o documentário Guy Debord, Sua Arte e Seu Tempo e o filme debordiano A Sociedade do Espetáculo.

Jornais deram primeira página ao óbito. Seu suicídio estampado na manchete:

"Morre um dos grandes pensadores do século 20".

Hiperespetáculo − Na opinião do sociólogo e jornalista Juremir Machado da Silva, Debord é um homem do século passado. O espetáculo debordiano, para Juremir, é findado.

Já vivemos outra era − "O hiperespetáculo".

O espetáculo, elucida Juremir, no texto Depois do Espetáculo (Reflexões sobre a Tese 4 de Guy Debord), tratava-se de um fenômeno ligado à contemplação.

O hiperespetáculo é a "contemplação de si mesmo num outro":

"No espetáculo, cada indivíduo abdicava do seu papel de protagonista para tornar-se espectador. Mas era uma contemplação do outro, um outro idealizado, a estrela, a vedete, os 'olimpianos'. Um outro radicalmente diferente e inalcançável, cuja fama era ou deveria ser a expressão de uma realização extraordinária. No espetáculo, o contemplador aceitava viver por procuração. Delegava aos 'superiores' a vivência de emoções e de sentimentos que se julgava incapaz de atingir. No hiperespetáculo, a contemplação continua. Mas é uma contemplação de si mesmo num outro, em princípio, plenamente alcançável, semelhante ou igual ao contemplador. (...) O outro é 'eu' que deu certo graças às circunstâncias. O preço da fama parece estar ao alcance de qualquer um".

E o escritor George Orwell: que pensaria ao ver a expressão Big Brother furtada do livro 1984?

O que diria dos reality-shows?

Foi mais ou menos essa a pergunta feita ao apresentador Pedro Bial em entrevista à Revista Trip. O jornalista não deixa de tirar uma onda do povo que assiste o programa. A maior parte nunca ouviu falar de 1984 e, se o lesse, talvez saberia que o tal Grande Irmão é um vilão de primeira.

Bial pode se prestar ao papel de jornalista-animador de TV, mas não é nenhum idiota.

Tegiversou diplomaticamente:

"Acho que ele ia ficar meio possesso com a apropriação do título. Depois, inteligente como era, ia falar: 'Puxa, o danado do capitalismo conseguiu subverter até isso!'. Até o que era sinônimo de totalitarismo e controle absoluto do cidadão vira programa de entretenimento. No Brasil é mais engraçado ainda porque o povo não sabe a origem da expressão. Acham que o 'brother' é de irmão, amigo [risos]".

Sombrio é confundir 1984 com entretenimento, quando a obra é puramente sobre totalitarismo. De qualquer forma, a analogia do BBB com o mundo profetizado por Orwell, de fato, existe. A única liberdade no Big Brother é a liberdade vigiada e contratualmente monitorada. Que um dos participantes ouse falar mal do funcionamento do programa ou do governo que o rege (a Globo)...

A punição seria a pior imaginável para um participante: defenestração pública em rede nacional e a saída do programa transmitida para todos os lares. Com direito a lição de moral do Bial.

Nesse ponto, o Big Brother é muito semelhante ao livro que o inspira: o controle absoluto pelos olhos que tudo vêem, sabem e controlam. Medo, sentimentos de inquietação, castração sexual e liberdade − mas só até certo ponto.

Em outras palavras, uma forma de "escravidão" que pode ser muito bem remunerada. Ou não. A maioria esmagadora sai de lá com as mãos abanando...

E as analogias vão muito mais além. Tal qual a obra de Orwell, no programa Big Brother as classes são bem delineadas. Alguma punjança aos líderes e, para os demais, invariavelmente obediência, medo & solidão.

O público, olho tentacular do Big Brother, analisa as personalidade, faz os julgamentos e dá o seu veredito.

E não há chance para se redimir. Se o jogador causar má impressão ao sair da casa, assim será para toda a sociedade - a brasileira, essa que legitima muitos dos seus valores com um controle remoto em punho na TV aberta.

Do ponto de vista sociológico, o mais intrigante é que os "brotheres" mostram-se extremamente felizes na condição de confinados. Exultantes, lágrimas rolam lépidas e inconseqüentes.

Nem o "santo nome de Deus" tem descanso.

É dito em vão pelos participantes, agradecendo estarem ali engaiolados ou suplicando à sensibilidade superior para que se dêem bem no jogo. Logo Deus, que já tem o Big Brother Mundo pra vigiar...

Além de guerras, fome, violência e corrupção no Brasil.

Apesar de tudo, o fetiche é grande. Tanto por parte dos participantes quanto do público. Até as formas mais suaves de pornografia são beneficiadas pelo BBB.

É a lógica de funcionamento do programa, que prevê destino editorial certo às saradas e aos sarados do programa no observatório erótico das revistas.

Todos, sem sombra de dúvida, bombados e musculosos. Pedaços de carne bem cotados no mercado.

Autencidade premiada − O BBB é o território no qual a dissimulação vem fantasiada de "autenticidade", palavra-chave no glossário dos reality-shows.

