quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

fLYNG V: iNNERSPACE

"Drink, Fight and Fuck!"
G.G.Allin

...1980. William Caveman, juvenil e pobretão guitarrista, some da face da terra. A história que segue são relatos deste jovem vindos do além. Foram transmitidos por ele mesmo, oralmente, através do avançado sistema Spitz Uranium, um redutor sônico que converte freqüências anos-luz em mensagens taquigrafadas.
A semelhança do pai, Caveman era alto, lacônico, invertebrado e quase anoréxico. A exemplo da mãe, um proscrito. Em sua bólida passagem pela terra, a mais estimada companhia que arrumou foi um negro e reluzente topete que lhe dava simetria à cabeça. Para compensar a falta de talento legada pela mãe, bêbada e azarada, uma pin-up que terminou a vida se virando na Venezuela, sua madrasta natureza lhe muniu de fabulosa capacidade de adaptação à estranhas e máximas realidades. O pai, errático ator de filmes pornôs sórdidos no auge da guerra fria, aficionado por personagens do Velho Testamento e por Deuses Astronautas, ejaculara Enoc, acidentalmente, durante tomadas para uma produção cinematográfica de sexo gang-bang rodadas num estúdio portátil.
Em mil novecentos e noventa os dias iam e vinham insensatos, em ziguezague, boogie woogie.
Certa feita, amanheceu. E espertamente veio a tarde, dando no pé com a rapidez de uma amante noturna que vai embora de manhãzinha e te surrupia todos os tostões. Quando chegou a noite, Caveman olhou-se no espelho, colocou a franja para esquerda e cerrou o pulso – sinal de que estava pronto para perambular nas entranhas do perímetro urbano. Antes de sair, esgueirou o olho esquerdo no retrato de Joan Jett dependurado na parede do muquifo em que habitava – seminua, sexy, fácil –, e amou-a. No caminho, não soube explicar, objetos anexos no céu, as estrelas, lembraram-lhe uma canção. Para ele era a mais emblemática dentre todas:
"Baby I fell good, from the moment i rise! Fell Good from morning, till the end of the day!".
Naquela noite, o firmamento estava especialmente crepuscular, travestindo astros em notas musicais suspensas em partituras de constelações. No quadrante esquerdo da Via Láctea, um agrupamento estelar formava uma progressão de acordes: dó, lá menor, fá e sol. "Fuckingreat!", maravilhou-se - "o universo é do-it-yourself!"
A cosmonáutica moderna e os propulsores a jato completaram a cena punk celeste. Um objeto voador em forma de bastonete apareceu cumprindo uma trajetória espiral. Milionésimos depois estava flutuando há poucas polegadas do chão, silenciosamente. O ovni abriu uma escotilha da qual saíram feixes infravermelhos, que acertaram Caveman em cheio, sugando sua esquálida estrutura para uma infalível e magnética sedução luzidia.
Velozmente, todas suas moléculas desintegraram-se como ladrilhos, despedaçando-se. E, velozmente, a matéria refazia-se outra vez, pululando na atmosfera como elétrons de raios catódicos emitidos do tubo de um televisor. Em pleno trânsito molecular, Cave ainda sentiu a felicidade de se despedir do gênero humano, que julgava imprestável e incompatível para ele. Enfim, algo sobrenatural acontecia, e ele sorriu ao espaço sideral pela primeira honraria que estava recebendo nos milhares de dias em que caminhava por este planeta calçando sapatos de terceiros.
Deslizando em círculos vertiginosamente através de vastas dimensões coloridas, Caveman foi levado a uma espécie de limbo neutro no espaço. Lá permaneceu até que fluísse novamente para outro plano. Da fluorescência foi arremessado direto ao interior de uma ampla sala, onde tudo era branco, sintético, impecavelmente limpo e economicamente decorado. A propagação de um som, próximo ao displicente rock progressivo da década anterior (que ele detestava) e, para piorar, híbrido de cold age e plastic soul enchia o ambiente de climas com intenções sofisticadas. Ele, no entanto, nada tinha a fazer. Ficou ali, aguardando até o momento em que uma trombeta sintetizada soprou anunciando a chegada de alguém. Ou talvez máquinas inteligentes e malvadas querendo subjugá-lo. Jamais pôde esquecer o que viu e que, por momentos, fez sua euforia parecer interplanetária piada. Um ser mezzo alienígena/mezzo humano, cabelos lambidos, exalando lavanda e vestido numa roupa de banho estampada com alegres ideogramas japoneses materializa-se em sua frente. Teletransporte típico de Irvin Allen. O sujeito calçava chinelas e pitava cigarrilhas. Sem titubear, ele abriu a boca e disse:
