CRISTIANO BASTOS
A caminho de 2010, um trecho do livro Eu Não Sou Cachorro Não - Música Popular Cafona e Ditadura Militar, do jornalista Paulo César Araújo (autor que viu sua biografia do Robertão ser banida via "decreto real"), é indispensável para compreender porque o elitismo brabo reina há tempos na "crítica musical" brasileira.
Especialmente, aquela traçada nos suplementos culturais de grandes jornais em circulação. Tradicionais redutos de gélida lúmpen-intelectualidade - que torna incapaz a demonstração de mínima sensibilidade para apreciar a dupla Teixeirinha & Mary Teresinha, por exemplo.
E dizer ao final: "Que ducaralho!".
Mesmo que o artista goze popularidade no Japão. Caso do Teixeirinha. Que, por seu turno, é esquecido também por veículos do Rio Grande do Sul, seu Estado Natal - aquele que "cuida de sua tradição"...
Durante sete anos, Araújo estudou a história da chamada canção cafona (ou brega) entre 1968 e 1978 – os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil. Ele foi atrás de respostas:
Porque artistas como Odair José, Benito Di Paula e Agnaldo Timóteo foram ignorados por estudos e livros sobre o período e marginalizados na história cultural do país?
Constatou que os chamados cafonas, que embalavam as massas, eram abominados pelos intelectuais. Foram quase tão vitimados pela censura quanto os "coitadinhos-queridinhos" Chico & Caetano.
Em Eu Não Sou Cachorro (título do grande sucesso do falecido Waldick Soriano, na foto post), o historiador - "exército de um homem só" - se esforça para fazer justiça aos ídolos populares da nação.
O cantor Nelson Gonçalves, entre eles.
Na obra, o autor lembra que Nelson, nos seus 60 anos de carreira, enfrentou fortes resistências com a crítica "identificada à modernidade".
Em 1966, quando o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro iniciou a gravação de uma série de depoimentos para a posteridade com alguns artistas da MPB, a ênfase recaiu sobre personagens da velha guarda ligados à "tradição": João da Biana, Donga, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Ataulfo Alves.
O que não impediu, contudo, que um jovem chamado Chico Buarque (22 anos à época) também fosse convidado a falar...
Nelson Gonçalves, àquela altura já com quase 50 anos de idade e mais de 25 de carreira, considerava-se também pronto para relatar ao museu sua rica história de vida.
Entretanto, os altos integrantes do Conselho Nacional de Música Popular do MIS (o nome já entrega...) - os quais elegiam os nomes para depor - julgaram que "a produção musical do cantor não justificava a gravação de seu depoimento naquela instituição".
Este fato magoou profundamente Nelson Gonçalves.
A tal ponto que, anos mais tarde, quando o MIS finalmente se convenceu de que o cantor merecia ser ouvido, desta vez foi ele próprio que se recusou a falar, morrendo em 1998 sem deixar seu depoimento registrado.
Bem feito.
O lamentável episódio exemplifica a dificuldade que um artista popular - não totalmente identificado à "tradição" ou à "modernidade" - encontra para ser enquadrado na memória da MPB.
O intérprete de "A Volta do Boêmio" nunca esteve identificado à "modernidade".
Ao contrário de nomes como Dick Farney e Johnny Alf, o Metralha não revelou influências de jazz (o que, contudo, não é inteiramente verdade).
Como também os seus sambas-canção, em parte de autoria do compositor Adelino Moreira, eram considerados abolerados, descarecterizados ou de "mau gosto".
No perfil jornalístico Hóspede das Tempestades, sobre o cantor Vicente Celestino, o romancista baiano Guido Guerra descobriu outros fatos interessantes.
A canção "Seresta Moderna", decifra Guerra, interpretada pelo Metralha no álbum Nós e a Seresta, de 1962, na realidade é uma canção-protesto de Adelino Moreira e Nelson Gonçalves.
Contra a bossa nova:
Seresta moderna não tem poesia
Não tem noite de lua
Não tem luar
Não tem cavaquinho
Não tem violão
E nem mesmo um pandeiro
Para o sambar ritmar
Seresta moderna
Agora é Hi-Fi
Num canto de sala
Num apartamento
Vitrola tocando
Bebida rolando
Gritinhos nervosos
A todo momento
Um gaiato cantando sem voz
Um samba sem graça
Desafinado que só vendoNão tem noite de lua
Não tem luar
Não tem cavaquinho
Não tem violão
E nem mesmo um pandeiro
Para o sambar ritmar
Seresta moderna
Agora é Hi-Fi
Num canto de sala
Num apartamento
Vitrola tocando
Bebida rolando
Gritinhos nervosos
A todo momento
Um gaiato cantando sem voz
Um samba sem graça
Parece até coisa de "indie"...
Seresta Moderna
Não resta dúvida:
O "gaiato cantando sem voz" e o "desafinado" é João Gilberto.
"Seresta Moderna" é um murro certeiro desferido por Nelson, na cara da instituição crítica-especializada, nos jornalistas e mesmo nos historiadores que, pós-advento da bossa, passaram a sofrer de gritante cegueira: não enxergam mais o samba antigo em seu campo de visão crítica.
Chico, Gil, Caetano, Tom, Vinícius e tantos outros, porém, não são culpados por serem considerados "gênios". Mas, a crítica lhes exaltou (ainda exalta!) sobremaneira.
Para mim, como relegar a Kinks, Byrds, Pretty Things, The Sonics grandeza menor em relação à beatlemania: nem Lennon agüentava mais ficar falando sobre a sua própria criatura.
A história dos Beatles virou um troço chato.
Em sua memória, a inteligência brasileira não preservou uns "gigas" para poder processar o legado artístico da legião de almas que - a vagar - deprimi-se no limbo da história.
Emudecidos, tesouros dormem debaixo da terra.
Mas o Caetano - que tolo não é - conhecia o valor da "lost generation" desde criança. Ouviu "Maria Bethânia" irradiada do rádio de sua casa, em Salvador, e ficou impressionado com a letra, a beleza da melodia, o timbre de voz do Metralha.
Sugeriu à mãe que desse o nome da música (do recifense Capiba) à irmã. Por pouco, Bethânia não foi batizada "Maria Gislaine". Em 1978, no Fantástico, os manos apresentaram "Maria Bethânia" coladinha num hit daqueles tempos:
"Leãozinho".
Sugeriu à mãe que desse o nome da música (do recifense Capiba) à irmã. Por pouco, Bethânia não foi batizada "Maria Gislaine". Em 1978, no Fantástico, os manos apresentaram "Maria Bethânia" coladinha num hit daqueles tempos:
"Leãozinho".