Certa vez, uma pessoa que conheci me revelou que torcia por fulano de tal na edição passada do programa.

Para confesso telespectador do Big Brother, que era, nada de anormal se identificar com algum participante do jogo. Mas, ao me dizer isso fiquei curioso em saber porque torcia por aquele ser huamo:

"Porque ele é autêntico", respondeu. Como se tivesse aprendido a palavra "autêntico" vendo televisão.

A grande questão, era saber se ela torcia pelo candidato porque o Brasil inteiro fazia o mesmo − e, então, este é um jogo de cartas marcadas em que o ganhador é definido antes do final.

Ou, simplesmente, porque o jogador seria realmente "autêntico". Autêntico até o ponto permitido pela liberdade do programa.

Pelo que sei, autenticidade tem a ver exclusivamente com liberdade. Sobretudo, liberdade de expressão e de pensamento.

Porém, como se pode ter autencidade ao participar de um programa que limita a liberdade de seus jogadores num código de conduta que nem de longe pode ameaçar interesses da empresa que o produz?

Autenticidade só seria possível se houvesse a mínima chance de crítica contra o stablishment do programa. Como não há, qualquer tentativa de ser autêntico, portanto, é meramente simulada.

É como achar que existe "liberdade" escrevendo num jornal.

A liberdade só vai até onde... Aquele papo.

A noção de autenticidade também dilui-se edição-pós-edição do BBB. Confinamento-pós- confinamento, fica visível que os jogadores partilham da mesma linguagem padrão.

Por já terem sido espectadores dos números anteriores, eles estão cada vez mais profissionais na construção de uma autenticidade auto-elaborada e na criação, com a palavra final da edição, de "kits-de-perfis-padão" identitários.

Edição após edição, "espie": a ritualização é sempre a mesma − dos gestuais ensaiados aos modelitos de banho, do exibicionismo fashion aos cortes de cabelo "da hora", do sentimentalismo que se apodera de todos as "amizades verdadeiras", da troca generosa de elogios à sinceridade fingida.

Até a franqueza é fingida. Na casa do Big Brother todo mundo age segundo a mesma cartilha dissimulatória e, nos lares, os telespectadores dizem "Amém".

No Brasil, a usina do entretrenimento barato avança a todo o vapor. O número de pessoas que aspira a um posto de popstar, para gozar de um minutos de fama televisiva, é muito maior do que se imaginava.

Mérito dos reality-shows, que retroalimentam o sonho daqueles que não possuem talento para estrelar no restritivo universo artístico. A oitava edição do Big Brother Brasil foi um record, superando os 200 mil inscritos.

Nos Estados Unidos, a lógica dos reality shows com "pessoas comuns" foi por água abaixo e não chama mais atenção do grande público. Por lá, o lance é explorar aspectos ainda mais bizarros da condição humana.

A nova aposta da televisão norte-americana é manter sob vigilância celebridades decadentes em uma clínica de reabilitação para drogados e alcóolatras. É o Celebrity Rehab With Dr. Drew, que estreou nos EUA essa semana.

O desafio é largar o vício e ficar sóbrio em rede nacional. O programa começa mostrando os participantes no pleno exercício de seu vício, antes de ir para clínica. Um deles é a atriz Brigitte Nielsen (ex-senhora Silvester Stalone), que mamou uma garrafa de vodca no gut-gut antes de entrar na casa.

Outro é o ator Jeff Conaway (da sitcom Taxi, dos anos 70), que está tão emboletado por ter ingerido uma mistura de álcool e comprimidos que sua fala precisa ser traduzida com legendas ao telespectador.

Só estão esperando Amy Winehouse parar de vender discos pra mandá-la ao Celebrity Rehab.

Ratos de laboratório − Sabe como nasceu a idéia do Big Brother? Tudo começou quando o empresário John Demol, lendo um artigo na revista Biosphère, teve a idéia de filmar dia e noite cobaias humanas em condições similares a dos ratos de laboratório.

Batizado de Big Brother, o conceito virou show televisivo em setembro de 1999, atraindo 55 % da audiência. Após sua explosão na Holanda, o televisivo foi transmitido a 27 países. Hoje, Demol produz em sua empresa, a Endemol, cerca de 300 programas para o mundo inteiro.

Relendo o velho Guy Debord, o esperto John descobriu o grande trunfo teórico que viabilizou a criação de sua espetacular jogada:

"Quem fica sempre olhando, para saber o que vem depois, nunca age: assim deve ser o bom espectador".

Os objetivos comerciais do empresário, também espelharam-se em outra justificativa refletida em Debord:

"O espetáculo é o capital elevado a um tal grau de acumulação que se torna imagem".

No caso do Big Brother Brasil, botar sua imagem à venda vale concorrer a R$ 1 milhão.

Mas não é garantido que você vai ganhar.

Mesmo assim: vai encarar?



Big Bother - David Bowie


*Escrito na edição passada do Big Brother. Mas a pergunta é a mesma: "Porque eu ainda me presto?!"

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