- Caro senhor William Caveman, me chamo Telecaster e, como você deve imaginar, algo que não é terrestre está lhe acontecendo. Você já deve ter ouvido falar de abdução, de pessoas que são submetidas a experiências com seres extraterrenos malévolos e sem escrúpulos, não é mesmo? - disse enquanto ajeitava sua cigarrilha.
- Ouvi falar... - Caveman balbuciou laconicamente. Mais curioso, na verdade, em saber por que diabos ele tinha nome de guitarras fabricadas na terra.
- Não fazemos parte da desalmada facção de planetas que deseja tirar proveito dos humanos... - sibilou o ser, largando uma baforada de essências desconhecidas. Ao contrário, nosso objetivo é causar prazer à sua raça – não dor. Queremos um tipo de amizade muito íntima, compreende?
- E todos aqueles casos descritos nas revistas Ellery Queen? Cilindros inseridos nos orifícios das pessoas e partes do corpo extirpadas como dentes cariados - questionou o outsider.
- Ora - disse Telecaster, enquanto servia um drink de coloração violeta e oferecia a Enoc. - Isso faz parte de uma opção sexual particular. Nós, nômades renegados das mais longínquas plêiades do universo obtemos sensações pansexuais buscando espécimes diversas na fauna planetária.
Você, meu amigo, é um sortudo: foi eleito pela minha companheira - gesticulou com o ar blasé de quem curte "observar". - Garanto, ou melhor, dou minha palavra que terá a mais significativa experiência da sua vida. Eu já não passo de um indivíduo sem forças, estou liquidado. Minha mulher, pelo contrário, está sempre querendo mais e mais e mais e mais... Ela tem um único problema, no entanto. Seu maior defeito é a predileção por rock barulhento. Minha esposa gosta das guitarras apitando o tempo todo, dos caras que quebram guitarras e de coisas desagradáveis como a versão de "Born to be Wild" do Slade naquele disco vermelho – saca? E eu sou apenas um pós-pós-moderninho, desses adeptos da new romantic e de eurobeat. Oh!, este paradoxo está arruinando nosso matrimônio - lamentou-se, choramingando.
- Por favor! - pediu indiferente, o terráqueo, experimentando uma embriaguez sobrenatural em apenas um gole. - Pode me servir mais dessa bebida azulada? - enquanto via mini-estrelas supernovas realizarem divertidas picardias ao redor de seu topete, sem dar a mínima à miséria de Telecaster.
- Com certeza, meu jovem. De agora em diante, este será um templo de luxurias cósmicas só para você. É só pedir e terá. Mandarei vir minha esposa - e assim Telecaster retirou-se da mesma maneira como havia surgido.
Meditando, Caveman concluiu que aqueles seres eram uma espécie de milionários do espaço. Magnatas extravagantes que bebem champanhe no café da manhã. Uma sub-raça de alienígenas libertinos em busca de contatos imediatamente promíscuos. Estava aí a grande chance de sua vida. Tinha que dar o golpe. A especialidade dos pais corria em suas veias. Não podia escapulir disso.
- Abdução. Este é o estilo de vida definitivo. Dessa vez, quem vai enfiar algo neles sou eu. Ser abduzido pode até ser legal, mas, abduzir é ainda melhor! - maquinou.
Enquanto esperava a chegada da vassala sexual intergaláctica prometida por Telecaster, do vácuo um horripilante estrondo penetrou como uma agulha em seus tímpanos. O corpo sonoro vibrou e reverberou muito alto. Em seguida, amplificou-se docemente na silhueta de uma entidade quase poética, vaporosa, envolta em sedas transparentes, que remeteu Cave à sensação de leveza e melancolia causada pelo outono nos dias refestelantes que antecedem o inverno. A moça tinha feições assustadoramente humanas - com a exceção dos peitos e do traseiro. Ao invés de seios, dois cones pontiagudos sustentavam-se horizontalmente na altura do tórax, dando a ela classe e rígido designe extraterrestre. Nas parte superior das nádegas, alinhadamente robustas e carnudas esculpia-se pequeno e sensual rabo. Ela levava consigo uma guitarra modelo Flyng V, prateada. Um misto de ereção e de repulsa apoderaram-se do astronauta Caveman. Finalmente refeita, a garota apresentou-se gracejando em boas-vindas:
- Sou Loraine, Quiche Loraine. Sou ligada em aventuras anos-luz e rock'n'roll.
"Não me importa quanto combustível se gaste para encontrar novos amantes, desde que os encontre", este é o meu lema. Seu planeta, porém, ainda é muito mesquinho para o clamor e a plenitude do sexo - condenou. - Ainda assim, sinto-me atraída por alguns de vocês, especialmente pelas qualidades naturais que têm, como desempenho e exotismo. Ilustres terráqueos, até hoje julgados desaparecidos, na verdade vivem conosco. Sentem-se mais felizes aqui. C-a-v-e-m-a-n... - e la pronunciou sensualmente -, é por isso que fostes capturado. É um cara de sorte, pois, ao meu governo, não será apenas um títere. Estou à procura de amor, mas só o rock – o rock, captou? – é sobre amor. Faça parte da banda que estou montando: The Pretty Cosmic Things of Love. Um grupo para levar ao universo a catarse das guitarras com potência sônica jamais sonhada: punch! abduções da platéia! riffs cáusticos! sodomia! amor!, exaltou-se Loraine, por pouco não desfalecendo num terno gozo.
Nesse momento ressurge Telecaster. Num átimo imperceptível, sumariamente, Loraine empõe a guitarra Flyng V e pluga-a num robusto amplificador Fendere e ajusta na regulagem máxima. Num ato de insânia e sanguinolência, a garota do espaço desfere uma implacável pancada com o instrumento no meio da cabeça do pobre alienígena.
Telecaster, sujeito anódino ao rock, terminou seus dias sacrificado por causa dessa violenta música praticada com ardor pelos seres humanos. Da cabeça rachada do alienígena, estirado e sem vida afloraram miolos verdes semelhantes a fitoplânctons. Da despedaçada guitarra zuniram ruídos viscerais e mortais, como petardos, ecoando muito alto nos ouvidos de Caveman. Ironicamente, Telecaster acabara morto e imolado por uma Flyng V.
- Pronto. Já podemos começar nosso ensaios - conclamou Loraine, com um meio sorriso de satisfação estampado no face extraterrestre.
- Sim belezoca. Mas quem cantaria na Pretty Cosmic? - quis saber Caveman.
- Elvis Presley, respondeu a algoz. - Elvis não morreu, foi abduzido.
- Sempre pensei que Elvis tinha morrido por causa dos barbitúricos - disse, confuso, o terráqueo.
- O abduzimos antes - obteve como resposta.
Subitamente, outro teletransporte começou incorporar-se na nave. Primeiro, micropontos de matéria começaram a fervilhar na atmosfera. Veio uma cabeleira negra, seguida de um rosto escondido em óculos escuros. Um terno vermelho bem cortado e uma camisa tecida em fina malha trouxeram juntos a metade superior de um corpo.
As calças eram pretas, e de pregas. Sapatos bicolores, preto e branco – brancos em cima e pretos nos lados –, sapatos de rock'n'roll completaram a configuração. O cara tinha elegância. Era ninguém menos do que o Elvis Presley. A abdução devia ter feito bem a ele, a julgar pela boa forma, como nos tempos de "Blue Sued Shoes" e "Hound Dog", quando ainda não estava metido com bolinhas. Elvis ficou ali, calado e cordial, querendo permanecer cool e guardar sua garganta para o momento exato.
- Quem vai tocar bateria? - foi a dúvida de Caveman.
- Já vai saber.
Nova materialização. Desta vez, um indivíduo de meia estatura e atarracado apareceu. Era menor, portanto, sua materialização foi mais rápida. Quando viu de quem se tratava, Cave foi às lágrimas. Mais um milagre descortinava-se. Ele entendeu que milagres, no fim das contas, são apenas a interferência de mundos na realidade de outros mundos. Nesse caso, a abdução era o milagre. Enoc iria tocar com seu maior herói: Keith Moon. O baterista veio sorrindo, com as baquetas em punho, e logo perguntou:
- E aí, velhinho, como vai Pete, Ray, Ringo Starr e toda moçada?
- Estão todos démodés - sentenciou William Caveman.
- A onda agora é tecnopop.

Arquivo do blog

Who's Next?